A idade ingrata

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IDADE INGRATA

Todas as personagens – João Adulto, João Vagabundo, JoãoZinho, João Dealer, João Pintor, João Camponês, João músico de Garagem, João Biscateiro, João Intrépido, João Enfermeiro e João Louco – são hipotético devir ou retrospecções de João. ACTO ÚNICO Quarto de dormir. Penumbra matinal. Rodeado de uma indescritível desarrumação, João está de pé a experimentar T-shirts. Todas elas são negras e só um olho muito conhecedor poderia destrinçar os detalhes que as distinguem. Desencorajado e ainda indeciso, senta-se de cócoras e passa as mãos pelo cabelo húmido, deixando sulcos nas madeixas escuras. João A entra em cena com um ar de poucos amigos, empurra com o pé direito as revistas e roupas que juncam o soalho. João A (duro) – É assim que tens preparado as tuas provas? João não responde. Levanta uma ilha de livros e papéis como se procurasse qualquer coisa, olha de relance para o intruso, ergue-se e coça displicentemente o tronco nu. João A – Não tens vergonha, puto? A tua cabeça anda tão desarrumada como o teu quarto. João (sorrindo) – A vergonha não faz parte do meu vocabulário. Nasci nu, durmo nu e, 'tas a ver, até já me custa vestir um trapinho para sair à rua. João A (grotescamente duro) – No laréu… Ao léu… Sem teres estudado. Sem teres arrumado o quarto. João (ameno) – Não tinha tempo para fazer ambas as coisas. E, indeciso como sou, também não consegui escolher. Portanto fui apanhar ar. Faz bem apanhar ar nas trombas. Depois tudo parece mais fácil. João A – Mas a vida não é fácil, pá. Tens obrigações. Tens a obrigação, na tua idade, de reconhecer que tens obrigações. Se não percebes isso agora, nunca hás-de ser ninguém neste mundo. A vida não é um jogo a feijões. Ele não cai do céu. Nada cai do céu. João (sorrindo ainda) – Pois é, agora nem os bébés vêm de cegonha. Estamos a ficar muito terra a terra.


João A percorre o quarto com um olhar ostensivamente reprovador. O adolescente boceja, estende-se na cama e fica a fitar o «tecto». João (sem despregar os olhos do «tecto») – Não se quer sentar? Até me sinto cansado só de olhar para si. João A – Ai sentes? E não sentes a espada nas costas? João (surpreso) – A espada? Que espada? João A – Estás encostado à parede. Não sentes a ponta? Tens a carne tenra, menino, a lâmina entra nela com uma facilidade que nem calculas. E, quando tiveres o gume enfiado nas costelas, ninguém te há-de vir arrancar a ponta de mansinho. João (rindo à gargalhada) – Você está louco. Não é aqui que você vai encontrar uma espada. Eu não curto armas. João A (iluminado) – Isso é próprio dos que se rendem. Dos que não dão luta. Dos que não vão à luta. Dos que não suportam a ideia de terem de vencer uma prova, um teste. (Dá um pontapé a uma peça de roupa). Dos que chamam sacrifício à dignidade e se deitam na cama que fizeram pondo muitos defeitos no colchão. Dos que preferem escorregar na banana a curvar-se para apanhar a casca. És um banana, puto, uma casca que toda a gente há-de pisar, porque a merda de alguns dá sorte aos outros, topas? João (semi-melancólico) – Pois é… os bébés agora nascem da peçonha. Enguiçados. João A – O teu enguiço tem um nome, puto. Chama-se preguiça. E é o caminho mais curto para o olho da rua. João (fitando o «tecto») – Na minha vida anterior, acho que nasci no olho da rua. (Sonhador). Mas a rua é um monstro simpático… tem mais de um olho. Olho pisco, olho vivo, olho de carneiro mal morto e até olho do cu. De que cor é o olho o cu? Quem tem medo do olho da rua? Quem… João A (interrompendo-o) – Julgas que tens graça? João vai para responder mas João A prossegue. João A – Até te ris sozinho das piadas que contas. Que tristeza! Não há nada mais parecido com um desgraçado de que um tipo que se quer desgraçar. Sabes uma coisa, puto? Neste mundo só há dois géneros: os tipos que têm o que merecem e os tipos que têm o que não merecem. Portanto a indecisão não é flor que se cheire. João – Também não curto flores…


João A – Nem flores, nem palmas, nem palmarés. Essa tem barbas, puto! Porque é que os gajos minorcas assobiam às garinas? Para não serem assobiados, topas? (Profunda inspiração). Julgas mesmo que tu não tens nada a perder? Olha, a primeira coisa que podes perder é a cama. Gostas de cama, não gostas? Gostas, está escrito na tua cara. Não custa nada curtir a rua quando se dorme debaixo de um tecto. Queres ser um desses gajos que nem sabem de que cama são? Desses gajos que andam com a casa às costas como os caracóis? É bastante interessante a vida dos caracóis… Quando o gajo precisa de esvaziar os tomates, junta-se a outro caracol e babamse… Caracol, caracol, põe os pauzinhos ao sol! Caracol, caracol, põe os corninhos ao sol… João V, vestido de vagabundo, jovem sem idade, entra em cena com um cobertor preso por uma corda a tiracolo. João V (para João A) – Ó meu, tens o carro mal estacionado. Dá aí papel que eu arranjote um lugarzinho ao sol. Depois mato o bicho e tu nunca mais ouves falar em mim. (Reparando em João, que continua estendido na cama). Não sabia que tinhas um filho. (Para João). Não te sobram aí uns trocos, pá? Ou então uma T-shirt… (Apanha uma T-shirt do chão). Esta é para deitar fora. (Experimenta desajeitadamente a T-shirt). Assim como assim, aquilo que cai ao chão é de toda a gente. (Para João A). não é, paizinho? João (bruscamente) – Este sujeito não é meu pai. João V – OK, não tens pai, não tem mal… Não te zangues… Era só para te ajudar a arrumar a casa. Eu nem gosto de preto… Suja-se muito. João A (erecto e doutoral) – Eis um perfeito exemplar da escola da rua. João V – Escola, o caralho! Quem disse que eu andei na escola? Olha, paizinho, se andei já não me lembro. João A (desdenhando olhar para o vagabundo e dardejando João com o seu olhar metálico) – Dá vontade de desviar a vista, não dá? Quem vai na rua até muda de passeio tal é o pivete! (Pausa estudada). E depois há os que olham para ele como se o sujeito fosse transparente… João – Isso é bom. João A – O quê? João – Isso é bom. João A – Isso o quê? João – As pessoas desviarem-se do nosso caminho. A gente ser transparente. Realmente (imitando a voz soturna e cavernosa de um mago do género «Starwars») o poder está na rua!


