A REVISÃO

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A REVISÃO 1º ACTO ÉDIPO (dirigindo-se ao público) – Cidadãos de Tebas, era meu dever lavar uma nódoa que ia alastrando e corroendo a vossa confiança na chefia que assumi. Melhor dizendo: é meu desígnio desvanecer uma suspeita que, sem um formal desmentido, se poderia tornar incriminação e culpa. De Corinto me chegou o triste aviso de que não tornarei a ver o meu pai no reino dos vivos. Foi Mérope, minha amada mãe, quem fez chegar esse anúncio às portas de Tebas. Há males que vêm por bem. A morte do meu velho pai, o luto de minha mãe e o meu próprio pesar dissipam qualquer dúvida no que diz respeito à minha ascendência. Rumor na assistência. Vindo do fundo do palco, como que chamado pelo discurso de Édipo, Tirésias avança lentamente até este último se dar conta da sua presença. ÉDIPO (como que apressado) – Ainda bem que te apanho. Ando à tua procura desde manhã cedo... TIRÉSIAS – Diz antes que foste arejar os miolos, desentorpecer as pernas, desinchar os pés. Que foste discorrer e discursar, desenferrujar a língua e amassar o pão das consciências. E enquanto isso, talvez tenhas pensado que, se acaso me apanhasses, contavas-me as novas que eu já sei. ÉDIPO – Ou seja?... TIRÉSIAS – Recebeste a notícia da morte de Políbio. Foi um mensageiro enviado pela viúva que te anunciou o falecimento. ÉDIPO – Sim, a minha mãe, Mérope, profundamente afectada... TIRÉSIAS – A tua mãe adoptiva... ÉDIPO – A minha mãe ainda viva... TIRÉSIAS – Já reparaste que as tuas novas são sempre velhas? Já reparaste que eu sei sobretudo o muito que não me contas? ÉDIPO – Ousas duvidar da minha palavra? TIRÉSIAS – Da tua palavra, não. Mas do silêncio que há entre as palavras, sempre. ÉDIPO – Pois eu claramente te afirmo que a mensagem vinda de Corinto confirma tudo o que eu tenho dito e desmente tudo o que tu dizes. A partir de hoje, quem fizer correr falsos rumores acerca da minha vida passada ou futura, pagará com a sua. No presente e imediatamente. TIRÉSIAS – Age com prepotência quem se sente impotente... ÉDIPO – Pretendes continuar a alimentar os boatos que tornam esta cidade ingovernável? TIRÉSIAS- Ingovernável é quem a governa, diz antes assim.


ÉDIPO – Eu libertei a cidade da maldição que a Esfinge sobre ela lançara. Governei a cidade como se fora a minha terra natal. Casei com a soberana para fortalecer o poder que a governa. Dei à cidade dois machos e duas fêmeas, filhos de mulher sadia que, sem o concurso de Jocasta, a rainha-mãe, garantem a continuidade da linhagem... É preciso ser cego para não ver o mal onde só há o bem feito por um homem de bem. TIRÉSIAS – Homem de bem dizes tu?... ÉDIPO – Sim, homem de bem, que honra amante e esposa, pai e mãe. TIRÉSIAS – Todo o mundo sabe que Mérope e Políbio não podiam ter filhos. Mérope é maninha ou Políbio era estéril, ou ambas as coisas. Consultaram um oráculo... ÉDIPO – Também eu. TIRÉSIAS – Em todo o caso, o oráculo não mente... ÉDIPO – Ultimamente só diz meias-verdades!!! TIRÉSIAS – Que presunção a tua! Nasceste com o rei na barriga e já não te basta ceifar a vida ao teu pai carnal para o substituíres no trono e na cama, como ainda pretendes anexar a terra onde encontraste refúgio. Não admira que o destino seja severo contigo, Édipo. Jamais Tebas viu nascer homem mais infame do que tu. Ouve-se na assistência um comentário gritado: «O incesto é um crime imperdoável!» ÉDIPO (disfarçando um involuntário estremecimento) – Não foras tu cego, e por isso reles e ruim, tirava-te a vista e o pio. TIRÉSIAS – Coitado de quem tem olhos para não ver. Não te aflige viver numa cidade onde há mais piras do que lares, e onde, não tarda muito, haverá mais mortos fedorentos do que vivos merecedores de covas, carpideiras e preces? ÉDIPO – Podes tu, cego e indigente, saber mais de mim, que tenho de Corinto tantas lembranças, do que eu mesmo? TIRÉSIAS – Os homens recordam melhor as histórias que lhes foram contadas do que as cenas vividas. ÉDIPO – Os cegos inventam o que não vêem. Porque não têm outro remédio. Silêncio. Pontuado por trovões. Rebenta uma curta chuvada tropical. TIRÉSIAS – Os cegos não têm medo da escuridão. Mas também não têm medo da luz da verdade. Não é difícil um estrangeiro fazer-se passar por outra pessoa. Chegas aqui esfarrapado, descalço, descomposto, e, antes de tomar de assalto o poleiro de Tebas, proclamas alto o bom som que és herdeiro do poleiro de Corinto. ÉDIPO (troçando para controlar os temores e tremores que o sacodem) – Blá, blá, blá. O cego fala daquilo que não viu. O cego não viu aquilo de que fala. O cego tem o coração cheio de queixas e a


