AS TRÊS DESGRAÇAS Nenhum cenário. Os adereços necessários virão da teia ou dos bastidores. Os actores estão constantemente a mudar de aspecto e de indumentária. Os papéis de mulher podem ser interpretados por homens e os de homem por mulheres. Todos usam perucas e postiços. Maquilhagens carregadíssimas, mas não no estilo palhaço, antes à maneira expressionista. PRIMEIRO ACTO O Julgamento de Páris PRÓLOGO Banhando num concerto de invisíveis balidos, Páris, o pastor, está deitado. hirsuto, vestido com peles de carneiro, toca pífaro. Uma maçã, vinda das alturas, acerta-lhe no cucuruto da cabeça. Páris esfrega a zona do crânio atingida pelo fruto cadente e arvora uma expressão inquieta. Belisca os braços para se certificar de que está acordado. PÁRIS murmurando – Não vejo… Não estou mesmo a ver… Mas deve haver uma razão. Uma coisa… Uma causa… Uma lei. (Olhando para o lado.) Desta árvore, não pôde ela cair. Tão certo como eu me… Páris é interrompido pela voz de trovão de uma divindade. As ovelhas param de balir. VOZ DA DIVINDADE – E porquê, verme filho de verme? PÁRIS estarrecido mas com atrevimento – Porquê? Ora, ora… Ainda eu mamava nas tetas da minha mãe já ela estava morta e seca. VOZ DA DIVINDADE furibunda – E achas tu, verme comida de verme, que os deuses não podem obrigar as árvores mortas a dar fruta? PÁRIS sem hesitar – Não duvido, não duvido. Mas isto que aqui vê é o que resta de um castanheiro. Não dá maçãs. VOZ DA DIVINDADE – E julgas tu, verme desmiolado, que os deuses têm tempo para estudar botânica…? PÁRIS cabisbaixo mas ousando retorquir – Sim… não… quer dizer… os deuses fizeram as árvores diferentes umas das outras antes de mandarem nelas e… VOZ DA DIVINDADE – Irra que além de rastejar falas pelos cotovelos…! Pega na maçã! Páris obedece sem retorquir. PÁRIS – Não é para lhe meteres o dente! Certo? Páris acena que sim com a cabeça. VOZ DA DIVINDADE – É tua missão, é tua OBRIGAÇÃO, entregá-la à mulher mais bela. PÁRIS virando a cabeça para cima – Mulher??? Mas onde está a mulher? Eu sou um solitário, um solteirão. Convicto. Ou seja: já não há mulher que queira esta vida de pastor e eu habituei-me à solidão. Faço companhia a mim mesmo. Até já tenho manias de velho. Durmo vestido. Não gosto de fazer a barba. Mulheres-mulheres não lhes ponho a vista em cima desde que enterrei a minha mãe. Silêncio da divindade. As ovelhas voltam a balir. CENA 1 Uma primeira mulher vem quebrar o sossego de lã no qual o pastor Páris permaneceu quieto mas um tanto perturbado pelo confronto com a voz da divindade. É, ou parece ser, uma prostituta profissional: tacões altíssimos, escandalosamente maquilhada e desnudada em várias zonas do corpo, etc. Páris observa a criatura sem manifestar excessivo interesse. Deve-se sentir todavia que a sua indiferença não é espontânea. A mulher avança até ao lugar do pastor. Ambos se fitam. As ovelhas não param de balir.
MULHER 1 – Vê-se mesmo que és um labrego, querido. (Suspiro.) Ninguém te ensinou que um homem se levanta para cumprimentar uma senhora. E que se oferece um… um refresco a quem chega…? PÁRIS – Desculpe, é que… É que eu vou à fonte quando quero beber. Não tenho água canalizada e coisas assim. MULHER 1 – Coitadinho… E quando está mau tempo, ficas a chuchar no dedo? PÁRIS – Minha Senhora (aclarando a voz) isso não é da sua conta. (Erguendo-se e passando a mão pelo cabelo desgrenhado.) E, já agora, posso saber a que devo a… a honra… a honra desta visita? MULHER 1 aproximando-se provocantemente – Tu sabes, meu rico, tu sabes. Não me chames «senhora» que as senhoras como eu nunca deixam de ser meninas… PÁRIS falsamente tímido – Não sei de coisa nenhuma. Tenho pouco convívio com mulheres. MULHER 1 recuando um passo e olhando à sua volta – Vê-se… PÁRIS – Não me diga que veio por causa da maçã. MULHER 1 – A maçã, a maçã.. ainda não provaste nada daquilo que te trago e já queres passar à sobremesa. PÁRIS temendo tê-la ofendido – Desculpe lá aquilo da canalização… Tenho leite, tenho queijo e tenho um licor de medronho de trás da orelha. MULHER 1 – Ai… de trás da orelha… és mais sabido do que pareces. PÁRIS – É uma receita da minha falecida mãe que… MULHER 1 grosseira – Ó rico, deixa lá a mamã. Para um moço crescidinho, agora a mama há-de ser outra. (Pausa teatral.) Ai… não sei como se pode viver com este pivete. E olha que eu já cheirei de tudo neste mundo… PÁRIS – É do rebanho. As ovelhas param de balir. MULHER 1 – Mas as ovelhas que comem tanta flor e tanta erva aromática podiam ser menos fedorentas. PÁRIS – Isso depende dos gostos. MULHER 1 – Os gostos educam-se depressa. Quando conheceres o cetim da minha pele, vais ver que a lã das ovelhas aRRanha… Páris vira costas, afasta-se um pouco e fica parado, sem jeito. MULHER 1 soltando risinhos um tanto galináceos – E vais ver que perdes a timidez não tarda nada. Eu tiro-te os três e os quatro, ó Cro-Magnon. Sou uma espécie de paraíso à face da terra, se queres saber. Abeira-se bamboleante de Páris que continua de costas. Claro que o que é bom tem os seus preços. Começa com a beijoca e depois é upa-upa. Mas, na verdade, tens aqui muita carne de primeira. Descansa que não me quero tornar pastora. Pegas no rebanho, levas a bicheza ao matadouro e entramos em contas. (Agarra Páris pelos braços, obriga-o a virar-se para si e espetalhe com um linguado longo e lambuzado.) Este é por conta da casa. PÁRIS atordoado – Muito obrigado, minha Senhora. Faz uma vénia cómica. MULHER 1 – Não me dês uma de salamaleques. Eu sou uma mulher de negócios. O meu negócio é levar-te ao céu e o céu não pode esperar. Mas antes preciso de garantias. (Abrindo um sorriso.) Normal, não? PÁRIS hesitante – Sim… não… estou muito baralhado. O curral às escuras, o cheiro da lã e da palha, as manhãs no monte, mesmo as mais frias… isto é a minha vida e… MULHER 1 – Ó rico, chamas vida ao tesão de mijo nesta estrumeira…? Páris não responde. MULHER 1 – OK. Se assim é, mais vale ficares na tua e continuares a ir ao cu das ovelhas, tá? A mulher, enraivecida, vira costa, tropeça, quase quebra um tacão. Recompondo-se, lança um olhar cheio de mel a Páris. MULHER 1 – Mas ainda vais a tempo de mudares de ideias. (Arranjando o cabelo.) É que eu sou uma santa boca e tenho um fraquinho por maçãs. Silêncio de Páris. Saída precipitada da mulher, ao cabo de alguns segundos de cortar à faca.