João A (tom de desprezo) – Que disparate pegado! Ainda és mais puto do que pareces… João (divertido, curvando as mãos em concha à frente da boca para simular um altifalante) – A rua tem sempre razão! Nem deus nem chefes! Viva o fedor! João V (para João A) – Apoiado! (Para João). Posso levar a T-shirt? João – Ó pá, essa não! Foi a que levei ao concerto dos «Soro Fisiológico». Tem um rasgão bué de importante na manga, que eu fiz ao saltar o gradeamento. Se quiseres dou-te uma, tipo camuflado, que eu já não uso. Só é preciso encontrá-la no meio da tralha toda. João V (muito digno) – Daquelas da tropa? Não te canses. Dá-me antes uma nota de mil. A fruta está cara como o caralho, meu. E um gajo na rua precisa de vitaminas. Podes considerar que é um empréstimo a longo prazo. João A – Vês, meu menino? Estendes-lhe a mão, pega logo no braço todo. Não sejas parvo! Com a massa que este senhor saca a arrumar carros, tu punhas os «Soro Fisiológico» a dar um concerto no teu quarto. João V (para João A) – O paizinho está no desemprego? (Sorriso chaplinesco). É que eu sei de uma rua atrás do Palácio da Justiça que ficou vaga desde ontem. O índio que tomava conta daquilo deu baixa ao hospital. Andava há uns tempos a queixar-se de dores nas cruzes, a malta julgava que era da humidade… afinal acho que tem pedra no rim, coitado. João (para João A) – No fundo os tipos sem eira nem beira são os mais solidários. E com imenso mérito porque nem têm de prestar contas a ninguém. João A – Onde tu vais buscar o mérito!? João V (impaciente) – Afinal não há nada para o pessoal, moços? João (piscando-lhe um olho) – O paizinho é um forreta. João V (retirando-se) – Foda-se! Com um pai assim um gajo nem consegue acreditar que algum dia teve mãe. Silêncio. João – E agora vais-me deixar dormir? João A – Que mania essa da cama! Muito gostas tu de dormir… Deve ser defeito de fabrico. Não queres inventar uma colicazinha? Não precisas de água chalada com montes de açúcar e umas bolachinhas para não ficares de barriga vazia?


João (espreguiçando-se) – Dormir é o acto de higiene mais antigo que se conhece. Sigo a tradição. E a tradição persegue-me, percebes? João A – Não me lixes. És um coirão. Ainda ninguém te pedia que puxasses pelo cabedal, já tu tiravas folgas e ficavas, feito mono, horas a fio em frente à televisão. Joãozinho Z, um miúdo duns treze anos, de rosto lunar e lívido coberto de borbulhagem, entra em cena pela porta entreaberta do guarda-vestidos. Joãozinho Z (voz magoada) – Eu não quero voltar para o hospital. João A (em tom de quem fala a uma personagem familiar) – Lá podes chonar o tempo todo. Joãozinho Z – O quarto cheira mal… e quase que não servem de comer. João A – Esgotaste o crédito de comida. (Suspiro teatral). Nem só de pão vive o filho do homem. (Olhando-o de alto a baixo). Mas a privação faz milagres, Joãozinho. Até estás a ficar com figura humana. João (irritado) – Você só fala para se ouvir, não é? João A – Digo em voz alta o fundo do pensamento. E cresço a cada palavra. Sou… sou um organismo em expansão com um apetite de império, pá! Joãozinho Z (voz magoada) – Aqueles medicamentos tiram o apetite. Cabem duas pessoas na minha cabeça… João – É assim tão mau? Joãozinho Z – Quando o primeiro se concentra, o segundo distrai-se. É um bocado como cair ao contrário… ou ficar preso nas asas. João A – Sabes, o teu mal era veres desenhos animados a mais. Ainda estás a ressacar. (Fala indiferentemente para João e Joãozinho Z; olhar em pingue-pongue). O mundo é dos gajos com mais olhos que barriga. Está aí, à tua frente, para ser devorado. Nenhuma comida sacia, o melhor manjar sabe apenas a acepipe, e a sobremesa vem sempre longe. Mas há uma coisa que não podes esquecer: o mundo é tal e qual tu o cozinhas. E quem não arrisca não petisca, topas? Joãozinho Z – O cota dá vontade de vomitar, mal abre a boca… João A – Ouve cá, meu fedelho, meu abortozinho, já não te lembras dos presuntos que tinhas quando foste internado? A mãe andava a chorar pelos cantos, escondida, para não ter de olhar para ti. E o pai meteu uma catraia de dezasséis anos na cama para se esquecer de que tinha