boca cheia de incriminações... (Virando-se para o público.) Mas de que me acusa a cegueira do cego? E que cegueira é a sua? A da justiça que não distingue o inocente do culpado? TIRÉSIAS – Não, a do amor. A do amor a cujas flechas ninguém escapa. Bem mais estimável do que a cegueira da justiça. Édipo olha para os pés. Silêncio tenso. TIRÉSIAS – Foi dito a Laio que o seu único filho o mataria e fornicaria com aquela que foi tão sua esposa quanto mulher e mãe dele. ÉDIPO – Meu caro vidente, se os reis de Corinto formam um casal estéril, que dizer dos consortes Laio e Jocasta? TIRÉSIAS – Precisamente. E será preciso que te lembre as fundas raízes da tua maldição... ÉDIPO – Não, poupa-me. As histórias de Tebas cansam-me. Se eu fosse mulher já tinha emprenhado pelos ouvidos. TIRÉSIAS – Melhor se defende aquele que sabe do que aquele que ignora. É para isso que servem os oráculos. ÉDIPO – E alguém lhes escapa sabendo? TIRÉSIAS – Melhor acolhe o destino quem o conhece de antemão. Ou não? ÉDIPO – Não preciso de conhecer as avarias de Laio para conduzir melhor os destinos de Tebas... TIRÉSIAS – Julgas tu. A força do destino é directamente proporcional à duração da maldição. ÉDIPO – Olha, cego duma figa, só é maldito quem ouve aqueles que maldizem. TIRÉSIAS (elevando o tom) – Um rei não se pode dar ao luxo de fazer ouvidos de mercador. Não podes tu mais do que os que vieram antes... ÉDIPO (agastado) – Se me voltas a falar no cabrão do rei Laio, os meus guardas atiram-te às feras e não há oráculo que te salve. TIRÉSIAS (sorrindo) – Quem sai aos seus... Não é de espantar se o filho do canhestro claudicar. Ouve-se na assistência um comentário gritado: «Cá se fazem, cá se pagam!» ÉDIPO (gritando quase) – A cidade jubilou quando se soube livre da esfinge. E o outro monstro caiu numa ribanceira. Os monstros são mais estúpidos do que se imagina. Mas a monstruosidade nem sempre está onde se imagina. Duma só cajadada, livrei a cidade de duas inconveniências. TIRÉSIAS (martelando as palavras) – Estava escrito que o farias. Como estava escrito que Cadmo, o irmão da bela Europa, fundasse Tebas. Como estava escrito que o trono de Tebas fosse usurpado pelos filhos de Antíope. Como estava escrito que o pequeno Laio seria protegido dos dois intrusos e


levado para fora da cidade antes do ataque. Como estava escrito que Laio seria acolhido por Pélope como tu foste recebido pelo falecido Políbio. ÉDIPO – E estava escrito que Laio se apaixonaria por Crisipo, filho do rei que lhe dera agasalho? TIRÉSIAS – Estava escrito que o pederasta Laio sequestraria o seu amado e, a pretexto de lhe ensinar a conduzir uma quadriga, regressaria a Tebas onde se uniria à tua esposa. ÉDIPO – Grande cabrão. E que fez ele do puto que raptou? TIRÉSIAS – Dizem que morreu de vergonha. Enforcou-se. Ouvi, não vi. ÉDIPO – Que horror... Esse estupor teve o que merecia. TIRÉSIAS – Foi ao encontro do seu destino. Como toda a gente... ÉDIPO – Deixa-te de conversa patética e pateta. O que para mim conta é desfazer o nó cego da difamação. O casamento de Laio com Jocasta não foi consumado. O estupor gostava de mancebos. Pelo que, ainda que eu não fosse filho dos reis de Corinto, não poderia ser filho dos reis de Tebas. Talvez seja filho de uma amável pastora, quem sabe... Na verdade, havia uma pastora protegida de Mérope que me olhava com invulgar doçura. TIRÉSIAS – E esse nome que usas e te usa, esse nome que te pesa e te persegue, esse nome que te recorda o fardo da enfermidade? Alguém inventaria algo tão aleivoso como furar os pezinhos de um recém-nascido e pendurá-lo num galho? Enfim... há quem diga que foi deixado no chão como um cordeiro de patas amarradas, um cordeiro a abater... ÉDIPO – E quem te diz que esse meu nome me foi dado à nascença? TIRÉSIAS – Tudo e todos mo dizem e repetem em todas as esquinas de Tebas. ÉDIPO – A mentira, lá por ser repetida, não passa a ser verdade. Os pés inchados que o meu nome... acaba por inchar ainda mais... vêm das muitas milhas que percorri. Descalço. Quantas vezes por maus caminhos... TIRÉSIAS – Maus caminhos, sim, e até muito maus caminhos!!! Apesar de tudo, não ousas negar que foste directamente responsável pelo fim abrupto do defunto rei. ÉDIPO – Não há nada para negar. O estupor teimou em não me deixar passar e teve a sua paga? TIRÉSIAS – Às tuas mãos morreu, queres tu dizer? ÉDIPO – Às mãos do destino. Mas ainda mais da sua soberba e da sua casmurrice. TIRÉSIAS – Não negas ter casado com Jocasta depois de teres vencido a esfinge? ÉDIPO – Não há nada para negar. Mas isso não faz de mim assassino de Laio. Que culpa tenho eu se ele quis passar à viva força quando não tinha prioridade? Que culpa tenho eu se os cavalos se assustaram a meio da ponte e desataram a dar coices e a piafar desenfreadamente? Que culpa tenho eu que o parapeito da ponte estivesse de há muito em ruínas, pelo que o carro régio resvalou para o


