Amares

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AMARES Quadro 1 Palco vazio, sem atavios, nem adereços. Luz de madrugada, argêntea. A PARTEIRA, vestida de rigoroso branco com sete saias de pregas, rodadas a partir da cintura, entra em cena, arrastando um boneco inerte, vestido com roupa masculina, de tamanho humano. Na cabeça traz um chapéu em forma de lua. Parece uma velha flor. Quando pára de mão na ilharga, no centro do palco, deixa cair serenamente o boneco de pano e chumaço a seus pés. A PARTEIRA sem papas na língua, como se toda a vida tivesse falado em público É hora de nascer em Amares. Em Amares, há amar. Há vários amares. Há tantos amores quantas freguesias. Para o amor, há sempre fregueses... não é? Eu que o diga. Pigarreia, saca um lenço impecavelmente branco dum bolso e assoa-se ruidosamente. Ah, meu amigo. Se amares, cá estarás. Se não amares, nada de nada verás. Rindo a bandeiras despregadas, senta-se no chão e senta o boneco inerte a seu colo, qual grotesca Pietà. Em Amares, longe dos mares, há marés de laranjeiras. Longe de perder de vista, perto de perder o coração. Debaixo dos laranjais, amores sem conta, amores de risco. Nove meses depois, as dores que são um petisco e o resto deixai comigo. Pigarreando de novo. Cá para mim, era laranja, a maçã do paraíso... Em todo o caso, passei a vida a aparar o fruto de muitos amores, nascidos à sombra da laranjeira. Dirigindo-se ao público. E quando se comem as laranjas, não me direis? Silêncio ou respostas confusas. Maio, Junho, Julho e Agosto. Os meses sem R. Que o R, como sabeis pois sois letrados, está na pança do mafaRRico. Entra O SANDEU, de calças arregaçada como se viesse da pesca e bolsos virados para fora com se o tivessem assaltado. É uma criatura tipo pilha de nervos, um gato escaldado a quem todos atiram água fria. Traz na mão um grande guarda-chuva negro de pastor. O SANDEU Arre gaita, dona Lua!!! Ides toda cheia de noves fora. Deus vos dê a boa hora que a minha mãe ofertaste. A PARTEIRA (à parte) Melhor fora nasceres morto a viveres torto. O SANDEU E que vos traz a estes caminhos, mãe Lua? A PARTEIRA Não vês que estou em frente a casa?


O SANDEU E o povo que aqui se juntou, carai? A PARTEIRA A rua é livre. Até tu andas na rua, quanto mais... O SANDEU Mas é que vinha à procura de alguém. (Rindo.) Até pode ser alguém com o seu focinho, as patas é que já não dão conta das estradas. A PARTEIRA Isso dizes tu, meu tolo, que a pé e de mula me vou para as terras mais ermas e para os cimos mais perto do céu. Portanto, se é coisa que apoquente com razão, podes esvaziar o saco... O Sandeu esvazia um saquinho de areia que trazia a tiracolo. O SANDEU Tenho medo de contar. Você é brava, inda me faz nascer outra vez de rabo para o ar. A PARTEIRA Desembucha, ó Elísio, que entrementes te levo a tua irmã e ela te dá um arraial de porrada, sem pedir licença à Virgem nem aos Santos. E teu cunhado também te há-de dar uma tareia de criar bicho. Para que fiques sossegado e metido contigo, rapaz. O SANDEU lacrimejante Não me ralhe que o sandeu não merece fúria, merece prece. Envergonhado e orgulhoso ao mesmo tempo. Foram as hóstias. A PARTEIRA As hóstias? Terás tu ido comungar? Não sabes que doido não comunga. O SANDEU Mas eu gosto de comungar. Em jejum, sabe-me pela vida. O padre velho dizia que o reino do céu era dos inocentes como eu. Este do agora não é como o do antigamente... fica danado porque eu trinco as hóstias. Não vou engolir assim aquelas luas cheias sem mastigar, porra...! A PARTEIRA Trincas o corpo de Cristo? Olha que tu és de marca!!! Claro que apanhaste uma descompostura do sacristão. O SANDEU gabarola Ora... o sacristão é meu amigo. Quando éramos garotos, subíamos às árvores e íamos aos ninhos. Agora vamos apalpar as mamas das moças quando há aqueles apertos nas romarias... ih ih ih. Como se contasse um segredo. Foi ele que me abriu a porta... aquela porta pequenina, com muitos retorcidos e dourados que está em cima do altar. E eu jurei-lhe que não contava nada a ninguém... ih... ih ... ih... ih.., A PARTEIRA E que foste tu buscar ao sacrário infeliz? O que de lá tiraste, haverás de devolver.