um filho. Este cota que aqui está caga na tua infância e na tua inocência e na tua doença e na tua convalescença. De alto e de repuxo. (Para João). Eu cá acho que os homens deviam nascer adultos. O mínimo que se pode desejar é que cresçam mais depressa. Os encantos da infância?! Foda-se… A infância é a doença mais grave da humanidade. Entretanto Joãozinho Z desligou-se da conversa e foi sentar-se a ler uma banda desenhada a um canto. João V volta a entrar em cena, trazendo consigo João D, um sujeito de cabelo esculpido a gel que enverga roupas «streetwear» de marca. João abre-lhes um sorriso franco, empurrando com a ponta do pé descalço papéis e trapos para lhes facilitar a circulação. João (jovial, para João V) – Ainda bem que voltaste. Eu e o papá estávamos a ficar sem assunto de conversa. João A (cínico) – Façam como se a casa fosse vossa. João V (ignorando-o) – É que a bófia hoje tá a tripar com o pessoal. Então eu passei pelo café Astral e disse aqui ao Juanito que mais valia um gajo desamparar a loja. Ó pá, este cromo não vê a cama há quase três dias mas na volta parece que saiu agora mesmo da capa de uma revista. Só lhe falta ser vendido com um brinde… João V ri a bandeiras despregadas. João A retira-se para o canto oposto a Joãozinho Z e faz uma chamada telefónica com um portátil (cujo conteúdo entusiasta se traduz por uma gesticulação eloquente). João D (empurrando o ombro de João V com um «paternalismo» arrogante) – Não ligues, meu. O Jota não existe. Eu dou-lhe um subsídio para ele não arredar pé ali da rua… caralho, tem fogo no rabo, a criatura. Nem me deixou acabar a torrada, tal era a pressa. (Encolhendo os ombros como um robot bem ensinado). Portanto, o teu negócio é na escola. Espero que tenhas tudo controlado. Esta merda requer mais treino que a fórmula 1… se te despistas, não te safas. Quantas queres? João (sorrindo) – Eu não quero nada. Só gosto da minha almofada. E da minha vizinha. A Mariazinha… (cantando) Eu não quero nada Só gosto da minha almofada E do traseiro da vizinha A Mariazinha… Daqui ninguém me tira Nem a cona da Zulmira Nem as tetas da Joana Prefiro a minha cama!


Só curto o tal traseiro Que vive nas traseiras… João V (interrompendo a cantoria) – Ó paizinho, este puto vale ouro. O que é que tu andas a fazer com um telemóvel da última geração? Põe-me este talento nos topes… Nem guito lhe dás para umas míseras sapatilhas. Ontem fiquei com o cartão de um cliente que anda de Ford Cortina e tem a mala cheia do bom e do melhor. Empresta aqui o telélé que eu encomendo já o enxoval do gato. João D – Jota, não me estragues o dia. O moço pensa que a música se faz com a poeira do edredão. (Levantando os braços como um robot bem ensinado). Mas o que é que eu vim fazer aqui? João V – Vieste dar um feriado à bófia. João – E conviver. Comigo! João V (para João D) – O puto é porreiro. É como as Barbies. Só lhe falta ter miolos. João D – Eu não sou ama-seca. João V – Pois não. Quem põe a mãe a tirar finos até às duas da manhã para arranjar uma fachada, tá mais na onda dos molhados. João A (que acabou o seu telefonema, muito alto para se sobrepôr a qualquer veleidade de protesto) – Então, sempre optaste pela escola da rua? Variante Gestão e Tráfico. João D (muito seguro de si) – Optar? Era preciso que o menino tivesse média… Olha-me a onda do cota, julga que esta merda é para quem não tem unhas. João A – Afinal, Johnny boy, nem na rua te aceitam. Vamos ter que pensar no futuro antes que o futuro te corte as unhas. João (displicente) – O futuro já está a ser. Nunca pára de ser futuro. É assim a minha maneira de ver e não me tenho dado mal com ela ultimamente. João A – Pois, é aquela fézada das bandas de garagem, do género «Não há perigo, o futuro vem ter comigo». Uma data de mal-cheirosos, charrados até à ponta dos cabelos, que põem a vizinhança doida porque começam a ensaiar à hora a que toda a gente se deita. É uma pena esses garotos não lerem inglês. Querem cantar em inglês mas não pescam nada do que lêem. Já toda a gente na América sabe que os charros só servem para abrir o apetite aos cancerosos. Estás a ver o atraso de vida… João G, quinze anos, cabelo comprido, madeixa descolorada, T-shirt vermelha enfiada por cima de uma camisa de pescador que parece ter dispensado qualquer contacto com a água,


entra em cena com um ar bastante pedrado. João V e João D aproveitam para se descartarem. Este último começa a fazer um charro grossíssimo. Joãozinho Z olha para ambos, visivelmente desconfiado, e volta a mergulhar na leitura da B.D. João G (desafinando) – Não há perigo O futuro vem ter comigo… Sei dar conta do recado E ouçam só isto, ó meus, Graças a Deus O pecado mora ao lado E eu quero ser castigado. João (tapando os ouvidos) – Foda-se! ó chavaleco, eu já dei nesse peditório. João G – Ó pá, a Mariazinha curtiu à brava, quando a gente lhe mostrou a maquettte. Só disse que tinha letra a mais. Tenho a impressão de que ela fica tótil assustada porque a malta misturou um bocado a mensagem com a cena da religião. João (com um ar sério e douto, estendendo os braços e pousando as mãos nos ombros de João G) – Chavalo, a Maria não percebe um corno de música. Ela é uma boa foda. Ponto. Parágrafo. Travessão. João G (ingénuo) – Achas? João – E tu achas pouco? Ouve lá, meu, uma putéfia que sai de casa para ir à missa e em vez disso vai abrir as pernas a todos os macacos da vizinhança… A domicílio, ainda por cima! Que mais queres? A garina é um tratado. E ninguém lhe devia meter ideias na cabeça. Nem sobre música, nem sobre culinária, nem sobre ecologia. Burra como um cepo é que ela é boa, meu. A criatura anda-me sete anos para ir do sexto ao nono e não aprende nada ?! Um caso de imunidade total à escola. Uma ave rara. Uma espécie em vias de extinção. A proteger. A defender com unhas e dentes. João G (ingénuo e malvado) – A gente devia dedicar-lhe uma canção. Uma canção não: o primeiro álbum todo! João A (que até aí se manteve na postura do observador desinteressado) – Vá lá, vá lá… vá que não saiu paneleiro. Depois de tantas papinhas e paparicos da mamã, era o mais certo. E essa tropa fandanga dos artistas é tudo uma cambada de pederastas. João V e João D rebolam-se no chão a rir, pateticamente divertidos com a conversa. Joãozinho Z nem levanta os olhos. João P, casaco de bombazine canelada por cima de uma T-shirt e calças de flanela coçada, entra em cena com uma pasta de desenho debaixo do braço.