rio desamparadamente? Que culpa tenho eu que Laio não soubesse nadar? Aliás, meu caro vidente, o tribunal ilibou-me e não vejo razão nenhuma para reabrir o dossier. Quanto a Jocasta... é verdade que Creonte decretou que Jocasta me fosse dada em casamento. Mas não é menos verdade que a nossa relação é bastante casta. Aliás, ela nem está em idade de procriar... Limitou-se a adoptar os quatro filhos que tenho de outra mulher. Ninguém no seu perfeito juízo acredita que a rainha seja avó dos próprios filhos... TIRÉSIAS – E a Esfinge? Estava escrito que vencerias essa besta assombrosa. Estava escrito que a cidade deixaria de estar sob o seu domínio nefasto. ÉDIPO – Vencer vencer... eu não chamaria vencer ao que aconteceu. A Esfinge era velha. Melhor dizendo: pertencia ao mundo antigo. De facto ela partiu. Retirou-se. Não sei se pesarosa. Esfíngica. Tão enigmática no partir quanto no ficar. TIRÉSIAS – Estás a esquivar-te, rei Édipo. Mas nem sofismas, nem falácias, nem chicanas, nem evasivas te defenderão do destino que age prescindindo de argumentos. Se admites que Mérope, soberana de Corinto, que te criou, pode não ser tua mãe, também podes reconhecer que a pastora, que te recolheu, pode não ser tua progenitora. Repara como parece ter-lhe sido fácil abandonar-te... ÉDIPO – Falas do que não sabes. TIRÉSIAS – Não, falo do que tu, rei Édipo, não sabes. E o que tu ignoras, rei Édipo, é donde vens. Não conheces as tuas origens, ainda menos podes prová-las. ÉDIPO – Se eu não posso, quem pode? TIRÉSIAS – Pode a voz do povo. Não há fumo sem fogo... O falatório. O rumor. A intriga. O mexerico. O diz que diz. O maldizer. ÉDIPO – São fontes bem informada e fidedignas. Não gozes comigo. TIRÉSIAS (perverso) – Queres que chamemos Jocasta para nos ajudar a desemaranhar esta meada? ÉDIPO (gritando quase) – Deixa a rainha em paz. Ultimamente tem andado muito em baixo. Não é ela seguramente, tão secreta e discreta, que te pôs a par das tuas epifanias ímpares. Aliás, ainda não referiste nenhum informador que mereça esse nome. E nem sombra de um indício sério. TIRÉSIAS – Vou-te dar um exemplo. Acaso sabias que a tua pastora te chamava Oidipous que não quer dizer pé inchado mas sim filho do mar encapelado? Acaso sabias que ela te encontrou a boiar no rio, metido dentro de uma alcofa como o profeta Moisés? ÉDIPO – Eu só não percebo bem em que é que adensar o mistério da minha origem ajuda a provar que sou filho de Jocasta. Mas nada disso tem a menor importância a meus olhos. Não importa quem deu ou não deu à luz. Importa quem cuida e educa. A sagaz sentença de Salomão provou à saciedade que mães pode haver muitas mas só quem cria e vê crescer prefere que o filho parta a vê-lo repartido. TIRÉSIAS – Estás a ser injusto com a pastora dos olhos doces. Nem todas as pastoras deste mundo recolhem os bebés que encontram a flutuar quando vão dar de beber aos bichos.


