AS MIGALHAS DO PEQUENO POLEGAR Pessoalmente, a questão da crítica surge-me como sendo a última de uma cadeia de problemas ligados ao meu visionamento dos filmes. Primeiro, porquê ver filmes? Porquê tantos filmes? Porque não todos os filmes (critérios de selecção)? Depois, o que é que me fica dos filmes? Como é que os analiso? A passagem das ideias a «limpo» para o papel é de facto o último elo desta cadeia mas levanta questões particulares. Porquê o esforço de escrever? Para quem? A paixão pelo cinema que me veio por volta dos treze anos, foi imediatamente assimilada à descoberta de uma alternativa à expressão escrita. A poesia parecia-me então suspeita por se valer dos recursos da retórica mais convencional e, sobretudo, o desfasamento entre as palavras e o real confinava-a a um domínio de prazer inofensivo: por último, as condições de leitura, solitária, ou entre «iniciados», transformavam-na num instrumento de «distinção» e não tanto de comunicação. O cinema, na sua estética mimetico-realista, parecia-me colar ao real, apesar das convenções dramáticas e ficcionais. O visionamento dos filmes implicava sair dos círculos conhecidos da escola e da casa — conheci Paris em parte graças aos itinerários que me levavam de uma sala de cinema para outra. Por outro lado, a presença anónima dos outros espectadores modificava a qualidade da emoção vivida no escuro. O cinema passou a ser a minha droga, ao mesmo tempo fuga ao real e composição duma irrealidade suficientemente alicerçada para se bastar a si própria. Um ano mais tarde, decidi, definitivamente, passar à realização. Desde então, a minha consciência da ligação entre um «real» discutível e a sua imagem cinematográfica tornou-se mais complexa. O conhecimento das condições de produção leva-me a considerar, na melhor das hipóteses, o cineasta como uma testemunha comprometida — próxima da falsa testemunha — mais do que como autor. O cinema aparece-me antes de tudo como a memória das ilusões do século. A esmagadora maioria da produção industrial obedece a convenções dramáticas tão pobres que não pode surgir nenhuma surpresa. Muitas vezes só vou ver os filmes por fidelidade a uma obscura emoção adolescente, às vezes por mero sentimento do «dever profissional». O critério de selecção ainda é o risco de ser surpreendido. Em contrapartida, a actividade crítica parece-me indispensável, não no momento da redacção de um artigo, mas ao sair do filme. A actividade crítica só se exerce se tiver havido emoção. Trata-se, por um lado, de compreender o sistema de conotações e denotações que permitiu à imagem transcender o conteúdo representado para criar essa emoção; por outro, de analisar os recursos técnicos que compuseram a imagem. Obscuramente, acredito na existência duma lei kantiana — mas talvez seja também o meu lado judeu a revelar-se — que rege a emoção humana — é ela que faz do cinema uma arte universal e não a universalidade da linguagem icónica — e, por conseguinte, a estética. A percepção dos dados, senão fixos pelo menos homogéneos, em jogo num leque de filmes muito diversos perante os quais senti uma forte emoção, confirma esta minha intuição. A ideia de que o condicionamento espacio-temporal da nossa consciência limita essa percepção leva-me a acreditar que o conhecimento ou a aproximação dessa lei é infinitamente aperfeiçoável. Portanto, a análise efectua-se por comparações e tentativas de síntese. O ponto de vista do cineastatestemunha por vezes orienta suficientemente a sua estética para que a análise se efectue no seio da própria obra. A esse nível, confio à minha memória o trabalho de seleccionar as imagens a ter em conta. Assim, a busca das leis — com efeito, defendo que um filme é bom, i.e. original, criador de emoções, etc., ou mau, e que esse juízo deve assentar em critérios não absolutamente subjectivos — implica uma submissão da memória subjectiva ao ponto de vista da testemunha e, para além desse, à história do media tal como dela posso ter consciência. Por outras palavras, a crítica implica assumir momentaneamente, de uma forma algo megalómana, a história do cinema. A actividade crítica só se justifica, profundamente, como complemento do meu trabalho de realização — fazer os filmes que nunca foram feitos e que os outros não vão fazer. A relação com os cineastas sobre os quais posso escrever é forçosamente de solidariedade — mesmo que nem sempre seja de admiração. Posto isto, o facto de escrever sob forma de artigos parece-me acidental, ligado ao facto de que a realização é uma actividade intermitente (enquanto que o visionamento de filmes ocupa a minha vida de maneira contínua) e deve-se ao encontro e aos laços de amizade
criados com a equipa da revista. Espero invariavelmente que esses permitam trocas, mas quase sempre em vão. Concebo-os como introduções a uma discussão mas as respostas fazem-se esperar — tanto o tom polémico como a preocupação de construir um raciocínio decorrem desse desejo de provocar uma resposta. S.