João P (agastadíssimo) – Bolas! É mais difícil dizer adeus a um modelo do que despedir uma mulher a dias. Até as amantes costumam ser mais razoáveis. Pelo menos as que não são casadas… Foda-se, eu pago gajos para os pintar, não lhes pago para os comer. João A – Mas come-os!… João P (desenvolto) – Às vezes… nem sempre. Quando os gajos querem muito ser comidos, não consigo. A cama tem limites. João (para se armar) – Não me parece. Na cama tudo se resolve. João P – 'Tás noutro planeta, niño. É na cama que uma pessoa descobre que não se parece com o que é. Eu, no plano da minha essência, não ressono nem falo a dormir. O meu eu mais profundo aspira à morte e à putrefacção. Mas na cama escangalho-me todo. Sou mais velho sem dignidade. Sou mais feio sem desculpa. Sou mais belo sem resposta. Uma calamidade! João A – Afinal você é só pederasta ou também padece de impotência? João G (com a mesquinhez estúpida de um adolescente preconceituoso) – É uma bicha doida, o cota. João P (de alto e de repuxo) – Quem despreza quer comprar, não é Joaninha? Bicha doida, bicha cadela, bicho careta, bicho carpinteiro. A minha alma revê-se em todos os bichos da criação. Infelizmente o livro do corpo tem as páginas contadas. É um livro chato, com poucas imagens. O meu corpo diz que eu não devia ter saído da cama de grades e agarra-se a animais de peluche, percebes? João G (com uma vozinha sumida) – É tarado, o cota. João P (fazendo menção de lhe querer apalpar os colhões) – Pois sou, minha tarazinha, pois sou. E a balança nunca pende para o mesmo lado. João (aparvalhado) – O seu signo é a Balança? João P (tom de desprezo) – Julgava que andavas a estudar… Como é que um rapaz tão bem parecido pode ter uma conversa tão… obscurantista? João (sem se desarmar) – Eu estudo no café. Leio o jornal de fio a pavio. E li algures que o seu problema tem cura. Parcial. Mas os gajos da genética não tarda nada inventam mesmo a «solução final». João A (radiante) – Tá certo, pá, tá certo. Caramba, eu sempre disse que quem sai aos seus não degenera. João V e João D dormitam, com um sorriso de beatitude a pairar-lhes nos lábios entreabertos. Joãozinho Z não desprega os olhos do álbum. João G aproveita o calor da


refrega para se esgueirar e vai sentar-se à beira do puto, depois de ter apanhado uma revista de contéudo vagamente erótico do chão. Joãozinho Z, sem parar de ler, encolhe-se para o adolescente se poder acomodar a seu lado. João P (tom sonhador) – Arranjaste um conselheiro catita, ó puto. Tu tens o caralho na boca e o gajo segura. Vocês davam uma relação de simbiose interessante. Ah… pois é, já me esquecia… tu só sabes do mundo pelo jornal. João A – Deixa ladrar esse murcão. Com machos como nós o mundo nunca há-de caber nas mãos deles. O mundo há-de dançar aos nossos pés e ao som da nossa música. João – Tenho os pés dormentes. Comecei a dormir há muito tempo. E, quanto mais olho para o mundo, mais me sinto sonâmbulo. O que é o mundo? Um pesadelo de cimento e alcatrão com ecrãs a piscar atrás de cada janela. Se a humanidade for salva por alguém, será pela gente da terra, julgo eu. Às vezes penso que nasci no sítio errado. Que se fosse raptado por um cavalo ou um touro… e rolasse, desmaiado, até às margens de um riacho, talvez acordasse bem disposto. João C, jardineira rota e manchada de estrume e botas de couro ensebado, entra no espaço, cada vez mais sobrelotado, do quarto de João como se tivesse penetrado por engano no estábulo de um vizinho e não reconhecesse as vacas. Tem um ar de camponês de comédia; é a menos credível hipótese de João. João P, agastado com a conversa de João e João A, afasta-se e dedica-se a examinar os papéis, livros, cadernos do adolescente, abundantemente espalhados por toda a parte. João C (cuspindo ao de leve para as mãos e esfregando-as como se se preparasse para levantar um grande peso) – Ninguém está interessado numa formação jovem agricultor sem complexos nem futuro? Regos a cavar, lameiros a mondar, camas dos animais a refrescar? Com direito a rolar no palheiro e na erva… (Abanando a cabeça sem esperar por resposta). Pois é. Pois não. Vocês são mais do clube da erva proibida. João – És um dos tais desterrados? Leva-me contigo! João A – Com este palhaço? Tu ias com este palhaço? João C (melancolicamente irónico) – Banhos de lama e terapia pelo estrume. Eficácia garantida. João – Viva o fedor! Morte ao despertador! João C – A esta hora… que horas são? João – Não uso. João A – Nove e vinte e cinco.