ÉDIPO – Até parece que a vida é um conto de fadas, com crianças abandonadas atrás de cada árvore e pais que abandonam filhos a cada esquina. Quem disse que eu queria mal a essa pastora que mal conheço? TIRÉSIAS – Tu isso subentendeste... Pelo que afirmaste, os louros da maternidade cabem à rainha maninha que te criou e não à pastora mãe de muitos que te recolheu. ÉDIPO – Nem uma coisa nem outra. Se Mérope não podia ter filhos, era natural que adoptasse crianças, tanto mais que não lhe faltava tempo, nem espaço, nem posses... Quanto à pastora, sendo ela mãe de um rebanho e zeladora de outro, era mais do que normal que oferecesse o mais novo à rainha que lhe prometera criá-lo como seu filho. Ou não? Ouve-se na assistência um comentário gritado: «Mãe há só uma!» TIRÉSIAS – Não há nada de natural, nada de normal na tua biografia. ÉDIPO – Falas como se eu já estivesse morto. Ou como morto... TIRÉSIAS – Lá chegaremos, lá chegaremos. Por ora só quero que confesses que nada sabes das tuas origens, que desconheces a tua ascendência. És um pobre meteco, Édipo. Ignoras donde vens e para onde vais. ÉDIPO – E não é essa a condição de todo o homem? (Forçando-se a rir.) Édipos há muitos!!! Donde te vem a ideia peregrina de que Édipo, Édipo rei, Édipo eu, é filho de Jocasta? TIRÉSIAS – De Sófocles homessa!!! ÉDIPO – Pois andas mal instruído. Tens mais lábia que erudição. Séculos antes de Sófocles ser dado à luz, já Homero, o poeta, tão cego como tu mas bastante mais vivido e sabedor, falava de uma tal de Epicasta, suposta mãe de Édipo, que Ulisses teria encontrado nos Infernos. (Forçando-se a rir.) O único ponto comum entre uma e outra é que ambas são castas, uma no modo épico, a outra a descambar para o jocoso. TIRÉSIAS – Queres tu dizer que há muitos Édipos e muitas mulheres castas por aí espalhadas. Seja. Compreendo que te seja doloroso tratar o tema do teu obscuro, porventura vergonhoso nascimento. Também te compreendo quando insinuas que as fêmeas podem invariavelmente ser putas excepto as tuas mães. Não é aí que bate o ponto. (Compõe um ar grave.) Todos os dias a peste dizima dezenas de tebanos e ameaça contagiar os restantes. A peste é o que mais clamorosamente te acusa e condena. Não consegues vestir a pele do culpado? Veste pois a pele do inocente. Os deuses reclamam um sacrifício relevante. Quem mais valorosamente do que um rei pode pagar o preço o mais alto preço pelo bem-estar dos seus súbditos? ÉDIPO – Mas que preço é esse? TIRÉSIAS – Só tu podes fixá-lo. É o preço que estiveres disposto a pagar. ÉDIPO – O que querem os deuses ao certo? Que ampute um braço ou uma perna? Que corte uma orelha? Que corte o sexo, talvez...