As ovelhas voltam a balir. CENA 2 Páris apanha o pífaro deixado no chão e acaricia-o distraidamente como que esquecido da utilidade do instrumento. PÁRIS meditabundo – Aquelas mamas… aquele par de nadegueiro… Serão mesmo a sério? Agora com o silicone, nunca se pode estar certo da mercadoria. (Forçando um sorriso.) Se ela voltar, pergunto-lhe. Se ela voltar, vou tirar isso a limpo… Pé ante pé, entra uma segunda mulher. Com um ar de gretchen tirolesa, só lhe falta o avental de dona de casa. Sapato raso. Talvez tranças, mas olhos com excesso de rimmel. Traz um saco onde cabe mais do que a habitual panóplia feminina. Abeira-se do pastor que não deu pela sua chegada e quase sobressalta quando dá de caras com a visitante. MULHER 2 falsamente estupefacta – Mas é mesmo aqui que o Senhor mora? PÁRIS seco – É aqui sim. Porquê? Tem algum recado para mim? MULHER 2 escolhendo as palavras com estudada timidez – Não. O recado sou eu. PÁRIS quase divertido – Que rica prenda!!! MULHER 2 – Não se amofine. E não me ofenda que eu venho por bem. Falaram-me de um homem solitário… solteiro… na flor da idade. Com algumas posses. Não que eu olhe muito aos extractos de conta… Não percebo nada de bancos. É para isso que os homens servem, não é? PÁRIS francamente disposto a divertir-se – Não sei não. Costumo sentar-me no chão. Um tempo. MULHER 2 – Oh…! Desculpe, eu sou um bocado ingénua. Levo sempre uns instantes a perceber uma piada. Fui educada à moda antiga, percebe…? O meu forte são as lides da casa, a economia doméstica, a culinária e as compras de mercearia, as arrumações racionais, as limpezas gerais. (Olhando à sua volta.) E quer-me parecer que isto por aqui anda bem precisado das mãos de uma mulher. Silêncio de Páris. MULHER 2 esganiçando a voz para sublinhar a feminilidade – Olhe, até aprendi a cortar o cabelo. Aos cavalheiros, quero dizer. Para além da manicure, da pedicure, das papas de linhaça, do chá de limão. E quando me falha a memória, tenho fichas. (Metendo a mão dentro do saco.) Quer que lhe mostre? PÁRIS – E não tem nada mais interessante para me mostrar? Um tempo. MULHER 2 – O Senhor é um ma-ro-to. Mas é para isso que os homens servem, não é? (Dengosa.) Olhe, Senhor trata da maroteira e eu trato de lhe pôr a casinha num brinco… Vai ver que até no chão se há-de poder comer? PÁRIS – Comer no chão? Que ideia…! Ovelha é ovelha, homem é homem. E, para elas, o chão está sempre limpo. MULHER 2 – Bem me avisaram que o Senhor é um osso duro de roer. Mas eu tenho bons dentes. Se os cravar numa maçã verde, quem sangra é a maçã… está ver…? PÁRIS – Acho que sim, que estou a ver. Fada do lar, boa dentadura, cabeleireira nos tempos livres… MULHER 2 – Sei bordar, fazer renda, tricotar, coser, remendar, passajar, passar a ferro… Fazer cafuné… PÁRIS à queima-roupa – E para o cu não vai nada? Um tempo. MULHER 2 – Só se for à moda antiga. Mas dizem que vai voltar à moda, a moda antiga. E, no fundo no fundo, todos os cavalheiros precisam de uma mãe. Há uma ovelha desmamada em cada lobo, não é? PÁRIS filósofo – Eu diria antes que certas mulheres são umas lobas para os homens. Um tempo.
MULHER 2 – Não atinjo. Mas não faz mal. O Senhor não há-de querer uma esposa demasiado esperta. (Suspirando e arvorando uma expressão de criança a fingir.) Uma caminha lavada. Uma comidinha acabada de sair do lume. PÁRIS como se não topasse as alusões veladas – Eu passo bem sem pão e colchão, desde que haja um naco de queijo… MULHER 2 galinácea – Ah queijo… ensine-me a fazer queijo. As ovelhas param de balir. PÁRIS – És das que são ares de colégio de freiras mas vão directas ao assunto. MULHER 2 – O meu pai dizia que nem casa de respeito, nem casamento perfeito se fazem com conversa fiada. São as discussões que dão cabo da paz do lar. Aliás, é o que mais se vê por aí… PÁRIS – Se é para falar com as paredes, já estou servido. MULHER 2 – Mas eu sou muito boa ouvinte. E bastante menos lisa que uma parede, se me permite uma gracinha. PÁRIS reflectindo e deitando-se ao comprido no chão – Olha, se vens ao negócio da maçã, preciso de te ver descascada. MULHER 2 – Sem papel assinado, nem pensar. O meu pai dizia que as mulheres fáceis facilmente enfastiam. E são fáceis de descartar. PÁRIS – Então vai arear tachos para outra freguesia. MULHER 2 – Mmmm, eu gosto dos homens assim… assim duros como Senhor. Com eles no sítio, perdoe-me a expressão. Descanse que lhe dou um tempo de reflexão. (Preparando uma saída teatral. ) Não se casa para a vida com a primeira aparecida, não é. (Encaminhando-se para fora de cena.) Mas o Senhor, não tarda muito, vem à minha procura. E eu, quando voltar, trago uma tarte e uma garrafa de cidra. (Já fora de cena.) Para brincarmos ao Capuchinho Vermelho. As ovelhas voltam a balir. CENA 3 PÁRIS – Porra, a cabra deu-me fome! Até me dói o estômago… Será que a gaja cozinha tão bem como se gaba? Da próxima vez, tenho de provar para acreditar… Passados escassos instantes, Páris ergue-se de supetão, murmura imprecações (que são outras tantas pragas rogadas contra si mesmo, do tipo: «És mesmo bronco!» ou «Mas que macaco de mordeu!») e faz menção de ir atrás da segunda mulher. Mas, quando vai para sair de cena, esbarra com uma mulher trintona, vestida como uma catraia – calças à boca de sino, túnica indiana, vários colares e pulseiras muito etno, cabelo farto e solto, tudo na onda freak/flower power. Quase caem literalmente nos braços um do outro. Ambos desatam a rir. Entreolham-se. Afastam-se. MULHER 3 – Isto é um sinal. Fogo, ganda carma, o meu feeling nunca me engana. É o máximo. PÁRIS – O máximo porquê, miúda? Um sinal de quê? MULHER 3 – Ok, ok, eu sei tu és um descrente. Mas eu, que já fiz workshops com os melhores mestres, reconheço neste… neste encontrão, o grande encontro da minha vida. E é bué da fixe, porque houve N cromos que tentaram dissuadir-me de vir aqui ter contigo… Que o cota era má onda, completamente out, himalaias de careta, que eu tinha de deixar de ser vegan, e blá e blá… estás a ver o filme? PÁRIS – Aqui não há cinemas e eu nem televisão tenho… MULHER 3 gesticulando enfaticamente – Chau, olha-me a tua onda. Forçando o tom entusiasta. Uau, tu tás muito à frente, meu. Os brothers dizem cobras e lagartos da televisão, mas ficam horas no sofá, a fumar charros colados às séries… Dando pulinhos de contentamento. God, eu sabia que tinha uma alma gémea. Felizmente só vou atrás do meu feeling. PÁRIS – E o que vem a ser isso do feeling, miúda? MULHER 3 – Ó amor: peace! Peace, please. Não me obrigues a flipar com as palavras em inglês porque eu já fiz um inter-rail há uma eternidade, tás a ver? Eu sei o que quero dizer, mas não quero trocar o que digo por palavras, tás a ver? PÁRIS – Não estou a ver, miúda, Não estou mesmo. Mas tu falas pelos cotovelos, lá isso…