João C – A esta hora já devia estar a almoçar. Levanto-me com as galinhas, sopas de cavalo cansado, uma bucha de queijo à pressa e aqui me tendes ó velhas. As ovelhas são umas cabras. Quando desatam a parir é logo parir em cadeia. Quando lhes pega a doença, ficam todas paridinhas. Parece um sindicato. E as vacas? Ter uma vaca é pior do que tratar de uma mãe entrevada. João A (para João, jubilante) – Tás a ver o programa? Antes ir para a tropa. Eu cá não percebo onde está a dúvida. Lixas a vida por não fazer a merda do teste que te livra do esterco…? De todo o esterco? Se não sais dessa apatia é porque não os tens no sítio, pá. João – Mais de metade da população vive de biscatos, não vive do emprego, porra! E os desempregados cheios de diplomas? E os quadros que trabalham mais de sessenta horas por semana como os mineiros no princípio do outro século? Nunca ouviste falar de mobilidade? De flexibilidade? O pessoal reage mal a essas palavras, a esses papões. Eu quero reagir por antecipação. Sei o que me espera, prefiro fazer do biscato o meu modo de vida. O meu trunfo. Não me obriguem a sentar o cu à frente de uma secretária e a rezar para que a cadeira não me enrabe. João C (como para si mesmo) – Acho que o catraio pode vir comigo. Lá na quinta nem cadeiras há. Só bancos corridos. João A (agarrando João pelo ombro como para o salvar de afogamento) – E acabar a vida a dormir na palha com as «ó velhas»? Ou a fazer a cama às vacas? Ou a enrabar as cabras? João C – Mas eu gosto do que faço. Não trocava a minha camisa pelo teu fatinho. João A (muito alto para atordoar João) – Quanto vale a camisa de um homem feliz? Quanto vale o homem feliz na hora em que empenha a camisa? A camisa, o coiro, o cabelo e até as partes baixas se for preciso viver abaixo de cão!? João C – Rafeiro. És um rafeiro tiozinho. Espero que morras envenenado pela vizinhança. Black out. De repente a luz falha na última fala de João C. Agitação no escuro. Uma voz desconhecida. É João B, recém-chegado. João B – O quadro fica na entrada. Não se mexam. Eu vou lá dar uma mão. Ruído de passos. Barulho de abertura e fecho de uma porta. João B – É geral. Não costuma durar. Esperem, eu tenho aqui uma lanterna de bolso. João B entra no quarto de João, iluminando o espaço com uma lanterna de bolso. João A – Tu é que escolheste este quarto interior… Não lembra ao demónio viver num sítio sem janelas.


João – Um quarto interior ajuda muito à vida interior. E sobretudo ajuda a esquecer o mundo lá fora. João A – Que conversa de chacha… Faz-te ao mundo, pá. Ele está aí para darmos cabo dele. Depois de nós, o dilúvio – nunca ouviste? João B – Olha, pouco mais velho do que tu, já eu ganhava para pagar a renda da minha madrasta. Estreei-me numa obra que depois foi embargada. Ainda me ficaram a dever a última semana. Fui colador de cartazes, moço de fretes num escritório de contabilidade… Andei a distribuir pizzas e panfletos. Até já trabalhei numa portagem mas não aguentei. Agora meti-me no porta a porta… Enfim, uma dureza. Não dá nem para mandar cantar um cego. Felizmente pude alugar uma sala na cave da minha madrasta. Com serventia de casa de banho. É quase tão escuro como aqui. (A luz volta). Mas tenho uma entrada privada. (Rindo). Só para mim e para os ratos. Eu não disse que ela voltava? João C – Já alguma vez tratou de animais? João B – Animais? Das galinhas da minha madrasta… Torcia-lhes o pescoço. João C – E tem gosto? João B – Gosto? João C – Sim, gosto pelos bichos. Há muito que fazer lá na minha quinta. Galinhas, coelhos, ó velhas. Comida e roupa lavada. A comida é tipo slow-food… João B – E a minha casa? Olhe que deve ser um bico de obra um gajo arranjar um quarto ao preço do meu no centro da cidade. Com entrada independente. E quando a minha madrasta bater a bota, ninguém me tira de lá. João A (irónico) – Essa porta privada é um céu aberto. João – Não é lá por haver gajos artolas, incapazes de se desenrascar, que a vida não pode ser uma aventura. O destino não está escrito e eu não tenho razão de queixa da minha madrasta. Durmo num quarto escuro porque a luz do sol me incomoda… E estou disposto a fazer tudo para não fazer o que não quero. Vou para a Bósnia, para a Lapónia, para a Amazónia, só para não me darem cabo da cachimónia. João A – E vais a fugir de quê? Isto é uma guerra, pá. Uma luta. Luta pela sobrevivência. Pelo lugar ao sol. Nunca pensaste no que vem a ser a selecção natural? É o resultado de uma hábil conjugação da lei do mais forte com a lei do menor esforço. Nesta guerra o que mais importa é a estratégia. Nesta selva manda o chico esperto e não o super-homem. Não te peço que faças, proponho-te que faças de conta.


João – Houve um tempo em que eu tinha razão. (Algo desamparado). Não sei onde me perdi. Onde deixei de saber para onde ia. Foi uma coisa que eu li algures. Tupi or not tupi. Aquilo era a luz ao fundo do túnel e até o túnel me parecia… me parecia bonito. Olhar a lua por um canudo atirar garrafas ao mar. Desenhar um mapa do tesouro com a mão esquerda. Cenas. E todas as cenas encaixavam. Vindo da escuridão dos fundos, um assobio cada vez mais próximo. É João I, rabo de cavalo e túnica. Brinco na orelha direita. Olhos ligeiramente maquilhados para parecerem mais profundos. João I (como se falasse para si próprio) – Eles não desviavam o olhar. Olhavam o sol de frente e não cegavam. Olhavam para dentro e adivinhavam o curso dos grandes rios. Neles corria o sangue dos antepassados e dos vindouros. João A (exagerando) – Ui! Que grande pedra! João – Eu nunca fumei. É tudo tirado da minha cabeça. João A – Pior um pouco. João I (no mesmo ensimesmamento, com uma pontinha de exibicionismo) – Eles não deslocam uma pedra sem saberem o bicho que mora por baixo. Eles não abalam o edifício do mundo, habitam-no… simplesmente. João A (mofando) – Será uma seita? João – Você é mesmo bronco. Primitivos. Primitivos actuais. Sobram uns quantos. Uma insignificância cheia de significado. Eu desejava ir viver no meio deles. De tanga. Sem tanga. Sem óculos escuros. Sem sapatos. Sem luz eléctrica. Sem porta-moedas. João I (para João) – Tenho tudo preparado. Tudo ou nada, melhor dizendo. Não levo nada. A minha ideia não é levar a civilização às costas. E li, numa revista de geografia e viagens, que, ao cabo de seis meses, um gajo começa a ficar selvagem. Consegue-se desaprender os gestos e até se esquece a língua materna. O meu problema é atravessar o Atlântico. João A (mofando) – Talvez a nado. (Ri a bandeiras despregadas). Ó pá, não leves a mal. Mas, se queres coboiada, não precisas de ir tão longe. João – Você não tem o direito de estragar a minha viagem antes de eu próprio ficar perdido pelo caminho. João I – O quê? Esse gravata mole!… Esse gravata mole estraga-me as vistas mas não estraga mais nada. Já eu irei a meio da minha travessia e este enforcado ainda há-de andar a perguntar aos colegas de escritório como se faz um nó de marinheiro.