TIRÉSIAS – Falas como se a vida te tivesse castigado muito até ao momento presente, quando, na verdade, ora a fortuna te poupou, ora a sorte te bafejou. ÉDIPO – Lata não te falta, vidente arrogante, regado de vinho e mel por uma cidade que te ouve como se trouxesses a palavra dos deuses debaixo do palato. De nós dois, quem será o mais bemaventurado? Eu, sufocado pelos ultrajes, desde sempre achincalhado dos pés à cabeça? Ou tu, a quem se agradecem augúrios e vaticínios antes mesmo de os proferires? TIRÉSIAS – Tens carradas de razão. Eu sou um felizardo. ÉDIPO – Se continuares a troçar, talvez te saia cara a brincadeira. TIRÉSIAS – Não estou a troçar. E passo já a trocar aquilo que não é troça nem mofa por miúdos para vossa majestade não se amofinar. (Com um ar tão sério que quase parece cómico.) Sim, a cegueira de Tirésias, a minha total invisão do mundo é um bem inestimável. E conquistado a pulso. ÉDIPO – Não me digas. Em que campo de batalha? TIRÉSIAS – No mais violento de todos: o meu âmago. Antes de abraçar este ofício, passei por provas e provações mais duras ainda do que as tuas incertezas. Sete anos a fio me vi mulher e, por não mentir com todos os dentes, a mais poderosa das mulheres tirou-me a vista. Às vezes basta matar uma besta venenosa para ter a vida envenenada. E daí para a fren... ÉDIPO (agastado) – ...em que é que isso fez de ti um homem mais feliz do que a média? TIRÉSIAS – Se me interromperes não vais saber, ó rei. Quando se perde um dos cinco sentidos, os outros ficam ferozmente aguçados. Ainda por cima, dos cinco sentidos, a visão é o que mais nos distrai da natureza brutal das coisas e dos acontecimentos. Não é que as aparências são enganadoras. Elas são o que há de mais real, mas também o que só muito dificilmente deciframos. Ouve-se na assistência um comentário gritado: «Em terra de reis, quem tem um olho é cego!» ÉDIPO – És mais falante do que bem-intencionado. Queres que te inveje. Queres convencer-me de que estás acima da sageza dos reis só porque perdestes os olhos em não sei que batalha... Queres baralhar-me. Queres que eu fique como um touro no meio da ponte, em lugar de seguir o meu caminho. TIRÉSIAS – E confessa que já te convenci, Édipo rei. Estás e estarás no meio da ponte entre os homens e os deuses, porque foi aí que o teu destino bifurcou. ÉDIPO – Insolente! Não passas de um mendigo insolente. TIRÉSIAS – Verdade. Tanto mais insolente quanto nada temo. Não verei a morte aproximar-se da minha sombra porque não vejo. Mas vejo tudo o que os homens não me escondem por julgarem que não vejo. E vejo um rei, mais cego do que eu, que não vê os montes de corpos putrefactos, as crianças órfãs e nuas perdidas pelas ruas da cidade, onde cada dia se queimam carnes pestilentas e roupas infectadas. ÉDIPO – E quem... ou o quê... te dá autoridade para lidares assim com o teu soberano? Esperas clemência depois deste desaforo?


TIRÉSIAS – Não, Édipo rei, espero que descubras o que obscuramente irmana aqueles que olham a partir da escuridão. Aqueles que lêem nas entrelinhas das vozes. Aqueles que, por não enxergarem a face das coisas, incansavelmente imaginam as suas mil facetas. Aqueles que vêem com o coração o que aos olhos é invisível. Silêncio carregado. ÉDIPO (com os olhos esvaziados) – É estranho. Isso que dizes lembra-me um conto contado. Mas quem mo contou? Onde me foi contado? Silêncio carregado. ÉDIPO (com os olhos esvaziados) – Também queres mandar na minha memória, mendigo infame? TIRÉSIAS – Não, Édipo. A cada minuto que passa és mais realmente rei. És mais realmente Édipo. E a minha autoridade provém da tua. E o mais alto patamar da autoridade é renunciar à autoridade. Despir-se dela para cingir o corpo trémulo do mundo. ÉDIPO – Se assim tivesse de ser, quem educaria os meus filhos? Quem guiaria os meus súbditos? TIRÉSIAS – Sabes por experiência própria que os filhos fogem de quem os educa e os homens de Tebas das sete portas estão sempre fora e dentro ao mesmo tempo. Silêncio carregadíssimo. ÉDIPO – O que é um adivinho? TIRÉSIA (sacando a resposta da sua reserva de eloquência como se tirasse um coelho da cartola) – Um adivinho... Um adivinho é alguém que, como tu, está pronto a sacrificar as incertezas no altar da ilusão. O mais alto dos altares. E fá-lo de muito bom grado, embora de coração pesado. Para poder, na eterna contra-luz, saber finalmente donde vem e para onde, cegamente, vai. Black-out. 2º ACTO Escuridão. A luz sobe muito lentamente. Édipo, agora cego, de olhos vendados e braços estendido, procura Tirésias que está obviamente muito mais habituado a orientar-se na escuridão. Depois agarra no cajado que traz preso à cintura e bate no chão, buscando desesperadamente o interlocutor. Édipo chama pelo nome do adivinho. Tirésias esquiva-se, brincando ao gato e ao rato com o rei destronado. Até que, finalmente, se deixa tocar... ÉDIPO – Já não era sem tempo!... Não sei se andas fugido ou se sou eu que não consigo encontrarme com ninguém. TIRÉSIAS – Sorte a tua... Eu, a toda hora sou solicitado. Raramente seguem os meus pareceres mas perseguem-me impiedosamente.