O SANDEU Devolver... devolver... foi Deus que mas deu. E eu manjei-as todas. Não há bolo, nem bolacha que valha as massa da hóstia. Eu, que não tenho dentes, chamei-lhes um figo. Tão leves que nem pesam na barriga. Acho que estou comungado para os próximos cinco anos... A PARTEIRA Valham-me as cinco chagas de Cristo. Acho que teremos de subir ao monte e rezar às almas para te salvar a pele. BLACK OUT. Intermezzo A professora Alice, acompanhada de alguns aprendizes seus, de todas as idades (escolhidos e ensaiados no local), recita as almas no lugar mais alto do pátio do Mosteiro de Rendufe. No fim da reza, todos se retiram em duas filas (uma para direita, outra para a esquerda), compenetrados e cabisbaixos. BLACK OUT. Quadro 2 O Senhor Rimante carrega uma enorme foice, qual figuração simbólica da morte. Tem os pés envolvidos em trapos imundos o que lhes confere um ar de patas de elefante. Traja calça de fazenda coçada, camisa cor de açafrão e um colete muito curto. Luz crepuscular, cada vez mais alaranjada... O SENHOR RIMANTE Boa noite, meus senhores Boa noite, senhores meus Aqui venho a demonstrar Um dom que me ofertou Deus. Este condão de rimar Como se falasse prosa Embora venha dos céus É parecido a uma rosa Com caule cheio de espinhos Muitos são os meus vizinhos A quem descubro a careca A quem destapo a marreca Pois adivinho quem peca... Avaliem meu condão Não há bela sem senão Se rimo digo a verdade Por alheia felicidade Devia ficar calado Mas isso custa um bocado Quando se vê um vizinho Roubar seu pai ou cunhado Chular avô ou mulher... Eu falo que souber


Doa a coisa a que doer. Inda não há muitos dias Soube dum famoso caso Que haveria de dar aso Ao mais feroz julgamento Nem cão, nem boi, nem jumento Fazem tais aleivosias. Um pai bastante abastado Com seus filhos repartiu O muito que havia herdado E o muito que produziu. Seus filhos desnaturados Em vez de amor e carinho Expulsaram o velhinho De seus terrenos lavrados De seus lameiros e gados. Num lar sem luz nem conforto O lavrador espera a morte E sente que já está morto Avara foi sua sorte... Ó filhos por pais gerados Não sejais degenerados Pois quem filhos dá ao mundo Sua gratidão merece E de seu amor profundo Em toda idade carece E quanto mais envelhece Mais o amor lhe parece Alimento suficiente Para o corpo e para a mente. O Sandeu entra em cena, agitando-se em todas as direcções como marioneta puxada por fios. O SANDEU Ó Júlio Rimante, conta-me a minha vida. Será curta ou comprida? O SENHOR RIMANTE Do futuro não sei nada Só conto vida passada E essa bem a conheces Pois com ela te pareces. Mas uma coisa te digo Elísio Santos Sandeu De todo o homem amigo Que Deus por favor me deu Tu és o meu preferido. Entretanto, luz de noite cerrada. O Sandeu faz toda a sorte de momices, iluminado pelos malabarismos que serão executados por uma trupe de praticantes de artes do fogo (constituída por jovens locais). BLACK OUT.


Quadro 3 Há treze cadeiras cuidadosamente alinhadas em palco, como se de uma sala de espera se tratasse. Na extrema ponta esquerda um rapaz. Na extrema ponta direita, uma rapariga. São ambos muito jovens. Ela está gravidérrima. Sua barriga em bico parece ameaçar explodir. O RAPAZ cantando ao telemóvel Aqui, aqui, aqui Aqui é que eu hei-de estar. Aqui, aqui, aqui, Aqui é que hei-de estar A RAPARIGA cantando ao telemóvel Ao pé do meu amor Toda a noite a namorar. Ao pé do meu amor Toda a noite a namorar. O RAPAZ cantando ao telemóvel Toda a noite a namorar Toda a noite a dar paleio. Toda a noite a namorar Toda a noite a dar paleio. A RAPARIGA cantando ao telemóvel Eu regalo andar Com meu amor ao passeio. Eu regalo andar Com meu amor ao passeio. O RAPAZ cantando ao telemóvel Com meu amor ao passeio Com amor a passear. Com meu amor ao passeio Com amor a passear. A RAPARIGA cantando ao telemóvel Aqui, aqui, aqui Aqui é que eu hei-de estar. pianíssimo Aqui, aqui, aqui Aqui é que eu hei-de estar A rapariga desata num pranto. O rapaz muda de cadeira para ir consolá-la. Entra Dona Lua, com um grande saco cheio na mão direita e uns óculos ridiculamente pequenos na ponta do nariz.


