A POESIA FEITA POR TODOS Mal nos debruçamos sobre a história do movimento surrealista, confrontamo-nos com intransponíveis contradições: embora se opusessem à instituição literária – a figura do «literato» já adquirira, no início do século XX, uma conotação pejorativa, em proveito da figura do «intelectual» –, a maioria dos surrealistas, a menos que desde o início se tivessem consagrado às artes plásticas, viveram ainda assim da pena; embora, na época «Dada», tenham chamado à sua revista Littérature «por antífrase», foi no campo literário que combateram, tanto para denunciar as fraquezas éticas de certos autores como para defender uma concepção imaculada e libertadora da poesia; etc. O surrealismo abraçou a tarefa de expor o «funcionamento real do pensamento», deixando exprimir-se o inconsciente revelado por Freud – através dos relatos de sonhos, das conversas sob hipnose e sobretudo da «escrita automática». A escrita automática continuará a ser a experiência, até mesmo a prova, obrigatória para integrar o grupo surrealista e as suas actividades; André Breton valorizava-a a ponto de a qualificar de «acto de surrealismo absoluto». Note-se que o «Manifesto do Surrealismo» foi, originariamente, concebido com prefácio para a antologia de textos automáticos, de Breton, intitulada Poisson soluble (Peixe solúvel). Todavia, a maioria dos autores surrealistas, apesar de sensíveis ao alargamento das possibilidades de enunciação proporcionado pelo «ditado do inconsciente», não prosseguiram essa concreta prática. Por outro lado, convém sublinhar que a redacção de panfletos e de textos críticos ocupa no grupo um espaço nitidamente superior ao dos poemas – inclusive em termos quantitativos, nomeadamente nas inúmeras revistas que o grupo (ou os grupos pois o surrealismo depressa se disseminou tanto em França como noutros países) nunca parou de publicar. É ao nível dos engajamentos éticos e políticos que o grupo se consolida ou que as exclusões são sentenciadas – a maior parte dos poetas que entram em comunicação com Breton passam pelo surrealismo mas não se mantêm no grupo, preferindo prosseguir uma carreira em vez de se sujeitarem a discussões quotidianas e a julgamentos irrevogáveis; as rupturas sucedem-se, com mais ou menos alarido, sendo que os motivos ideológicos invocados frequentemente encobriam dissensões pessoais e privadas. «Revolucionários sem revolução», citando o título de Thirion, os surrealistas não conseguiram nem «transformar o mundo», nem «mudar a vida», na melhor das hipóteses conseguiram alterar a hierarquia dos valores intelectuais – restituindo à infância e à prática de jogos diversos um lugar preponderante – e sobretudo libertar os enunciados, antes de mais nos textos poéticos, das cangas e das cadeias sintáxicas e silogísticas. O surrealismo, ao explorar o «estupefaciente imagem», abriu horizontes infinitos e desconhecidos aos poetas futuros. No entanto, com o recuo que um século de distância autoriza, há que reconhecer o risco do «estereótipo surrealista», tanto através da imagem propalada das actividades do grupo a partir da sua dissolução e da sua historicização – e recorde-se que o dito grupo criou inúmeros inimigos no seio da intelligentsia parisiense – como através das produções incipientes de jovens entusiastas, que amiúde viriam a abandonar a escrita poética, ainda nos tempos áureos do grupo. A injunção de Ducasse – «a poesia deve ser feita por todos» – nunca deixou de ser a palavra de ordem dos surrealistas. Na presente antologia, tentámos oferecer aos leitores uma amostra, por vezes mínima, dos textos poéticos de todos quantos, entre 1925 e 1966, se aproximaram ou entraram em comunicação com os surrealistas parisienses; cingimo-nos aos poemas escritos em língua francesa, excluindo portanto numerosos autores não francófonos, mas restituindo aos poetas belgas o papel eminente que muitas antologias negligenciam. Cabe ao leitor navegar por entre esses atóis poéticos – errando de poema em poema, pois a poesia em dose demasiado alta, como qualquer droga, é indigesta – e descobrir, ao sabor das imagens propostas, as suas preferências. F Saguenail