Livramento

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LIVRAMENTO (foldulogia livresca) A terra, debaixo dos meus pés, não passa de um imenso jornal desdobrado. André Breton, Peixe Solúvel Uma árvore é um composto de folhas e páginas. Virgens: ainda não escritas ou ainda não impressas. As árvores são tipográficas. Os pássaros, cuja plumagem denuncia a vaidade, frequentam-nas porque gostariam de ver as suas histórias publicadas. Para não arrancarem penas a si mesmas, ditam-nas à árvore, aos seus insectos escribas, aos seus vermes copistas. Mas os pássaros só sabem falar a sua própria língua e nenhum habitante terrestre conhece os dialectos celestes. Pelo que os voláteis esbanjam a sua eloquência para nada. Por muito que piem, chilreiem, assobiem, das suas narrativas só resta, pairando no ar em redor das ramagens, a música, um esboço de melodia que uma rajada de vento dispersa. FF As cidades foram construídas segundo o modelo das bibliotecas. Cada habitante é virtualmente a personagem dum livro, ou pelo menos de umas linhas numa coluna de jornal. Mesmo que se mantenha anónimo, mesmo que se encontre englobado no termo genérico de multidão ou de massa, está inscrito num tomo de pedra ou de betão. Mas quem alguma vez consultará o arquivo urbano? Os gestos reproduzem letras caligráfica e grosseiramente, as intenções murmuram palavras, as ocupações declinam verbos, os passos traçam linhas, mas a cidade é um palimpsesto em que cada novo relato apaga um mais antigo, tão ilegível quanto uma gazeta folheada pelo vento. As janelas alinhadas dificilmente escondem as prateleiras vazias. F O livro do céu foi impresso bem antes do aparecimento de criaturas que possam decifrá-lo. E no entanto ele não é perene, bem pelo contrário muda à velocidade da luz, e não pára de ser actualizado: ora um cometa risca uma passagem demasiado límpida, ora um buraco negro apaga uma constelação demasiado apertada. A escrita celeste tem as suas próprias figuras, as estrelas cadentes expandem a sua metáfora, os satélites revelam-se adjectivais, as elipses espácio-temporais, o passado subjectivo e o modo condicionado. Portanto os áugures que os decifram estão sempre desactualizados, literalmente siderados pelo espaço, recebem as mensagens luminosas com séculos de atraso, lendo conjunção onde na verdade há desvio e branqueamento em lugar de extinção. FF Estamos perante as coisas como diante dum livro do qual avaliamos o peso antes de ousarmos abri-lo: decifrámos imediatamente o título, ou seja, nomeámos a coisa mas, antes de empreender a sua leitura, já sabemos que para enunciar as suas componentes, para ter em conta a sua história, distinguir os seus aspectos conforme o ângulo de observação, detectar as associações que a sua forma ou a sua tonalidade sugere, suputar os seus possíveis usos, serão precisas páginas e páginas. Mais vale desistir antes de começar. Pois toda a leitura é virtualmente infinita, todo o objecto enciclopédico. Cansados de antemão, voltamos a pousar o livro sem o entreabrirmos e logo seguimos caminho. FFF O visível é um livro aberto, mas escrito em língua estrangeira. Abordando-o por cruzamentos e exclusão de partes, adivinhamos as significações, reconhecemos as raízes, deciframos por vezes um vocábulo, mas os verbos só pelos nossos esforços são conjugados, as declinações mostram-se pouco inclinadas para se inclinarem, toda a sintaxe nos escapa. O sentido parece aleatório, incerto ou múltiplo. Preocupados em encontrar um fio condutor, saltamos páginas sem sequer nos darmos conta. A tinta deve estar sempre fresca de mais porque elas se colam mal as viramos: impossível voltar atrás. Impossível também fechar o volume que nos condena ao afastamento dos braços, à posição da crucifixão. Só é possível apagar a tinta fechando os olhos. FF Ele teve a ideia de se transformar em livro. Partindo do princípio que as palavras, contrariamente ao corpo, praticamente não ocupam lugar. Portanto, apesar de imaterial, ele seria menos perecível do que a sua carne, menos anónimo do que o seu esqueleto, porventura divinizado e perpetuado, um pouco mitificado, romanceado, legível logo memorável. Começou pelo passado, infância real ou sonhada, esperanças e curiosidades condenadas à decepção, aprendizagens (jogar ao sério, o jogo do ego), para, aos poucos, agarrar o presente. Acumulou notas, cadernos, espalhou-se por páginas e páginas: fez-se tomo e enclausurou-se na sua história. Quando morreu, como os volumes não cabiam num caixão, queimaram-nos. F


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