Algumas chaves engolidas pela gaveta

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ALGUMAS CHAVES ENGOLIDAS PELA GAVETA Saguenail gostaria de ter semeado na cidade Sonhos, insónias e leituras férteis. Mas como a cidade é invisão de homem Ao sétimo dia só filmou ressacas. AMOUR EN LATIN é um filme redondo — o movimento circular, várias vezes descrito, quer pelas personagens encurraladas, quer pela câmara que os empurra, os encosta — polido e fugidio como um objecto gelado, mas o realizador deixou excrescer-lhe algumas pontas por onde o espectador pode «pegar». A fita abre com um rosário de falsas pistas: verbais — «Uma sangria, por favor», «Aqui é que é a cena de amor?». «Já aconteceu alguma coisa?» — e icónicas — o eclipsado par de pernas, a faca ensanguentada, as poses de expectativa, o «coup de foudre». A aparição do primeiro genérico remete a ficção do amor para a arbitragem impiedosa e cega dos que se investiram na fabricação da fita. Os depoimentos (gravados depois da rodagem) bem como o paroxismo de teatralidade das gravuras de Sade em contraponto, criam um efeito de tenda que se desmonta e aplanam terreno para o «não acontecer» do filme. A luz, a cor, a música vão pousar num circo enguiçado, realçam trôpegos bailados nupciais, números de ilusão falhados, fúnebres bazófias, exaltações de trazer por casa... O desfile é austero porque, é p'ró que está, o hábito faz o monge. Mas o tempo volta (relativamente) para trás como na famosa letra, a «cena» do amor arranca com novos cenários, os maus artistas (como o mau vidraceiro de Baudelaire) reincidem. Esta reiteração, que assenta numa desconversa impenitente, protege os protagonistas daquelas histórias da angústia de já nada terem com que contar. Da miragem do masculino/feminino em choque passamos para o angélico (assexuado) par do desenlace, que trocou definitivamente o gesto pelo verbo, o peso da cor pela leveza dos limbos, como numa criação do mundo às avessas. Observe-se que a «estudante de Belas-Artes» abandona a mesa do bar para não voltar a presenciar a representação do amor desarmado. O criado, que se gabava de preparar «cocktails que são autênticos filtros de amor» (à Tristão e Isolda) é atingido por uma bala a tempo de não ouvir o desiludido «Afinal era só isto?» da boca de uma má imitadora. O patrão foge do antro, que lhe serve de ganha-pão, para retomar o seu tortuoso caso de amor (o único?). A barmaid, significativamente, encarcera o manequim (também poupado à descoberta da nudez), fecha o recinto às horas de já serem horas. Ela sabe e cantou as linhas com que se cose: «Amour en latin fait amour Or donc provient d'amour la mort...». Uma atmosfera gradualmente eufórica, entre a festa e o motim, reina algures, para além das portas do bar. De certo modo, a fita instala um íman que atrai as figuras para um fora de campo, um «ailleurs». No início de AMOUR EN LATIN o rasto das meteóricas crianças inscreve uma rota naquele mapa de náufragos. Não é segredo que o «ambiente» utilizado na banda sonora foi gravado na noite de S. João de 1987. Se é certo que o Porto consegue ser um «ailleurs» pelo menos uma vez por ano, a «fita portuense» deixa em suspenso a busca desse «ailleurs». R. G.


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