João C (que até aí se retirara para um canto) – Os oceanos, os oceanos… ninguém se cala com os oceanos. A terra, minha gente, na terra está a última aventura. É lá que verdadeiramente se rema contra a maré. E que maré !? Geada, seca, incêndios, vendavais… Nem escalas, nem folgas e para receber alguma indemnização é um dia de juízo. João I – OK! Mas não será junto de uma vaca a mugir que te vais sentir mais perto do mistério da criação. João A – Mistério da criação só conheço um: a velha questão do ovo e da galinha. Absolutamente desinteressante. O que interessa é que a melhor galinha-mãe não pode evitar que o ovo se quebre e acabe em omelete. Um aviário com muitas galinhas a pôrem cácárácá para um gajo que vende os ovos aos outros que comem omeletes. Portanto: a criação revista e corrigida por aqueles que sabem que sem ovos não se fazem omeletes! (Para João). Não será assim, menino? Mistério da criação, uma ova! Diz antes lei do mercado, oferta e procura. João (cansado) – No entanto ainda se chocam ovos, ainda nascem pintainhos e, dentro deles, alguns escapam à formatação. Alguns assim do meu calibre. Por fora sou patinho feio, por dentro sou cisne negro. Negro, negro, negro. Black-out. No escuro vibra uma voz aflita, um pouco efeminada, maternal. João E (tom de lamento, quase cantando) – É aqui que se esconde um homem entre a vida e a não-vida? É aqui que ele joga às escondidas? É aqui que lhe foge o pé para fora do caminho? João (berrando) – Vai-te embora, pá! Estamos lotados! João A (hipocritamente indignado) – Isto é um quarto, não é uma enfermaria! João E – Que bom! Ainda tem a cabeça fora de água! João, meu irmão de leite, meu igual de sangue, olha que não te vão crescer guelras e barbatanas! Sai daí! A água sobe e tu não foste feito para viver num aquário. O fogo líquido que te enche os pulmões não jorra da tua voz. É a onda feita de amanhãs que te quer silenciar. Ouve! O céu tira o pio aos pássaros. Eles pousam nos galhos, nos beirais, nos fios, para poderem cantar. João A (gritando) – Vai pregar para outra freguesia! Um padreca!? Era o que nos faltava! João (baixinho) – Resta decidir se os pássaros foram destinados a voar ou a cantar. A luz começou a subir lentamente no início da última fala de João. Luz cor de petróleo, sábia mistura de azul e verde. Aquário. João E (inesperadamente perto de João, alisando com as costas da mão a farda branca de enfermeiro) – Não se trata de destino. Trata-se de missão. Todos os João – V, D, Z, G, P, C, B, I – parecem petrificados.


João A aproxima-se do recém-chegado João E, enquanto João, pelo contrário, se afasta, intimidado. João A – Missionário… eu não dizia ?! E digo mais: quem diz missão diz falha no raciocínio. Os gajos que se escondem atrás das missões não fecham bem da mala. Esquecem-se de perguntar aos outros se precisam de ajuda e isso porque aprenderam a ajudar-se a si próprios. Não existem. Ficaram entre parênteses. Quando o fole se fecha para activar o fogo, esvazia-se, topas? Quando se fecha e se abre e se volta a fechar, fica sem fôlego, topas? O segredo dos homens de sucesso é que eles sabem sugar a energia dos palhaços que gravitam em seu redor. João E (com uma serenidade que deixa João preso ao seu fascínio) – Eu estou sentado à cabeceira de um homem a morrer. Cada homem a morrer é um deus que se extingue. João (virando-se) – Então você ajuda os homens a morrer ou os deuses a viver? João E – Não é a mesma coisa? Cada pessoa é um veículo, um corpo que se move e passa. Nesse corpo, visto como um espírito, há lugar para muitos: os que foram e os que serão. Visto enquanto espírito, esse corpo comporta-se como a própria essência do caminho. João A (com sarcasmo e brutalidade) – Joãozinho, Joãozinho… não vês que estás a falar com um louco? Não lhe dês ouvidos, pá. Para enlouquecer basta dar ouvidos à loucura. João – E se eu quisesse enlouquecer? João E – Todos temos um louco dentro de nós. Um louco, um entrevado, um cego, um mouco… um morto. João A (cortando a palavra a João E) – Fazes ideia de quanto este pírulas recebe ao fim do mês por andar a fechar os olhos aos mortos numa unidade de cuidados intensivos que é mais infernal do que o próprio inferno? Sabes quanto lhe pagam pelas noites em claro e pelas outras em que o sujeito já nem sabe se está a ter um pesadelo acordado ou se é mesmo só um sonho mais pesado? Uma ninharia, pá. As férias dele são ir de toalha debaixo do braço para uma praia dos arredores e tomar banho na água choca de mijo. Mulheres? Nem cheirá-las. Quem é que quer dormir com um tipo que cheira a cadáver? Qualidade de vida? Almoçar no snack da rua dele porque o apartamento é tão pequeno que sempre que o gajo frita um bife os lençóis ficam a cheirar a margarina queimada. Progressão na carreira? Sabes, por muito que a ciência e a sociedade evoluam, os moribundos não mudam de trombas. E o cúmulo é este cabrão dizer que velar pelos mortos é defender a dignidade dos vivos. João (brusco) – T'a foder! Eu acho que os loucos têm razão! Ouve-se um tambor ao longe. Silêncio gelado. De debaixo da cama de João sai uma criatura esgrouviada e semi-nua. Lembra a representação do «louco» no tarot. É João L.