ÉDIPO – São mais sábios do que eu, todos esses que não acatam os conselhos vindos de ti. Pudera eu ter feito o mesmo... TIRÉSIAS – Que exagero! Na verdade deves andar bastante aliviado. A governação já não pesa sobre os teus ombros. Os teus filhos cresceram em petulância e rudeza – bem mais rijos do que tu. E as tuas filhas, ao que me dizem, são belas e saudáveis. Estás livre dos fardos mais pesados que um homem pode carregar. ÉDIPO – O mínimo da decência seria reconhecer que te enganaste... TIRÉSIAS – Eu? Enganar-me? ÉDIPO – Pois não. Não te enganaste. Enganaste-ME. O que é bem diferente. O meu sacrifício foi totalmente inútil. TIRÉSIAS – A peste largou as canelas dos tebanos. Que mais querias? ÉDIPO – Mas em lugar da peste, Tebas enfrentou uma guerra fratricida. Mal renunciei ao poder, os meus filhos varões viraram-se um contra o outro. Levantaram exércitos e puseram a cidade em estado de sítio. Ambos reclamaram para si o trono. Em exclusividade. E nenhuma negociação foi possível. Nenhuma promessa de apaziguamento e partilha foi cumprida. Perderam a vida ao cabo de um combate sem tréguas. Um horror. TIRÉSIAS – Sei que essas pestes eram teus filhos carnais. Mas tens de reconhecer que Tebas está bem melhor entre as mãos do Creonte que, no fundo, é um bonacheirão. Bem levado, chega a ser brando. Desde que não lhe pisem os calos, claro está. ÉDIPO – Esse falinhas mansas tem um coração de pedra. TIRÉSIAS – Não te fica bem a dor de cotovelo. Creonte meteu os arruaceiros na ordem. Fechou as tabernas onde os soldados se embriagavam dia e noite. Tirou da rua as rameiras. E tem as tuas filhas debaixo de olho. ÉDIPO – Nem uma lágrima verteu quando a pobre Jocasta se matou, essa ave de mau agoiro. Nem uma palavra de compaixão dirigiu à irmã quando percebeu que ela não suportava a suspeita de incesto. TIRÉSIAS – Achas mesmo que alguém podia consolar Jocasta? Não, não achas, sei que não achas. Nem irmão, nem esposo, nem filho. O raio que se abate sobre a velha árvore nem sempre impede que, na primavera seguinte, ela remoce. Mas uma mulher a quem um só golpe do destino rouba o amor e amor-próprio, a honra e a auto-estima, não pode levantar-se da lama onde se atola... ÉDIPO – Vejo que estás do lado do tirano. TIRÉSIAS – Terias tu governado com menos tirania? ÉDIPO – Coloquei os meus olhos no altar dos deuses vingativos para salvar Tebas do flagelo que lhe fora infligido. A teu conselho o fiz, e mil vezes voltaria a fazê-lo se isso trouxesse paz à cidade e ao meu espírito. Mas os tebanos ostracizam-me e vêem com maus olhos tudo quanto faço, a começar


pelo sacrifício que por eles fiz. Se acaso me cruzo com algum dos meus antigos súbditos, logo sou injuriado. Ultrajado. Enxovalhado de todas as maneiras. TIRÉSIAS – Os tebanos têm maus fígados. Não é defeito, é feitio. Faz parte da cor local. ÉDIPO – Os tebanos não perdem uma oportunidade de me atirar à cara palavras de maldição. Ou é porque sou estrangeiro, logo suspeito de deslealdade e causa de todas as desgraças. Ou é porque sou filho indigno, logo rejeitado, excluído... Não vão descansar enquanto não for banido e exilado. TIRÉSIAS – Como pudeste alguma vez ser soberano de súbditos que tens em tão má conta? Nem sempre um bom governante respeita os caprichos do povo. Mas só um estrangeiro... intruso, invasor, usurpador... fala dos governados com tão pouca estima? ÉDIPO – E o que fiz por Tebas não pesa no prato da balança? TIRÉSIAS – Lá estás tu com a mania das balanças e das pesagens. Agora que não vês e vês melhor, hás-de ter reparado que a repartição de equivalências nunca eliminou injustiças. Nem entre os homens nem entre os deuses e os homens. ÉDIPO – Agora que não vejo... Agora que não vejo, não vejo, ponto. Não vejo para além das aparências porque nem as aparências vejo. TIRÉSIAS – Quem te falou do além? Concentra-te no aquém. Contenta-te com o aquém. ÉDIPO – Concentrar-me? A minha vida resume-se a tentar evitar obstáculos, barreiras, empecilhos. O mundo está cheio de ciladas. TIRÉSIAS – Se ficasses quietinho e sossegado, o mundo vinha até ti e lambia-te os pés. ÉDIPO (exaltado) – Mentira! Tu não és adivinho, és um mentiroso. Não és vidente, és um impostor. Um aldrabão que a cidade sustenta porque espalhas o medo à tua volta. TIRÉSIAS – Vê lá se te acalmas!!! Tebas gosta de mendigos modestos, de pedintes plácidos. Tebas escorraça os espíritos exaltados. Como é natural. ÉDIPO (já não ouve Tirésias) – Até as crianças... as crianças supostamente inocentes, me passam rasteiras. TIRÉSIAS – E quem queres tu que passe rasteiras a um cego a não ser as crianças por serem inocentes? Só as crianças conseguem ser inocentemente más. Súbito silêncio. Édipo treme de raiva. TIRÉSIAS – Trata de ficar mudo e quedo. Observa o mundo em vez de te sentires observado. ÉDIPO – É só lábia. É só lata... Labia e lata... lábia e lata. Só sei do que se passa em segunda mão. Muitas vezes sei do que acontece por ti. Que não és de confiança. Que só me contas o que te convém. Vivo na mais absoluta escuridão.


