A ALQUIMIA DO VISIVEL Curiosamente, o empenhamento das personagens de T. Angelopoulos só é tão radical, em termos de ruptura, devido à sua «xenidade» (condição de estrangeiros). As personagens do cineasta grego estão simultaneamente no centro dos acontecimentos e na margem: os manifestantes não tomam posição em relação à projecção do filme de H. Keitel-Ulisses, mas juntaram-se à volta do local da dita projecção cuja banda sonora se mistura com as palavras de ordem (O OLHAR DE ULISSES). Em verdade, encontram-se numa situação de exílio, voluntário ou imposto pela repressão, exílio que tanto pode ser vivido alhures como dentro do seu próprio país ou até no espaço do lar (O APICULTOR). Do seu comprometimento, da sua participação, no fim de contas conhecemos apenas a sua presença, o seu olhar — os protagonistas apresentam-se como figuras do autor: mesmo quando não são cineastas (A VIAGEM A CÍTERA) são testemunhas. Angelopoulos define, por um lado, uma função do cineasta, por outro, um modo particular de funcionamento do cinema: a passagem da imagem ao símbolo — e este último processo deve ser descrito em pormenor. A situação encenada — denunciada? — desenha-se não tanto através de reacções mais ou menos violentas, mas, pelo contrário, através de ínfimas modificações dos gestos que perderam o habitus e que, pouco a pouco, reconstituem novos ritos de sobrevivência precária. Como losseliani, Angelopoulos é capaz de construir todo um ritual etnologicamente verosímil cuja justificação será de ordem puramente simbólica: a jangada à deriva em que o casal de velhos se reencontra no fim de A VIAGEM A CÍTERA; o casamento à distância nas margens opostas do rio em O PASSO SUSPENSO DA CEGONHA; os campos atapetados de neve e povoados de emigrantes clandestinos que atravessaram a fronteira a pé em O OLHAR DE ULISSES... É graças à sua verdade enquanto imagens (donde um ritmo lento, não de montagem mas ao nível dos movimentos de câmara — precisamente o contrário de M. de Oliveira) que essas representações se elevam ao plano do símbolo: a solidariedade do casal de velhos excluídos, a negação da fronteira imposta aos amantes, a errância dos emigrantes — verdadeiras figures in a landscape a que Losey não conseguira dar expressão em termos de imagem justamente... Assim, no último filme de Angelopoulos, começamos por ver formarem-se duas massas antagónicas que caminham uma ao encontro da outra — uma caracterizada pela água (os guarda-chuvas), a outra pelo fogo (os archotes); depois, acompanhamos o novo Ulisses que segue o percurso da colossal estátua de Lenine em busca de um porto seguro; por fim, após uma série de peripécias balcânicas, chegamos a Sarajevo onde descobrimos um nevoeiro que tudo apaga — imagem tanto mais terrível quanto significa o contrário da bruma final que revela a simbólica árvore às crianças — PAISAGEM NO NEVOEIRO (cujo fim não pode deixar de lembrar O SACRIFÍCIO de Tarkovski). Este processo que extrai das coisas materiais a quintessência do seu sentido simbólico chama-se «sublimação». Angelopoulos é de facto um dos nossos modernos alquimistas. S.