MULHER 3 – Yes, tás-me a dar razão, man. A cena é que as nossas órbitas cruzaram-se assim bué de intensamente e isso bateu-me muito… Atão tive de improvisar. Sorry man, se foi muito seca. Não tripes comigo que eu estou a curtir o teu andamento e acho que temos uma energia muito parecida, tá? PÁRIS coça a cabeça, olha a visitante de cima a baixo, sem saber o que pensar. PÁRIS – E na cama és boa? E para a cozinha tens jeito? É que eu tenho uma fome que me sinto capaz de te comer… As ovelhas voltam a balir. MULHER 3 – Ui, man… Segura os cavalos, tá? A cama, meu, para mim a cama é bué de abrangente, tipo o mundo inteiro é uma cama, e eu passo-me com os cromos que só querem roubar o meu power e não se esforçam. Porque, para mim love is all, man. O amor é que faz girar o meu mundo. O amor e a tua cabana, ganda curte…! Mal te vi, flashei logo. A barba por fazer, a pele de carneiro… PÁRIS – Pronto, isso é à primeira vista. Mas eu não vivo de ar por economia. Estava a pensar que podíamos trincar qualquer coisa. Não queres… improvisar uma ceiazinha enquanto eu vou dar feno às bichas…? Silêncio. As ovelhas param de balir. MULHER 3 – E não queres antes mostrar-me o teu rebanho, man? Eu amo tudo quanto é bicho. Tipo eu própria me sinto N bicho num body de garina, topas? Peixe na água, cabra no monte, lagarto ao sol, borboleta à luz da vela… PÁRIS – Bastante poético, mas não mata a fome. Vá, eu mostro-te os tachos e tu mostras o que vales. MULHER 3 – Ó pá, man, a cena dos tachos não é muito a minha onda. Eu posso improvisar, mas não tava nada numa de gastar o meu power, logo assim no nosso first date… Não tens aí umas latas que o pessoal possa abrir? Tudo vai da energia positiva… e da companhia PÁRIS – Grande lata, a tua, miúda…! Começamos com conservas e amanhã estou a levar-te o pequeno almoço à cama. MULHER 3 – E não é uma curtição tu fazeres isso pelo love da tua life, man? PÁRIS sem paciência – Não! MULHER 3 – Não tás a atinar, man. Olha que o meu coração vale mais do que um panelão de chanfana. E a a minha ternura vale mais do que um bife com um ovo a cavalo, por muito tenro que o bife seja. PÁRIS – Cala essa boca se não queres que eu comece a salivar para cima de ti. MULHER 3 – É que tu não tás mesmo a ver o filme, baby. O meu love é do género estado alterado da consciência. Não tás a ver a peace que o meu love te vai dar a curtir. Tipo ganda orgasmo com o sol a cavalo na lua e N stars a brilhar que até chateia. Que eu não sou o género de garina que frita os neurónios do boyfriend com cenas terra a terra e ondas xunga… Não me digas que não queres ao menos experimentar, man? PÁRIS exasperado e esfomeado – Não!!! Estou esganado de fome e não tenho saco para levar com eternas adolescentes. Páris agarra na maçã vinda das alturas e dá uma valente trinca. Um poderoso trovão fá-lo estremecer da cabeça aos pés. MULHER 3 – OK, man, eu bou bazar que tu não estás nos teus dias. Fogo, flashaste na fruta, baby… Se te estavas a passar com a fome, dizias. Eu trago sempre cookies na mochila… Chau, love. Quando caíres na real, vens ter comigo, tá…?! A mulher sai. PÁRIS febrilmente – A miúda tem carradas de razão. Eu não estou nos meus dias. Ora vejamos… A primeira… boa como o milho. Vai-se o milho e depois pode ser uma espiga, mas mesmo assim, caraças, que pedaço de fêmea. A segunda… boa cozinheira. (Perdido nas suas recapitulações, Páris recomeça a comer a maçã, sem se dar conta de que a está a devorar.) Um bocado bafienta, contudo bem educada. E, na verdade, uns petiscozinhos, umas mordomias, uns mimos, umas camisas passadas a ferro… tudo isso faz falta na vida de um homem. A mania de se fazer de
ingénua não me caiu muito no goto. Mas só de pensar em comida, até me babo. A última, muita louca, mas muita gira. E se aquela coisa do amor para a frente e para trás fosse à séria… Sei lá, só… Páris repara finalmente que devorou a maçã e fica com um de puto apanhado em flagrante delito. Em pânico, começa a procurar por toda a parte. PÁRIS - Onde caiu uma, talvez tenham caído duas ou três… Eu não quero ficar sozinho. Não quero. Como é que eu desperdicei três gajas de arromba num só dia??? Entra uma velhota com um xaile negro sobre a cabeça e os ombros. Vergada pelo peso de um fardo de lenha. Ao ver Páris andar às voltas, a anciã, curiosa, estaca. As ovelhas voltam a balir. A VELHOTA – Que buscas tu, meu filho? A minha vista baixou muito, mas será que te posso ajudar. PÁRIS desnorteado – Ando à cata de maçãs… A VELHOTA – Maçãs? Perdeste o tino, meu filho. Quem no seu perfeito juízo procura maçãs à sombra de um castanheiro que a faísca fulminou? SEGUNDO ACTO À Procura de Emprego PRÓLOGO Páris não reage ao comentário da velha e continua à cata de maçãs. Acaba por sair de cena na continuidade desse movimento de busca. A velhota retira o xaile preto que lhe tapa completamente cabeça e ombros, endireita-se. Revela-se uma mulher jovem e bonita. Sem perder tempo, a rapariga ajeita a roupa que trazia por debaixo do seu disfarce, colocando sobre cabeça um capuchinho vermelho. Abandona o feixe de lenha, começa a andar pelo palco, bastante escuro, como que perdida. Saca do bolso da saia um pão que leva à boca. Mas hesita em comê-lo. Desata antes a esboroá-lo delicadamente, semeando migalhas pelo chão, à imagem do que fariam alguém receoso de não voltar a encontrar o caminho. De súbito, acende-se uma luz que ilumina duas cadeiras de escritório frente a frente. Numa delas, está um homem sentado, de perna traçada, que logo localiza a figura da mulher errante. PATRÃO 1 num tom que não admite réplica, charmoso mas autoritário – Sente-se! Capuchinho Vermelho obedece à ordem gritada pelo homem sentado. Tenta compor uma atitude, mas sente-se embaraçada por ter ainda nas mãos um bocado de pão. PATRÃO 1 – Isso é a sua merenda? RAPARIGA – Sim. O pão é um alimento saudável. E mata a fome. Fibras, proteínas vegetais… PATRÃO 1 – Muito sábia, ao que vejo. Mas falta-lhe aprender que nisto do pão nosso de cada dia, o que conta é a manteiga… CENA 1 RAPARIGA soltando um suspiro estudado – Depende do regime. PATRÃO 1 – Não me diga que anda metida em dietas. Seria uma pena… A rapariga não responde. Apenas baixa os olhos com falsa timidez. PATRÃO 1 – Bem, mas não estamos aqui para falar de comidas. Não andamos à procura de uma cozinheira. Com umas mãos tão bem cuidadas, não me passaria pela cabeça pô-la a descascar batatas. O sujeito ri, satisfeito com os seus ditos espirituosos. Ela força uma risadinha para não o decepcionar. PATRÃO 1 com repulsiva familiaridade – Como porventura a minha amiga sabe, somos uma grande empres… ou antes uma organização internacional de grande envergadura. Uma ONG de primeiríssimo plano no grande tabuleiro de xadrez do nosso planeta. Sector de actividade: a intervenção humanitária. Pausa estudada.