João L (cantando, repetidas vezes, ora muito baixinho ora muito alto, ora quase afinado, ora desafinadíssimo) – A dar com um pau A dar com uma pedra Bater no que minga Bater no que medra! João A (riso escarninho) – Querias loucura? É toda tua! João E (solícito) – Eu lido com isto! Não se metam com ele… eu sei lidar. João L (pegando nas mãos de João E e desatando a rodopiar) – Lida, lida, minha linda! Lida, lida, branca flor! Não me mostres as traseiras que eu já conheço de cor. (Estacando, de súbito). Estás de branco, Mariazinha! Morreu-te alguém? (Aos berros). Foi o pai ou foi a mãe? (Tom de suspeita). Andas-me a esconder coisas… Onde escondeste as prendas que eu te dei? João E (sereníssimo) – Estão guardadas no meu coração, João. Porte-se bem, porte-se como deve ser. Vamos apanhar sol? João L (olhos brilhantes) – Apanhar o sol e dar-lhe porrada? Tu serves de isco. Isco. Abres as pernas. De par em par. E quando o sol vier para te violar, zumba! Fodemos o gajo e apaga-se tudo. João E (sem perder a paciência) – Eu ainda sou muito novo para morrer… João L (com doçura, como que contagiado por João E) – Não. Morrer não. O médico é dono da morte. Ele só deixa morrer os amigos. Alugou os quartos todos e encheu-os de flores. João E – Mas eu tenho um quarto muito airoso para ti. João L – Prefiro o corredor. Corredor. (Gritando descontroladamente). Eu sou um corredor. Corredor de fundo. (Correndo sem sair do lugar). Meia maratona e ficar à tona. Maratona e meia. Três quartos. Quatro quat! Quatro quat! Quali coisa quali ela? Qual é a qualidade que começa por faltar? João E – Não tenho jeito para responder a adivinhas. João L – Mas há muitas respostas. João E – OK. Então falta o sabor a morango porque ainda não estamos no tempo deles. João L (berrando) – Estamos no tempo do tutti-frutti. Xarope de banana sabe a groselha. Leite com chocolate sabe a mentol. Licor de mel sabe a caca de passarinho. João E – E o amarelo sabe sempre a azul se fecharmos os olhos. (Segredando). E tem televisão, o quarto…


João A – São ambos doidos varridos. O que nos vale é a selecção natural. João (bocejando) – Há lugar para todos neste mundo cão. João A – Todos não. Três é uma multidão, nunca ouviste dizer? E este mundo – o teu mundo – é muito pequeno. Se não queres bater com os cornos na esquina da primeira rua, se não queres foder o coiro no cu de Judas, se não queres ficar à espera que te saia a sorte grande, se não queres ficar pírula ou larilas ou, pior um pouco, acabar a contar carneiros e cadáveres numa enfermaria, tens de tirar a tosse a estes gajos todos. Todos os João (V, Z, D, G, P, C, B, I) despertam da sua petrificação. João P – Há tipos que vão dentro por muito menos do que isso. Deixa o puto em paz. Deixa-o seguir o caminho dele. Ele não quer entrar nos eixos. João E – Dizem que o demónio não é tão mau como o pintam… João P – Só os maus pintores podem dizer uma coisa dessas. João L – Não há mal que sempre dure. De mal a pior. O bem é o pior inimigo do homem. Homem não chores, a mãe já vem… João A – O João sabe perfeitamente que agora não há mãe nem meia mãe. E eu sei que ele fez a escolha certa. João E – Não é preciso escolher. Cada pessoa tem muitas pessoas dentro de si. João A – Mas precisa de as matar a todas para sobreviver. João L – Não faz mal. (Para João B). Tu escolhes-me a mim e eu escolho-te a ti. (Berrando). A escolha é tua! João D – Ninguém cala esse ressacado? João P – Olhem-me a onda deste filho da puta que vive da ressaca dos outros !? João V (para João P) – Quando o meu amigo fala, tu bates a bolinha baixo. João D (para João V) – Ouve lá, meu, eu não preciso de protecção… João V (para João D) – Ai não? Joãozinho Z – Façam pouco barulho, tenho enxaqueca.


João G (passando-lhe o braço pelo ombro) – Nada que não se resolva com uma boa queca! E a Mariazinha chega para todos. João (rindo à gargalhada) – É minha, é minha, a Mariazinha. É minha, é minha, a Mariazinha. João A – Vamos lá, menino, não desconverses. (Agarrando João pelo queixo). Já vão sendo horas de mandar esta malta desamparar a loja. João I (olhando para o vazio, intensamente) – Para mim, o tempo não existe. Ouvi dizer que o tempo é que nos mata. Para mim, ele não existe. Acho que me tornei imortal. João L – Tal, tal. Tal pai, tal figo. Chamo-lhe um figo. Homem, não chores. A comida chega para todos. (Para João G). Olha, parece que estás a ficar mais pequeno… João G (seco) – Isso é impressão sua! João I (olhando para o vazio, intensamente) – O espaço não existe. Ou por outra: tudo é espaço e nada ocupa lugar. João C (para João I) – Se tivesses de lavrar um campo, não dizias essas baboseiras. João L (para João C) – Tu também achas que ele está a ficar mais pequeno! (Apontando para Joãozinho Z). E aquele ali, não tarda nada, desaparece… João B – Bom, meus senhores, eu sou obrigado a ganhar a vida. Conversar é bom mas não dá o sustento. João L (para João B) – Tem graça… agora cresceste. Cresce. Cresce e aparece. Às vezes a árvore é maior do que a casa. Outras vezes a casa é maior que a árvore. E o ovo? É pequenino. Pequenino. João C (rindo) – No cu da galinha? É enorme mas não tão grande que não fure. João B – Foda-se! Só um louco tem vagar para contrariar um louco. João A (para João) – João, eu não tenho a minha vida inteira para esperar por ti. João – Então não espere. Faça qualquer coisa. Qualquer coisa que grite mais alto do que o resto. João L – Não presto, não presto, não presto. João E (tom de censura) – Não vêem que estão a enervá-lo? Levado a bem, a gente até se esquece que ele vive.


