A OFENSIVA TARKOVSKI No cinema de Tarkovski, a imagem é um meio de comunicação com o passado e, em Nostalgia, um modo de o colectivizar, desviando-o da sua órbita lírica — o mistério da vida «contemplável» — para uma marcha incerta até à morte imaginária — o mistério da «salvação». Tal como o protagonista do filme afasta do seu caminho a «intérprete feminina», infligindo-lhe uma descida ao inferno das fêmeas estéreis, Tarkovski desobstruiu os caminhos da ficção, eliminando brutalmente os escolhos do relacionamento homem/mulher. O que sai da cabeça dum homem louco vale mais do que a ansiedade dum ventre de mulher. A vida desorganiza-se no discurso possessivo da mulher, fervilhante numa água turva de despeito e ciúme. O louco propõe «a» solução positiva mas falta-lhe energia para a executar. A força de «expressão» é-lhe fatal como acontece no comício onde acaba por se suicidar em auto-da-fé público. A imitação dos sentimentos nobres — amores filiais de toda a ordem — obriga o protagonista a atitudes duma veemência cabotina. A vivência da fé, ainda que em segunda mão, regenera esses sentimentos imprimindo-lhes a paixão universal, infantil e repetitiva dos desafios. Com a morte do louco passamos do ciclo da água — feminilidade, frivolidade, inconstância — ao ciclo do fogo — espiritualidade, reincarnação. A morte do louco — prova das chamas — permite saltar da imagem do espelho/água em que o protagonista vê projectada a imagem do Outro a um ensinamento puramente cinematográfico — olhar para a luz. Deste modo, revela-se no cinema uma função algo messiânica — arrancar o mundo ao seu tristíssimo encantamento, sangrenta névoa, longínquo parque «onde a intérprete encontrava homens interessantes». O acto de fé — atravessar uma piscina com uma vela acesa — envolve fortemente o espectador porque Tarkovski transforma o tempo em vaso comunicante. Para vencer a barreira do olhar — ver para não crer, ver para crer, querer ver — Tarkovski não hesita em dedicar à travessia um plano de oito minutos e meio. E se a alquimia desenvolta deste filme elabora um composto de esperança e nostalgia é certamente porque desenterrar o passado é a única atitude confiante ao alcance de todos. O cinema é talvez uma máquina de vender passados para enfrentar o chamamento da beleza, doravante inútil, inofensiva. R. G.