AQUELES QUE JÁ NÃO OUVEM A GUITARRA E O SABEM JÁ NÃO OUÇO A GUITARRA é um filme sobre a inexplicável permanência do casal num contexto de conflito irresolúvel entre o masculino e o feminino. Embora ameaçado e rapidamente destroçado por elementos (tentações?) oriundas de um fora de campo que o filme oculta — como se o próprio filme fosse tão-só espaço de sagração de uma cadeia incompleta de momentos, espaço portanto de perenização e de culto — as personagens «em relação constelar» ocupam, com desmedida presença emocional e esforço mental, o campo, e a óbvia solidão das suas palavras (despropositados solilóquios, diálogos descarrilados...) só pode extravasar no coração do próprio espectador. JÁ NÃO OUÇO A GUITARRA é um filme sobre o branco (cor ingrata ao cinema), a auréola que queima os limites do enquadramento, como se as pessoas que Garrel filma fossem prisioneiras da mesma luz que emanam ou a esbanjassem a torto e a direito. Assim, a «droga» não intervém a título de mero ingrediente ou pincelada para conferir mais verdade às imagens de uma geração (por vezes retratos de uma geração), antes explicita a necessidade que as personagens têm de se gastarem, de arderem na chama dos instantes intensos ou rotineiros que só o registo (o filme) conserva. Se bem que o factor metafílmico não seja dominante nesta ficção — em que NÃO HÁ NADA PARA VER —, a presente obra de Garrel é, até certo ponto, urna reflexão sobre a vocação do medium num tempo em que os passados se fabricam cada vez mais depressa. Obra de poeta, que à sua maneira apela para a urgência da poesia, o filme de Garrel roça a inabilidade narrativa absoluta — NÃO HÁ NADA PARA CONTAR — transferindo para o receptor o papel de reconstituir o fio e desfazer os nós da ficção. Num tempo de intoxicação ficcional, as histórias serão fruto de uma fixação individual ou não serão. E a literatura oral que nos resta, consiste provavelmente num discurso de reconstrução das fábulas que não existem. Porém, para aderir à proposta estética de Garrel talvez seja preciso partilhar a sua convicção de que a beleza está entre nós. Descobri-la, tocá-la — reconhecer a importância da fé — implica estragá-la. Daí o motivo da criação. R. G.