A PARTEIRA agastada Pois... pois... pois... Primeiro aprendem a botar o diabo no inferno e depois espantam-se que a barriga fique de balão. Ai, menina, nem é a última. nem será primeira. Console-se que parir é tão velho como o mundo. Quase tão velho com bater a bota... A RAPARIGA chorosa Eu queria muito que fosse uma rapariga... uma bonequinha muito linda. A PARTEIRA E se for um rapaz.... que se lhe faz? Corta-se-lhe a pilinha? O RAPAZ chocado Nem pense... olhe que o filho também é meu. A PARTEIRA Ora isso é que eu queria ouvir. A moça não fez isto sozinha, portanto... O RAPAZ Eu sou pobre como Job. Ela foi expulsa de casa. Os pais chamaram-lhe rameira e a mim amaldiçoaram-me. Não me querem como genro e desistem de a ter por filha. A PARTEIRA Ó moço, seja home que daqui a nada vai ser pai. Quando eles virem o pimpolho, rosado que nem um rabanete, lavadinho em água de lua e esfregadinho com óleo de estrela da manhã, acaba-se a zanga das comadres. Inda você há-de querer educar o seu filho à moderna e terá de os deixar educálo à antiga... A RAPARIGA amedrontada Dona Lua... Dona Lua... dói muito ser mãe? A PARTEIRA Não te vou dizer que não. Só te digo que nunca vi, em minha longa vida de aparadora de crias, ninguém que não aguente essas dores e os suores que elas fazem correr. Porém, passado o alvoroço da cria em forma de ovo furar a boca do corpo, nenhuma mulher se lembra das dores que há pouco sofreu. É um mistério tão profundo como Cristo ser nado duma virgem. Para bom entendedor, nada mais te explicarei... Virando costas. Ide com Deus, que em breve serei chamada. E tende calma... que rico par de jarros me saíste!!! À beira do que é viver, dar à luz não custa nada. BLACK OUT. Intermezzo Um coro de crianças de várias escolas das várias freguesias de Amares canta a cantiga do canário, dirigidas pelo orientador Luís Capela. No fim, tiram dos bolsos passarinhos feitos em origami (papel amarelo) e lançam ao público. Saem ordeiramente pelos extremos direito e esquerdo do estrado, acenando para parentes e demais. BLACK OUT.


QUADRO 4 A moça – Rosalinda de seu nome – embala um pequeno berço de madeira com a ponta do chinelo, A seu lado, o Elísio Sandeu, tirou as pesadas socas e aquece os pés num braseiro. Enquanto embala, a jovem mãe borda. Enquanto se aquece, o velho louco conta histórias. O SANDEU Era uma vez uma fada que andava muito escondida deste mundo e do outro. Neste mundo chamavam-lhe Bruxa Alfacínora porque era o desterro das alfaces na hora da rega. No outro mundo, disse-me um lobisomem (aquele que é meu primo direito...) que no outro mundo a tratavam de Fada Malcriada porque não passava cartão nem a magos, nem a magas. Um dia, eu andava de calças a cair e uma corda a segurá-las tal era fome que eu tinha rapado no inverno, decidi ir às alfaces da Quininha que estavam tão verdes, tão verdinhas... que até parecia que estavam a chamar por mim. Arranjo um molho de giesta e tapo os cornos para passar despercebido, ajoelho-me e lá vou, rego abaixo, a apalpar as alfaces mais tenrinhas, tirando uma folha aqui e uma folha acolá. Mal eu sabia que a bruxa de má pêlo andava na mesma lide. De repente, sinto alguém a enfiar-me uma mão gelada pela boca abaixo e depois a descer as goelas e depois a apertar-me o coração... ROSALINDA Ó Elísio, achas que isso são histórias que se contem a bebés? Daqui a nada ele desata-me a berrar com um pesadelo e eu tenho os peitos meio gretados... O SANDEU Deixas-me provar o leitinho das tuas mamas que eu caço-te umas pombas para o jantar? ROSALINDA Elísio, o respeitinho é muito bonito. Se não dobras essa língua, o meu marido desanca em ti que nem sabes de que terra és. O SANDEU Ai Senhora das Dores me valha, Rosalinda... Desculpa o meu à vontade que és quase minha irmã carnal. Desde que a bruxa me apertou a raiz do coração, parece que já não tenho a alegria que era a minha. Sinto uma noite no peito e uma pontada nas costelas que até vejo estrelas. ROSALINDA Queres um copinho de jeropiga para aconchegar o papo? O SANDEU Se mo deres, bebo e escorropicho, Ai, Rosalinda, linda, linda... Não foras do teu Manel, haverias de ser minha. Já esqueceste aquele anel, que te dei, eras menina? Intermezzo Nas cadeiras instaladas para o quadro dos namorados, sentam-se treze tocadores de cavaquinho que interpretam velhas três melodias minhotas, dirigidos pelo orientador Luís Capela. QUADRO 5


