ABRIGADO POR TUDO Bastante maltratado pela crítica e mediocremente saudado pelo grande público que Bertolucci fez seu, UM CHÁ NO DESERTO é talvez o primeiro filme do realizador que tocou a minha corda sensível. Curiosamente, para esta relativa simpatia contribuiu a sensação de estar perante um filme algo falhado: os encantos da obra provêm de um certo descontrolo no tratamento dos tempos e dos modos, duma hibridez formal que roça a impossibilidade de rigor. Dir-se-ia que Bertolucci se deixa embrenhar no percurso das suas personagens, salvando-se in extremis quando regressa ao ponto de partida e consente, por uns instantes, que entrevejamos a solidão de uma Kit convalescente e transfigurada. É raro um cineasta de nome e cabeça assente dar-se a ver tão descomposto (ia dizer tão feminino...). O ponto de partida da fita é o pós-guerra e, num mundo órfão de valores, um espaço sob tutela (a Argélia francesa, ilusoriamente submissa ao sobrolho severo dos colonos e ao olhar benevolente dos turistas). No momento em que desembarcam no norte de África com o projecto de empreenderem uma viagem sem itinerário definido, os três americanos auto-retratam-se como três tipos diversos de viajantes: Port, aquele que parte de coração tão aberto (rachado?) que não tem a certeza de regressar; Tunner, aquele que, mal chega, só pensa em regressar; Kit, aquela que se situa entre o primeiro e o segundo. A antífrase do título — «The Sheltering Sky» — não é perceptível em português mas funciona como uma chave do filme: chegado à fronteira do deserto, John Malkovitch descreve o firmamento como um vasto abrigo, quando justamente o tão desejado lugar suspenso entre o céu e a terra o escorraçará da vida (acrescente-se que o fascínio de Port é sempre inversamente proporcional à gravidade das suas sucessivas perdas: a fidelidade, a virilidade, a mulher, a saúde e a vida); em contrapartida, Debra Winger, que logo de início se mostra perturbada com a hostilidade exótica da grande África (repugnante e incontornável como um corpo), acaba por ser positivamente açambarcada pelo continente erótico (na pessoa estranha do touareg) e devolvida à possibilidade de renascer; por último, Tunner, fleumático e civilizado, cumpre a sua rota com a segurança indigna dum peixe a «flirtar» dentro de água. Outro aspecto interessante do triângulo Kit-Port-Tunner é a veemência com que Bertolucci sublinha não a fragilidade do casal (apesar da relação amorosa ser snob, morna ou degradada, conforme se quiser ler nas entrelinhas das camas separadas), mas sim a fragilização que decorre da ligação matrimonial como se, pelo menos em amor, a união não fizesse a força; Tunner cultiva a paixoneta, regando-a com champanhe, colhendo os melhores dividendos duma colagem um tanto ciumenta aos esposos que, esses sim, se expõem aos malefícios da conjugalidade enquanto vício — na hora da agonia, Port confessa, terno e arrependido: «Percebi que vivi todos estes anos para ti...». O filme de Bertolucci é uma demonstração pessimista e desencantada: será que o verdadeiro amor é inelutavelmente tímido? Será que a conjugalidade serena não suporta a «travessia do deserto»? Remato estas impressões um tanto descosidas (volto a dizer que Bertolucci nunca me impressionou e ainda menos me deu que pensar) remetendo para um artigo recente de A. Roma Torres — «Os filhos de David» (in A Grande Ilusão nº 9) — que me parece uma boa base de reflexão sobre a situação artístico-emotiva de Bertolucci: ele representa, porventura, no cinema, aquele que está prestes a regressar de algum sítio com a bagagem demasiado cheia para poder passar a fronteira. R. G.