RAPARIGA – E andam a recrutar voluntários… (Ajeitando o cabelo.) Não é que eu ache mal… bem pelo contrário, mas não é exactamente o que eu… PATRÃO 1 – Sossegue, querida, sossegue. Na nossa ONG só há profissionais. Os amadores são um desastre. Os voluntários são um estorvo. Os idealistas são uma cambada de incompetentes. A gente já acabou com isso há que séculos. RAPARIGA tentando centrar a conversa na questão do emprego – Então o Senhor confirma que se trata de um posto de secretariado. PATRÃO 1 – É isso e muito mais. Mas não me trate por «senhor» que isso faz-me sentir seu avô e eu não tenho idade para isso. RAPARIGA falsamente apoquentada – Desculpe… PATRÃO 1 – Ora vamos lá ver se a gente põe os pontos nos is sem grandes rodeios. Já vi que a… RAPARIGA – Diana… O meu nome é Diana. PATRÃO 1 – Excelente nome. Internacional. Dizia eu que já percebi que a Diana tem… tem boa cabeça. Nós lidamos com milhões. Muitos milhões. E esses milhões, tenho a certeza de que me entende, há que caçá-los. Como é que se caçam milhões? Indo directamente aos bolsos onde eles moram. Que são os bolsos dos… RAPARIGA abrindo um sorriso ávido - … milionários. PATRÃO 1 – Brilhante, minha querida. Mais do que para escrever cartas à máquina, reservar voos e hotéis, agendar reuniões – isso qualquer matrona bem treinada faz na perfeição – precisamos de uma mulher esperta, espevitada, ambiciosa, descomplexada, para fazer todas as operações de charme necessárias juntos dos donos da pasta. Certo? A rapariga acena a cabeça para dar a entender que já topou o esquema. PATRÃO 1 – Claro que depois há o folclore dos ditadores, dos generais e dos políticos corruptos que é preciso tratar com quantos pares de luvas for preciso. Não se preocupe. São muito sensíveis aos encantos femininos e, levados com jeitinho, chegam a ser uns mãos largas. Enfim, também vai ter que conviver com alguns velhadas a cair da tripeça mas… são os ossos do ofício. Mas o ofício, acredite querida, tem uma data de compensações… Pausa estudada. RAPARIGA – Como sejam…? PATRÃO 1 – Brilhante. A minha amiga tem boa cabeça, e não a perde. É assim mesmo, escaldante por fora, mas sempre de cabeça fria. Pausa estudada. PATRÃO 1 – Ah… pois, como sejam… Como sejam: viagens exóticas com tudo pago nos melhores hotéis e restaurantes. Cobertura de todas as despesas de representação, nomeadamente guarda-roupa, cuidados estéticos e por aí fora. Uma comissão de 10% sobre os apoios financeiros angariados. Livres de impostos, claro está… Quer mais? RAPARIGA – Mas não há um mínimo fixo, um salário…? PATRÃO desdenhoso – Ó rica, a minha amiga não está ver de que níveis de de lucro estamos a falar… Salário para quê? Para dar prendas ao fisco? Pausa. A rapariga ganha força para levantar a questão que lhe queima a língua. RAPARIGA – O senhor, ou antes, o amigo tem a certeza de que não me está a propor ser… ser pombo correio de algum obscuro tráfico de órgãos de crianças ou de crianças inteiras… ou coisa que o valha…? PATRÃO 1 forçando-se a rir sonoramente – Ó por quem sois… isto é um negóc… uma actividade perfeitamente legal, honesta, reconhecida de utilidade pública, saudada pelas instâncias internacionais e… (Tom meditativo.) Quer-me parecer que a… a Diana não devia deixar a sua inteligência exceder-se. Não é por esses negócios sujos e… e altamente condenáveis utilizarem os mesmos canais que a nossa… a nossa intervenção humanitária que os fins… e os meios… se confundem. RAPARIGA tentando não parecer retraída – Bem… ainda bem. Pausa. RAPARIGA – E quais são esses canais? Eu não tenho carteira de contactos, nem…
PATRÃO 1 – Dos canais, trato eu. A Diana trata de se pôr bonita, irresistível. Mas sem exageros que essa gente da alta tem muito andamento e não cai em esparrelas, se o… o isco não for muito… raffiné. Portanto, guarda-roupa a rever de A a Z. Eu posso ajudar. Adoro fazer compras com mulheres. E tenho um gosto infalível. Acerto sempre na mouche. Pausa. PATRÃO 1 – A Diana tem alguma experiência de teatro, não é verdade? RAPARIGA sem saber que responder mas evitando confessar que não – Não, a sério não. Só teatro amador. Nos meus tempos de estudante… PATRÃO 1 – O meu dedinho, que nunca me engana, bem me dizia que a amiga tem talentos de actriz. Muito úteis para o que a espera. E eu encarrego-me de ensaiar consigo o papel até a coisa estar prontinha para a sua estreia. Pausa. PATRÃO 1 destraçando as pernas e fitando-a intensamente como se a comesse viva – Seja como for, precisamos de nos encontrar fora do escritório e das horas de expediente. Tenho de me certificar que a minha amiga é a mulher que convém para estas relações… diplomáticas. RAPARIGA não querendo dar-se ares de santinha, mas hesitando ainda assim - E eu preciso de um tempo. De um tempinho de reflexão… PATRÃO 1 seco – 24 horas? Há-de chegar e sobrar para avaliar uma proposta irrecusável. Uma oportunidade única. (Acende um charuto e sopra fumo para a cara da interlocutora.) Sabe, Diana, as pernas esculturais e os palminhos de cara, as chicas espertas e as fura-vidas não faltam por aí. (Erguendo-se com uma energia que obriga a entrevistada a levantar-se.) Fico a aguardar a sua resposta. Foi um prazer. Foi… quase… um prazer. A rapariga retira-se sem conseguir articular uma frase de despedida. O sujeito volta a sentar-se, estica as pernas e pousa os pés na cadeira desocupada, mete a mão ao bolso direito e tira de lá uma sande de pão integral com salmão, embrulhada num cartucho de papel craft. Faz uma bola com o embrulho e atira-o para fora de cena. Devora literalmente a sande. De seguida, leva a mão ao bolso esquerdo donde saca uma garrafinha metálica e bebe uma longa golada. CENA 2 A rapariga volta a entrar em cena, olhando para a direita e para a esquerda como se não reconhecesse o local. O sujeito limpa apressadamente a boca com um lenço aos quadrados que tira da algibeira (subitamente parece mais velho e mais pesado, mais vergado pelas preocupações). Ela enverga agora uma espécie de tailleur chanel herdado da tia rica que, ainda por cima, lhe terá dado muito uso. Sapato de meio tacão. O pão na mão, ainda por comer… PATRÃO 2 quando ela chega à altura dele – A menina vem responder ao anúncio. RAPARIGA com uma voz um pouco sumida – Sim, venho ao anúncio. Aclarando a voz. É aqui que são feitas as… as entrevistas? PATRÃO 2 – Não lhe parece óbvio. (Reparando no pão que ela traz na mão e aperta como um talismã.) Mas acabe lá de comer que eu… RAPARIGA muito depressa – Não tenho fome. É dos nervos… PATRÃO 2 – Pois, fome fome, só mesmo longe da nossa vista. E normalmente em terras onde nem pão de trigo sabem fazer. Safam-se com uns bolos de milho ou de arroz muito desenxabidos… RAPARIGA – O amigo já visitou assim países distantes? PATRÃO 2 – Amigo?! Dobre a língua, menina, que eu não andei consigo na costura. (Suspiro. ) Mas se quer mesmo saber, sim. E não foi de férias… O sujeito limpa a testa pretensamente suada com o lenço aos quadrados. RAPARIGA – Posso-me sentar…? PATRÃO 2 – Sente-se lá, sente-se, que eu vou já directo ao assunto. Se vem em busca de um empregozinho catita, tipo terapia ocupacional para mulherio que se chateia em casa, desengane-se. RAPARIGA pasmando, abrindo a boca, arrependendo-se, respondendo com uma veemência estudada – Quem dera… Não, eu venho para trabalhar. Respondi a um anúncio de secretária. PATRÃO 2 – Ora então ainda bem, que trabalho não lhe faltará aqui. Tem filhos?