TIRÉSIAS – Fiz de ti um iluminado. Não passas de um reles ingrato. Não é a cidade que se mostra mal agradecido. És tu. És tu que gastas a luz que tens a remoer o teu rancor. És feito de ódio, Édipo. E o teu ódio vem de longe, de Corinto onde foste criado. Se te deste mal com a rainha Jocasta foi por ela não se parecer suficientemente com a rainha Mérope. Era o marido de Mérope que tu querias matar mas acabaste por matar o marido de Jocasta e também Jocasta por arrastamento. A escuridão com a qual te debates é o negrume do ódio. ÉDIPO (dirigindo-se ao espectadores) – Tentai avaliar o que é estar no meu papel. Fechai os olhos. Cerrai-os bem cerrados para que nem uma réstia de luz atinja os meandros dos vossos miolos. Vedes alguma coisa para além das trevas em ebulição? Adivinhais o que se passa à vossa volta? Pressentis o futuro como os bichos pressentem a bonança e a tormenta? Pausa. Eventual rumor na plateia porque a pausa se prolonga. TIRÉSIAS (quebrando o silêncio) – És uma mente quadrada, Édipo. Bem se vê que não és natural de Tebas. Os tebanos de gema quando não sabem inventam. ÉDIPO – O que tem a natureza a ver com isto? E a gema, a clara, o ovo, o cu da galinha? Se fui enganado quando tinha os olhos bem abertos, agora mais facilmente me escondem coisas e me mentem descaradamente. Nem vejo caras, nem vejo corações. TIRÉSIAS – Reduzes a tragédia de uma cidade, os seus conflitos intestinos, pessoal. É rasca. É reles. (Pausa retórica.) Enganado, enganado... até os deuses não houvesse engano, na terra como no céu, nada teria correcção possível. Já insuportável monotonia de um mundo sem erros, sem contradições, sem falsificações...

a um melodrama se enganam. E se para não falar na falsidades... sem

Silêncio. TIRÉSIAS – E, de falsário para falsário, eu te digo sem peias: é mentindo que se fabricam as melhores ideias. Silêncio. TIRÉSIAS – A mentira é mãe da ficção. Foi imitando verdades alternativas – isto é: mentindo – que se inventaram as artes e se produziram as grandes obras. Uma dança, um poema, uma máscara, uma estátua, são antes de tudo mentiras. ÉDIPO – Sobretudo são mentiras que um cego não pode apreciar. O manto de uma noite sem fim abateu-se sobre os meus dias. Se acaso me atrevo a apreciar ou aprovar qualquer coisa, logo alguém se diverte a deformar o objecto e o contexto, induzindo-me em erro. Porém, se pelo contrário duvidar ou reprovar qualquer coisa, ninguém se coíbe de me lembrar a deficiência que me limita e condiciona... TIRÉSIAS – Balelas. A verdade dos factos é algo que não existe. A verdade não existe. Os factos também não. Só existem possibilidades de verdade. Verdades múltiplas portanto. E os factos só ganham densidade quando interpretados. A tua choradeira permanente impede-te de pensar. Vais acumulando bruma sobre bruma no cérebro. Não resta espaço para as ideias. Não há recuo para saltar de uma noção para outra, de uma ilação para uma conclusão. És mesmo obra desenganada. Adenda