João L (para João E) – Eu trouxe o homem do saco. (Olhar brilhante). Eu trouxe o homem do saco. Trouxe o saco às costas. E lá dentro vem o homem. João L põe-se de gatas e rasteja até a um canto do palco onde está pousado um saco negro. João P (para João E) – É demasiado irrequieto para servir de modelo. E você não tem mão nele… Pasmo em ver que o deixam andar à solta. João E – À solta? Quem anda à solta? Estamos todos presos dentro de uma cabeça. Suspensos. Será cada qual por si. Cair aleija. Salvar mata. Eu escapo à morte porque vigio a morte do próximo. João L corre para o centro da roda viva de personagens com o saco às costas e saca de dentro uma metralhadora. Empunha a arma triunfalmente, gritando. João L (descontroladamente) – O homem! O homem! Ouçam a voz do rei da criação. (Mete o cano da arma dentro da boca). Joãozinho Z – Tirem-lhe isso! Eu não quero ver! Tirem-lhe isso! João A, rápido como um trovão, abeira-se de João L e tira-lhe a metralhadora das mãos. João A (apontando em todas as direcções com o cano da arma) – João! Salta para trás de mim, se queres safar essa pele. Vamos dar uma lição de vida a estes senhores. (O seu olhar encontra o de João que o fita, aterrorizado). Tu já me deste razão. Por algum motivo fui o primeiro que aqui chegou. Fui o primeiro que acorreu à tua chamada. Eu fui quem tu chamaste. Mas agora não queres dar o braço a torcer. Má consciência da má consciência. Eu fui quem tu chamaste porque eu sou quem tu és. O resto é medo. São pesadelos. Terrores de puto mal desmamado. É preciso crescer, puto. Não me vais deixar a chuchar no dedo. Quem tudo quer tudo pode, puto. A gente cala as vítimas, a gente paga as testemunhas, a gente apaga os crimes. Viver é aprender a viciar os dados. Chama-se a isso: limar as arestas. Transformar o cubo em esfera, para girar ao mesmo ritmo que o planeta. Topas? Aresta número um: Pum! (Aponta a arma para Joãozinho Z). Vês o gajo a diminuir? (Joãozinho Z treme como varas verdes). Diminui a olhos vistos! (Respira fundo). Aresta número dois. (Aponta a arma para João C). Se queres beijar a terra não te queixes depois… (João avança lentamente em direcção a João A). Aresta número três. (Aponta a arma para João V). Má rês não deixa saudade… (Rindo à gargalhada). E é tão belo morrer antes da idade! João (fitando João A nos olhos – parecem hipnotizados um pelo outro) – Quem mata aqui sou eu! (João A entrega-lhe a arma). Se não escolhi nascer, posso ao menos acabar comigo. (João aponta a arma para a sua própria barriga. Todos os olhares joaninos estão suspensos no seu gesto. Risada escarninha). Estão a ver? É a minha morte a fazer-me cócegas na barriga. O bébé não pode defender-se da mão da mãe que lhe faz cócegas e festinhas. Não querem que vos


faça coceguinhas? Sinto o poderoso instinto maternal a subir-me pela espinha acima. Uma mãe é um braço, dois braços. Uma mão. Duas mãos! (Disparo de metralhadora que abate um a um, numa rápida sucessão, todas as hipóteses e retrospecções de João, menos João A. A pesada arma cai no chão. João cambaleia mas João A abre um sorriso redentor). Fiz bem? (Profundo suspiro). Pelo menos, fui eu quem me fez. João A (virando-lhe costas, passeia por entre os cadáveres; tom de absoluta displicência) – Fizeste apenas o que havia para fazer. Só é pena termos perdido tanto tempo. (Discurso metódico de quem faz um "briefing" entre duas reuniões importantes). Portanto: resolver a nosso favor o negócio do "teste". Primeiro: gerir o "timing". A performance ideal nunca é independente da correcta avaliação dos esforços dispendidos em função de uma curva consabidamente irregular. Ler o enunciado em diagonal sem atribuir demasiada importância ao pormenor. Esta leitura tem como único objectivo detectar os pontos da matéria a despejar, sábia e indiscriminadamente. Segundo: rascunho. Esquema. Distribuir pelas perguntas o grosso da mercadoria, vulgo "matéria dada". Terceiro: medir o pulso ao vigilante, reconhecer no seu comportamento os factores devaneio, distracção, sonolência. Eventualmente colocar-lhe uma questão que revele ingénuo empenho, escolar devoção, no quadro de um ritual que, por insuficiência dramática, nem sempre faz jus aos talentos do pedagogo. Ele responderá com fingido desagrado e verdadeiro profissionalismo. Quanto mais ele se sentir dono da situação, mais tu ganharás terreno. Quarto: já estamos a jogar em casa. Sacar discretamente da artilharia pesada e disparar para os alvos pre-estabelecidos. (Voltando-se para João que bebe docilmente todas as suas palavras). Tens a cábula pronta? João faz que sim com a cabeça. João A – Está no papo. Sou eu quem to diz. E falo com conhecimento de causa. Negro. FIM Regina Guimarães e Saguenail Dezembro de 2000 – Fevereiro de 2001


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