RAPARIGA – Sou solteira. PATRÃO 2 – Isso hoje em dia não quer dizer nada. A menina veio bater à porta de uma… digamos de uma estrutura empresarial que está a atravessar sérias dificuldades. Correspondência acumulada, contabilidade em atraso… Milhões de contas e de cartas a pôr em dia. Está ver o panorama? RAPARIGA – Mas estamos a falar de uma empresa… de uma estrutura sã, não estamos? É que eu não tenho experiência de gerir falências ou de… PATRÃO 2 – Sã ou doente, isso não lhe diz respeito. A menina será paga para lhe dar no duro, sem regatear horas extraordinárias, sem invocar males de família ou outras maleitas para fugir com o rabinho à seringa. Para sua informação, nos tempos que correm, não há empresas sãs. Há gente que se faz à vida e gente que faz pela vida. Se a gente – isto é, a nossa estrutura – se safar, tem aqui emprego para a vida inteira. O que é invejável, convenhamos… RAPARIGA – A verdade é que… devo confessar ao Senhor… PATRÃO 2 – Ao Senhor Doutor. RAPARIGA – ao Senhor Doutor que não estava à espera de um trabalho deste tipo, numa emp… numa estrutura que se dedica ao trabalho social, à intervenção humanitária e… Aliás, o vosso anúncio dava a entender que as minhas funções implicavam viajar, encontrar pessoas… PATRÃO 2 seco – Veremos, veremos. O mercado do humanitário não tem nada a ver com turismo. RAPARIGA – Pois sim, mas o vosso raio de acção não é local e eu julguei… PATRÃO 2 – Julgou mal. Mas não falta por aí quem queira trabalhar. Localmente falando… RAPARIGA – Eu sei, seu sei. E não disse que não estava até… até… disposta a fazer alguns sacrifícios. Só que… PATRÃO 2 imitando a voz de uma fêmea – Só que achava que com um par de gâmbias e um focinho de capa de revista, chegava aqui e a gente propunha-lhe uma paga principesca. Tire o cavalinho da chuva. O salário é mínimo e o trabalho é máximo. Honestidade irrepreensível, dedicação absoluta e discrição total também fazem parte do contrato. É pegar ou largar… RAPARIGA – O anúncio não era assim tão pormenorizado, vamos dizer. Mas o trabalho não me mete medo. PATRÃO 2 – Isso é que é falar… Porque, se a gente se entender com a menina, melhor dizendo, se a menina entender certinho direitinho o que a gente espera de si, pretende-se que entre ao serviço quanto antes. Não vai ter mãos a medir, nem tempo para filosofar. O sujeito volta a limpar a testa com o lenço aos quadrados. Leva a mão ao bolso, consulta o telemóvel. Com impaciência. RAPARIGA timidamente, para não enfurecer o eventual empregador - Gostava que o Senhor Doutor me elucidasse também acerca das férias, dos… PATRÃO 2 mostrando-se escandalizado – Férias? Ainda não mexeu um dedinho e já me está falar de descanso… Não há cá férias nem meias férias. Enquanto a nossa situação não estiver desanuviada, ninguém vai de férias. Era o que mais faltava. E um estágio no sindicato já agora. A rapariga tenta disfarçar a decepção e o desespero que lhe vão na alma o melhor que pode. PATRÃO 2 desfazendo companhia – Bom, eu não tenho vagar para entreter meninas versadas em leis… 24 horas para tomar uma decisão. Dou-as a si e dou-as a mim. Lembre-se que um emprego não é uma mama. Como frisei há pouco, desempregadas prontas a aceitar a primeira oportunidade são mais que as mães. Portanto… A rapariga levanta-se, desalentada e segura de que não vai ser contactada. Sai rapidamente para disfarçar a sua aflição. O sujeito pesca no bolso direito o lenço aos quadrados e estende-o sobre os joelhos. Do bolso esquerdo, saca um cartuchinho de papel donde tira um queque e começa a comer, por cima da toalha improvisada. Sorri, aparentemente satisfeito com o modo como conseguiu aterrorizar a candidata. CENA 3 Depois de saborear calmamente com o seu queque – que come mordiscando como as crianças –, o patrão levanta-se, tira o casaco, arregaça as mangas da camisa e compõe um ar de esquerda
caviar, muito à vontade na roupa que usa e elegante ainda que tenha dormido com ela vestido… Faz uma bola com o cartucho da merenda e ensaia uns passes de futebol fantasia. A rapariga volta entrar, com o seu pãozinho na mão. Desta vez enverga um vestido comprido, largueirão, um pouco seventies, talhado num tecido de cortinado (à maneira da freira do famoso «Música no Coração»). Tem um ar profundamente acabrunhado de dignidade magoada. O cabelo, que há muito não vê tratamentos especializados, escorre-lhe ao longo das faces. Ao avistar a candidata, o patrão chuta a bola de papel para longe e faz-lhe sinal de se aproximar. PATRÃO 3 – Por aqui, por aqui. E sente-se. A… (tira do bolso das calças um caderninho do tipo moleskine e consulta as suas notas)… a Diana – é o seu nome, não é – está com um ar derreado. RAPARIGA sentando-se – Não, não.. tudo bem. PATRÃO 3 – Posso tratá-la por tu? Sem esperar por resposta. É que nesta nossa cruzada, não temos saco para hierarquias, nem gosto pelas formalidades. Solícito. E podes comer o teu pãozinho, porque não se conversa bem de barriga vazia. A rapariga sorri timidamente. PATRÃO 3 – Eu vou ser muito franco contigo, Diana. Sem rodeios, nada na manga. O back stage da nossa organização está um caos. Excesso de optimismo, má rentabilização de recursos, gestão danosa… tudo concorreu para chegarmos a este ponto. Mas os erros na mobilização dos meios não invalidam os fins. As causas pelas quais militamos são justas, os fundamentos que levaram ao surgimento da nossa estrutura fazem, mais do que nunca, todo o sentido… Estás a perceber