O Senhor Rimante, manifestamente acabrunhado por uma terrível tristeza percorre a grandes passadas, como se reflectisse acerca de um assunto bicudo. Está totalmente vestido de negro, inclusive a camisa e os trapos que lhe embrulham os pés. O SENHOR RIMANTE estacando de súbito Enquanto Deus me deu pés P´ra demandar sete mundos E correr de lés a lés Altos montes, vales fundos, Da minha rica saúde Fiz sempre gato sapato Abusando amiúde Deste corpo que era fraco. Quando os pés adoeceram Julguei próximo meu fim E disse de mim para mim: - Belo uso receberam. A minha mãe vendedeira A canasta carreguei Cheia de fauna poveira Em terra sem mar à beira E muito peixe manjei. Sempre julguei que o Sandeu Por ser Santo de apelido E ingénuo de coração Teria prazo comprido Na terra que Deus lhe deu Com quem o vê como irmão. Ora a morte é sorrateira Em corpos sem mal se enfia Da sua negra canseira Nada de nada a desvia. Ei-lo p'ra sempre acamado Esse que sempre brincava E não foi atropelado Como a gente futurava. Um mau olhado botado Talvez noutra freguesia Pôs o Sandeu em tal estado Que nem respirar podia. Em grande leito ele jaz Por todo Amares visitado Embora tolo o rapaz Era o moço mais amado. O Senhor despe casaco, colete, camisa, calças. Quando fica em ceroulas, senta-se numa cadeira e chora como uma criança. BLACK OUT.


Intermezzo A Senhora Dona Adelaide, irmã de Maria, de lenço atado à cabeça, sobe ao palco acompanhada por uma multidão de meninos vestidos de anjos. Sentada na cadeira central, Dona Adelaide entoa um cântico sagrado. No fim, Dona Adelaide saúda e sai; os meninos levam as cadeiras para fora do palco. A Parteira empurra uma cama de hospital onde está deitado o Sandeu para meio da cena.

QUADRO 6 Em torno do leito do moribundo, um sem número de pessoas, que entretanto subiram ao estrado, bichanam rezas de cadência mais ou menos monótona. A Parteira está de trombas. Enxota com desenvoltura meia dúzia de carpideiras e vai colar um grande beijo na fonte suada do Sandeu. Depois abeira-se da ribalta. A PARTEIRA É hora de morrer em Amares. Da morte nada sabemos Do nascer tudo esquecemos. Ai, só amor não se esquece E no entanto parece Que a toda a hora o perdemos. Furiosa, de mão na ilharga. Calai-vos, gente, canté que ele morto ainda não é. Deixai o rapaz finar-se em paz. E como dizia o grande poeta da minha freguesia: Tornou-se-me tudo em vento Após tormento e tormento Que eu passei cuidando em al; Em fim veo cedo o mal E tarde o conhecimento. E assi desenganado Vejo vir males maiores. O tempo a que sou chegado Que posso doer às dores E dar cuidado ao cuidado. BLACK OUT.

QUADRO DE FECHO Um grupo de cinquenta crianças, envergando fantasias de carnaval, sobe ao palco o mais ordeiramente possível, pela direita e pela esquerda. Cada um tem uma laranja na mão. Instalam-se no espaço segundo um esquema pré-ensaiado e trocam de laranjas, fazendo-as saltar de mão em mão e flectindo os joelhos simultaneamente, ao som de uma cantiga de António Variações.


- Concurso de Anjos? - Camião de salgados e Camião de farturas - Vendedeiras de laranjas - Vendedeiras de refrigerantes - Tasca improvisada com vinho, broa, azeitonas, sardinhas, - Figuras evocativas de velhas profissões: aguadeiro, engraxador de sapatos, ceguinho vendedor de folhetins, etc. - Venda de bolos tradicionais. - Actuação de ranchos folclóricos (no palco) e de grupo(s) de cantares (escadas laterais direitas do convento). - Camarins nos escuteiros. - Desfile de gigantones? - Instalação sonora com música para momentos «mortos». - Bombos - Cadeiras para idosos e doentes -Acordeonistas Instalação: 16horas Abertura com bombos: 18h e morteiros Desfile de gigantones: 18h15 Actuação de ranchos e grupos de cantares: 18h30/20h00 Vendas de comida e bebida/jantar merenda: 20h00 Bailarico com acordeonistas: 21h00 Representação do auto: quando a noite cai Fogo de artifício(?): 12h00


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