sem contrato. Nem mereces ser chamado pelo nobre nome de «cego». Não passas de um infame cegueta. ÉDIPO – Com a tua retórica, até os deuses enganarias porventura. Mas a razão está do meu lado. E a história também estará. TIRÉSIAS – Hi hi hi... Deixa-me rir. Essa é a mais sumarenta de todas as tuas parvoíces. A história é uma construção. Uma séria hipótese se formos optimistas... Seja como for, a história fica sempre do lado dos vencedores. E tu, até mais ver – passo a expressão –, não cabes nessa categoria. ÉDIPO – E em qual caibo, já agora? TIRÉSIAS – Escolhe tu: perdedor, vencido, derrotado, arruinado, dominado, aniquilado, subjugado, arrasado, destroçado, fracassado, desgraçado... Tens o embaraço da escolha, ó cegueta rabugento. Silêncio de consternação. Concerto de suspiros vindo da plateia. ÉDIPO (lento e violento) – Julgas que eu ainda não percebi a tua táctica? Falas como um general à frente de um exército de palavras e tens sempre uma jogada na manga. Vences por antecipação e atordoas. TIRÉSIAS – Só perde as batalhas quem se dá por vencido. Só as ganha quem as vence antes de as travar. Édipo levanta o seu cajado. TIRÉSIAS – Afinal és filho de rainha ou filhote da pastora? Nasceste para conduzir ou para ir atrás das ovelhas? Édipo procura Tirésias agitando o seu cajado. Este último, impávido e sereno, prossegue a sua discursata. TIRÉSIAS – És um descendente da dúvida. Fraca estirpe. É a dúvida que pulveriza tudo quanto tocas. É a dúvida que te despoja de todas as certezas, da mais comezinha e precária à mais colossal e indefectível. E, infelizmente para ti, não nasceste filósofo. Os filósofos são os únicos seres a quem as dúvidas vão sendo perdoadas. Quando germina no cérebro de outras criaturas, a dúvida é vista – passo a expressão – como pura ignorância. Então, para vencer e convencer um único ouvinte ou uma plateia inteira (designa a plateia com a mão enquanto Édipo continua a procurá-lo com o cajado?), é preciso ser afirmativo. Peremptório. Categórico. A luz do dogma é mais intensa do que o pequeno fulgor da dúvida. Farol por comparação ao pirilampo. Avançar, ir em frente. Olhar para o lado – passo a expressão – leva a que se pressinta o abismo. Olhar para o outro – passo a expressão – faz com que o abismo se abra dentro de nós mesmos, como uma ferida nunca totalmente cicatrizada. Olhar para trás – passo a expressão – é... é resvalar. (Sente que o cajado de Édipo quase o atingiu, e afasta-se.). Claro que toda a gente gostaria de recuar até ao ovo e, eventualmente fazer da vida um vaivém. Mas só se nasce uma vez. Só se vive uma vez. Só se morre uma vez. E tu, Édipo, foste voraz, gastaste o teu destino demasiado depressa. Até a Esfinge aniquilaste em três tempos quando só ela nos obrigava a lidar com o mistério sem querer desvendá-lo. Gastaste o teu destino demasiado depressa. Adivinhaste o enigma em três tempos mas não tinhas estofo nem para ser rei, nem para ser adivinho. Gastaste o teu destino demasiado depressa.


ÉDIPO (batendo com o cajado no chão) – Serpente! Sofista! Senil! O enigma, esse tal mistério com o qual se deve viver a fim de que não seja desvendado é uma história de patas. A criatura que tem sucessivamente quatro, duas e três patas. A criatura que, contrariamente à lei geral, é mais fraca quando tem mais patas. Essa criatura sou eu, salafrário! Língua de víbora velha! Foi preciso que a Tebas chegasse um homem conhecedor da dor de possuir patas para ler nos olhos da Esfinge, o pequeno mapa do seu pequeno destino. O mundo é grande, a dor incompreendida porque imensamente incompreensível. Mas muito curta a distância entre Corinto e Tebas das Sete Portas e muito escasso o meu entendimento. Quem não se perde pelo mundo fora, perde-se no mundo de dentro. Porém, depois desta vida sobre quatro, duas, e agora três patas me ter esmagado como um penedo rolando devagar, consigo decifrar na muralha das tuas palavras o motivo que norteia o teu infinito despeito. Não disseste tu algures, que terrível é saber, quando o saber de nada serve a quem o possui? Estiveste a dois dedos de confessar a tua impotência, essa que tão laboriosamente camuflas debaixo de camadas de palavras, como os mortos mumificados sob quilómetros de faixas. Celerado! Nem bem homem, nem bem mulher, nem bem cego, nem bem vidente, insuficiente e não clarividente, sublimaste o teu ressentimento lançando, por meio dos teus conselhos perversos, os reis contra os reis, os príncipes contra os príncipes, os filhos contra os pais. Tirésias sente-se atingido e começa então, já não a furtar-se aos golpes de Édipo defendendo-se com desenvoltura, mas a atacar encarniçadamente. As vãs investidas de Édipo evoluem pois para um combate cego e implacável entre implacáveis cegos. ÉDIPO – Verme e menos que verme é o que tu podes ser para ocultar o vazio entre as pernas, o buraco no lugar do coração, a máquina de falar no lugar do cérebro. E quanto aos olhos, vês o bastante para não seres absolutamente cego mas não o suficiente para seres adivinho. Pobre embusteiro. Impostor sem génio. Sem rasgo! Comediante mesquinho. E medíocre! Só aprendeste de cor esse papel deplorável. Que farás agora sem papel, apenas pele. Apenas pele. O combate cego entre cegos prossegue durante um tempo relativamente longo e incómodo. E depois, black-out. À faca.


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