onde quero chegar, não estás? RAPARIGA – Estou, enfim, acho que estou. Silêncio. PATRÃO 3 – Fala, criatura, fala… Eu não te vou comer. RAPARIGA – O que é que o Senhor me perguntou? PATRÃO 3 – Eu não perguntei, Diana, respondi. Isto aqui não é uma fábrica de parafusos. Entre militantes de uma causa humanitária não se usam salamaleques. Nós trabalhamos na urgência. (Satisfeito com a sua própria eloquência.) Sim, «urgência» é a palavra certa. Somos… somos construtores de futuro, se quiseres. Sobre as ruínas de um mundo devastado pela guerra, pela fome, pela doença, queremos escavar novos alicerces. (Lançado como se estivesse a discorrer perante uma numerosa plateia.) Isto que há menos de meio século parecia um hobby de iluminados – a nossa luta pela e-fec-ti-vi-da-de dos direitos humanos – move agora milhares de homens e mulheres. Pausa para avaliar o efeito provocado na interlocutora. A rapariga encolhe-se. PATRÃO 3 respirando fundo – Ou seja: nós não precisamos de uma banal funcionária. Precisamos de uma colaboradora. De uma activista. De uma pessoa que vista a camisola, mesmo que, de momento lhe pareça apertada. RAPARIGA ganhando coragem – Com certeza… Tentarei dar o meu melhor. Tenho toda a disponibilidade para… para abraçar esse trabalho… Mas o Senho Dou… o ami… o… a… a questão é que ainda não me falou de horário, de salário, de… PATRÃO 3 – Lá iremos, lá iremos. Sabe, Diana, isso de salário, enfim, de salário fixo em todo o caso, já foi chão que deu uvas. Hoje em dia, os trabalhadores, em todos os sectores, são chamados à responsabilidade de gerarem os montantes proporcionais ao pagamento que recebem. Cada homem é um planeta. Cada homem é uma empresa. E isso é bom, na medida em que restabelece, sim restabelece, uma certa igualdade em termos planetários. Porque o nosso conforto económico, a nossa estabilidade financeira faz-se à custa da miséria que reina em três quartos do planeta. É preciso investir, Diana, investir na aventura de ser cidadão do futuro. RAPARIGA fragilizada pela necessidade, tenta conter as lágrimas – Investir? Mas eu não tenho onde cair morta. PATRÃO 3 – Olhe, Diana, se esta ONG chegou ao descalabro em que se encontra, foi porque os tubarões fizeram dela um meio de enriquecimento pessoal, no total desrespeito pelo sofrimento do terceiro mundo… Eu não lhe peço que invista o dinheiro que não tem. Apenas sugiro que se
comprometa com o sucesso do nosso empreendimento participando nesta aventura com… vamos dizer com uma percentagem do seu salário. Silêncio. A rapariga baixa a cabeça para disfarçar as lágrimas prontas a saltar. RAPARIGA – Mas eu… mas eu sou… eu neste momento sou… uma espécie de quarto mundo… Estou… estou entre a espada e a parede. As dívidas… quem se não eu vai pagar as minhas dívidas…? PATRÃO 3 soltando uma risada escarninha – Diana… Diana… como há-de compreender, um homem que viu crianças órfãs a comer no lixo, hordas de perseguidos em campos de refugiados, tribos inteiras dizimadas pela fome e a doença, não se deixa comover pela conversa de uma moça bem constituída que não tem dinheiro para os seus alfinetes. Silêncio. PATRÃO 3 – E, devo dizer-lhe, que não tenho o menor respeito por gente que prefere viver do desemprego a trabalhar para viver e, neste caso, ajudar os outros a sobreviver. A rapariga ergue-se com uma expressão de pavor estampada na cara. PATRÃO 3 – Bem, 24 horas hão-de chegar para os seus cálculos mesquinhos. Talvez a Diana caia em si, quem sabe… Enfia na boca uma pastilha elástica tirada de uma embalagem no bolso da camisa, levanta-se da cadeira, pega no casaco que despira no início da cena com a ponta do indicador direito, coloca-o displicentemente sobre o ombro e começa a retirar-se. PATRÃO 3 saindo de cena – Ciao, Diana. Ganhe juízo. A rapariga fica sem jeito. Como que colada ao chão. RAPARIGA com um olhar vazio – Lixaste tudo, pá? Lixaste a cena toda… Não sabias ficar calada? Quantas negas vais ter de levar para aprender a fazer as concessões necessárias? Quantas, minha? Imitando o patrão. «Ganhe juízo!» Foda-se… O cabrão tem carradas de razão. A rapariga olha para o pão endurecido. Dá uma dentada e a expressão do seu rosto denuncia que a coisa não é boa de trincar. Retira-se lentamente, como se não tivesse lugar para onde ir. TERCEIRO ACTO O Acto Eleitoral Cena única Manso burburinho de cidade. O homem e a mulher que já conhecemos sob um sem número de máscaras cruzam-se num lugar que se virá a revelar uma praça pública. HOMEM – Olá… Há que tempos, chi…! MULHER – Olha quem fala… HOMEM – Tudo bem consigo… contigo? MULHER o rosto diz o contrário das palavras – Tudo tudo... E tu, estás fino? HOMEM – Sim… Nunca pior, não é…? MULHER – Claro… HOMEM – Melhores dias virão. MULHER – Espero bem. É que, para baixo, todos os santos ajudam. HOMEM – Mas para a frente é que é o caminho. Ambos se forçam a rir com alguma cumplicidade também ela forçada. MULHER mentindo – Parece que por ti os anos não passam. HOMEM – Ora ora. Tu é que estás igualzinha ao que sempre foste. Galante. Com um toque de encanto suplementar… De súbito, uma voz oriunda de um altifalante invisível e ainda desregulada – demasiado alto, demasiado vibrante – ecoa na praça. Toda a massa sonora provém de cima e do centro. A mulher sobressalta, julgando que a praça vai ser cercada pela polícia. O homem pousa a mão no ombro dela como que para a sossegar. Ela recua, libertando-se do contacto físico e abre um sorriso de agradecimento.
VOZ – Um dois… um dois três. Comício experiência. Se cá nevasse, fazia-se cá ski. A aranha arranha a rã. A rã não arranha a aranha. Fui ao mar colher cordões, vim do mar cordões colhi. O rato roeu a rolha da garrafa da rainha. Um limão, mil limões, um milhão de limões. Um tigre, dois tigres, três tigres. Pardal pardo porque palras? Eu palro e palrarei porque sou o pardal pardo palrador d'El Rei! Etc. e tal… O homem e a mulher riem, desta vez de bom grado. VOZ – Concidadãos, concidadãs. Amigos de sempre e futuros amigos. Eleitores de todos os quadrantes. Jovens de todas as idades… Minhas senhoras e meus senhores. Pausa expressiva. MULHER – Já não me lembrava… a campanha começou ontem… HOMEM – Pois a gente até já se esquecia desta macacada da democracia. VOZ – A hora é grave. Grandes os desafios que teremos de enfrentar. Por isso, seguramente, vos vejo tão numerosos nesta praça, honrando a sagrada tradição de pensar duas vezes antes de confiar os actos e as acções ao candidato que vos inspira mais confiança. Sois a prova cabal, em carne e osso, em quantidade e em qualidade, de que a democracia não é uma palavra vazia ou um sistema esvaziado de sentido. Infelizmente, os quatro últimos anos de governação apenas serviram para acentuar o já gravoso atraso na implementação das mudanças, medidas de fundo e medidas cirúrgicas, que poderão arrancar o país à letargia e a sua economia às garras aceradas da crise. Porque, minhas senhoras e meus senhores, não é possível continuar a dar crédito, por um instante que seja, àqueles que apregoam «menos estado, mais iniciativa privada» quando se encontram na ribalta e, nos bastidores do poder, tudo fazem para enriquecer os seus amigos, partidários e apoiantes. Engordam à custa do estado, em lugar de o emagrecerem. E todos sabemos disso pois, escândalo após escândalo, eles já não conseguem camuflar a baixeza dos interesses que os movem. Também não é possível continuar a acreditar em quem apregoa a livre iniciativa empresarial porém não pára de asfixiar a criatividade dos empreendedores, dos verdadeiros fazedores de futuro oriundos todas as classes confundidas, com impostos iníquos que impedem o florescimento do gosto pelo investimento, condição natural do ser humano nas sociedades desenvolvidas. Nós não recuaremos diante da necessidade de reduzir a intervenção do estado na vida pública. Nós não recuaremos perante o imperativo de reduzir os impostos que abafam no ovo os projectos das empresas. Uma reforma audaz do sistema de protecção social que permita uma melhor gestão dos meios de que dispomos sem esmagar os empregadores sob o peso de encargos incomportáveis será o complemento indispensável da revisão do sistema fiscal. Menos encargos, menos impostos para olear a máquina da iniciativa privada. Menos paternalismo de estado para que os cidadãos revelem a sua criatividade. A sua generosidade. O povo não quer argumentos. O povo não quer adiamentos. O povo não precisa de conversas. O povo não precisa de promessas. Por isso, o lema da nossa campanha é simples de resumir: «Com menos, nós faremos muito mais.» E temos confiança em vós. Estamos certos de que, livres do peso excessivo do estado, vós fareis ainda melhor que nós. Aplausos gravados como num concurso televisivo. MULHER encolhendo os ombros – Fala bem, a criatura… Até parece um pregador. (Suspirando.) Mas não o vejo emagrecer… Que fará quando se apanhar no poleiro!!! Ambos riem. HOMEM – Ontem, à entrada de uma vilória lá no cu de Judas, fizeram-lhe uma espera. Candidato, comitiva, faixas, bandeiras e companhia, pôs-se tudo a cavar. Não sei ao certo o que pensar… Um homem que tem inimigos pode não ser completamente mau, não achas? MULHER – E aqueles processos de corrupção que acabaram por ficar em águas de bacalhau? HOMEM – Oh, nisso são todos iguais. E andam feitos uns com os outros, vai por mim... Quem tem telhados de vidro não atira pedras. Seja como for, ele não foi condenado. Talvez a acusação de corrupção fosse uma calúnia. Ou, pelo menos, talvez não houvesse provas que… MULHER – Ou talvez o tribunal fosse tão corrupto, mais corrupto ainda do que o réu! HOMEM – Chiça, tu não vais mesmo à bola com o gajo. MULHER – O único trunfo que o sujeito tem é ser bem falante e bem parecido. Apesar da pança… HOMEM – Dizem que os homens não se querem bonitos.
MULHER – Isso era dantes… isso era dantes… Agora, quanto menos feios, melhor. Ambos riem. MULHER – Temos que marcar um jantar. Na próxima semana… Fim de semana ou assim… Sabe bem conversar. HOMEM – Na noite eleitoral? Eu tenho um super ecrã, tipo cinema em casa. Dá para nos rirmos um bocadinho. MULHER – Não sei se haverá grandes grandes motivos… Enfim, antes rir da desgraça do que… HOMEM – Encomendamos umas pizzas, umas cervejas e mais uns mimos. MULHER – O contrário absoluto de um jantar romântico, em suma. Mas eu já me deixei de romantismos. Desde que – A conversa é interrompida por uma voz que provém de um altifalante invisível, situado algures à direita. De súbito um som agudíssimo. O homem e a mulher tapam os ouvido. E depois. VOZ – Um dois… Um dois… Experiência praça… Creio em Deus Pai, Todo-Podero… (Interrupção som saturado.) Criador do céu e da terra. E em Jesus Cristo, seu único (Interrupção som saturado.) Que foi concebido pelo poder… (Interrupção som saturado.) padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu à mansão dos mortos, ressuscitou ao terceiro dia, subiu… (Interrupção som saturado.) à direita de Deus Pai Todo… (Interrupção som saturado.) … julgar os vivos e mortos. Creio no Espírito… (Interrupção som saturado.) …na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna… Tá bom. MULHER – Onde é que vives? A resposta do homem não se ouve porque uma voz de falsete, que jorra do altifalante, se lhe sobrepõe. VOZ – A hora é grave. Grandes os sacrifícios que teremos de enfrentar. Por isso, certamente, leio nas vossas caras expressões de interrogação, e até de desconfiança. Manda a tradição republicana que se ouçam os candidatos e se pesem os seus argumentos antes de delegar no mais fiável a missão de governar. Mas, além da excelência das análises e das soluções propostas, a experiência concreta da democracia valoriza também o historial do líder, as provas que já deu, as competências que lhe são reconhecidas. Só um contrato transparente com um candidato sem rabos de palha e telhados de vidro fará com que o eleitor – e o eleitor tem sempre razão – dê o seu voto maioritário a tal cidadão e não ao seu adversário nesta corrida. Eu não vos mentirei. Um bom pai não mente aos seus filhos, um bom esposo não engana a sua cara metade, um bom empregado não mente ao seu patrão… Todos sabemos que, nos quatro últimos anos, os ministros, os deputados da maioria, os responsáveis pelos vários pelouros da governação andaram nos cabeçalhos dos jornais e nas bocas do mundo pelos piores motivos: corrupção, esbanjamento de fundos, negócios obscuros, obras milionárias, a lista seria interminável. Minhas senhoras e meus senhores, seria criminoso deixar que os bandalhos que nos têm vindo a arruinar voltassem a tomar as rédeas do país. Pensemos nos nossos filhos e nos filhos dos nossos filhos quando no próximo domingos, ordeira e civilizadamente, formos depor o nosso voto nas urnas. Eu não vos minto: todos teremos de apertar o cinto. A recuperação económica assim o exige. Todos teremos de dar o litro. O futuro da nação assim o reclama. Todos teremos que participar na limpeza da casa. A higiene dos costumes e da raça assim o ordena. Se vos peço esforços e sacrifícios, é porque eu próprio sou o primeiro disposto a fornecê-los. A arregaçar as mangas perante a árdua missão que me espera. Não podemos querer uma economia sã e vigorosa se os políticos forem os primeiros a dar o exemplo da devassidão, do suborno e do abuso. Não podemos querer uma escola ao serviço do desenvolvimento se os mestres não derem o exemplo da excelência, da exigência, do empenhamento ilimitado. Não podemos querer empresas competitivas, hospitais de ponta, serviços eficazes se forem sistematicamente desautorizados, denegridos, desrespeitados aqueles que, em lugares cimeiros, pugnam para que cada um dê o seu máximo e o seu melhor. Um povo sem rei nem roque é um povo decadente. Um povo sem guias e metas é um povo perdido. Um povo que não põe o futuro à frente do dia a dia é um povo ao deus dará. Tentámos resumir no nosso lema a quintessência dos compromissos que assumimos. «Do suor faremos frutos». Na verdade, o eleitor tem sempre razão. Mas para que a razão mostre o seu rosto radioso e severo, é preciso que o eleitor, aconselhado pelo bom senso e
pela justa cólera, vá efectivamente votar. Estou seguro de que, no próximo domingo, festejaremos nesta praça, em todas as praças do país, a derrota dos vendidos e a vitória dos patriotas. MULHER – Ui, o gajo armado em pai e a gente que sue as estopinhas…! O outro tipo ainda tinha a decência de nos baixar os impostos. Este nem isso, bolas…! Mais sacrifícios? Ainda mais? HOMEM sorrindo – Pelo menos, não mente descaradamente. MULHER – Com a verdade me enganas é uma óptima estratégia. Cheira mesmo ao antigamente, o bicho… HOMEM – Talvez… mas o antigamente foi há muito tempo. Ainda não eras nascida. (Paternalista ele mesmo.) E a história não se repete. O que eu acho é que ele ladra alto mas talvez não morda o suficiente. Blá-blá, blá-blá, mas nunca diz como é que se faz essa… essa «salvação da pátria». Muita parra, pouca uva. MULHER – A mim parece-me que, nas entrelinhas, o que sujeito propõe é que a gente ande a toque de caixa. HOMEM – Que outra maneira há de pôr esta merda nos eixos? Olha que… olha que… Devias ter mais medo das falinhas mansas do que… MULHER – …dos homens de barba rija…? Ambos riem mas por motivos diferentes. Depois ficam sem jeito, como se o menor atrito na troca de «opiniões» fosse uma pedra no sapato. MULHER num tom gaiato, para não estragar o momento – Para mim, é pizza vegetariana. HOMEM passados uns instantes porque não percebe logo – Para mim, nem pensar. Para vida sem carne, já me bastam os ossos do ofício. MULHER – Então faremos pizza à parte. Cada um com o seu tabuleiro. HOMEM – Tenho lá um clarete que… fresquinho, deixa-se beber. E sobe à cabeça, o malandro do clarete. MULHER – Então eu levo tiramisu. HOMEM esganiçando a voz – Tira-me isso da frente que eu… A conversa é de novo interrompida por uma voz que provém de um altifalante invisível, situado algures à esquerda. O homem e a mulher renunciam a falar. Enquanto decorrem os ensaios de som, trocam contactos, empunhando cada um seu telemóvel. VOZ – Bê… A Bê… Bê A Bá… Bê E Bé… Atenção micro. (Som de óleo a ferver.) Quem dá… quem dá e torna a tirar ao inferno vai paraaa… (Som de óleo a ferver.) Quem dá aos pobres, empres… (Som de óleo a ferver.) … a Deus. Quem não se sen… (Som de óleo a ferver.) … filho de boa gente. Quem pa… (Som de óleo a ferver.) … sabe o que lhe fi (Som de óleo a ferver.) Quem desdenha quer compr… (Som de óleo a ferver.) Quem não quer lobo, não… (Som de óleo a ferver.) … quem não quer manda. Quem não tem cão… (Som de óleo a ferver.) … perdeu o lugar. Quem não dev… (Som de óleo a ferver.) Quem vê caras não vê corações… Ok! Está ok! Siga! O homem e a mulher guardam os telemóveis e dispõem-se a ouvir. Como duas crianças, acompanham o discurso do candidato, ela fazendo, por vezes, caretas, ele esboçando, por vezes, gestos obscenos. VOZ – A hora é grave. Grandes as mudanças que teremos de encarar. De uma vez por todas. Nesta onda humana que por toda a parte me tem acompanhado, sinto palpitar a esperança e a exigência de todo um eleitorado que quer mais estado, mais justiça, mais equidade. A democracia não foi inventada por políticos invertebrados, para ministros decorativos ou para deputados de cabaret que discutem o sexo dos anjos e tiram férias em paraísos fiscais. Chega de pouca-vergonha no reino da Dinamarca…! O vosso voto será claro porque as nossas opções claras são. Sucessivas governações – melhor dizendo: sucessivos desgovernos – transformaram o país num viveiro de desempregados e de desalentados. Num viveiro de órfãos e de mortos-vivos. A violência social e doméstica grassa de norte a sul como os cabeçalhos de jornais, dia após dia, nos fazem saber. O esposo degola a esposa, o filho faz a folha à mãe, a adolescente assalta a casa da avó à mão armada… O desemprego é um cancro que mina os mais sagrados elos. Sobretudo se o trabalhador honesto, pai de família, pagador de impostos, for preterido em favor do clandestino, do pária, do sem eira nem beira que ignora os usos e costumes, as leis e a língua. A economia paralela é uma sarna devastadora que conseguiu pôr
o corpo do país em carne viva. Ora, o trabalho não é apenas um meio de ganhar o pão nosso de cada dia, embora ninguém viva de ar e vento. O trabalho é, também, aquilo que confere dignidade e razão social ao ser humano, aquilo que o distingue dos bichos predadores e dos bichos parasitas. Infelizmente, a pretexto de mudanças de paradigma e de profundas alterações de funcionamento na nova ordem económica mundial, o cidadão comum, o trabalhador honrado, o zé ninguém que é quase toda a gente, o zé povinho que prefere cavar a sua leira a dar ouvidos a lérias, todas essas centenas e centenas e centenas de pessoas de bem têm sido esquecidas, espezinhadas, esmagadas pela roda da alternância democrática. Do «mais do mesmo» que só aproveita a alguns. Há que dar trabalho a quem o reclama e chutar da nossa terra quem o rouba. Há que dar valor a quem trabalha e que dar trabalho a quem tem valor. Os jovens cérebros emigram. Os braços válidos são obrigados a procurar ocupação noutras partes. Eles são agora a carne para canhão das economias sólidas que invejamos, que admiramos, que nos são citadas como exemplo de sucesso. Não. Não. Mil vezes não. Dizemos não aos carrascos e estendemos a nossa mão firme às vítimas inocentes. E sabemos que, convosco, com a força inequívoca do vosso apoio, com a legitimidade incontestável que nas urnas nos havereis de conceder, mudaremos a face deste país enxovalhado. Domingo será a véspera da grande barrela. Frente a um país lazarento condenado à imundície pela incúria dos que sujam a sua memória, cabe-nos a missão histórica de limpar a casa de cima a baixo. Ouvem-se aplausos pré-gravados. Algumas vaias. MULHER – Este é do partido das mulheres a dias. HOMEM – Ou dos limpa-vidros… A fachada é que conta. MULHER com um ar pensativo – Se queres que te diga, o fulano assusta-me. Esta coisa querer desinfectar tudo, matar parasitas, afastar os intrusos etc. e tal não deixa augurar nada de bom… Não achas? HOMEM rindo com brandura, como se falasse com uma criança – Lady Di, ele apenas diz em voz alta o que o pessoal pensa mas não diz ou só diz em segredo… MULHER pouco convencida – Pois… talvez… mas não é isso que lhe dá razão, pois não? HOMEM – Em democracia, a razão resulta da soma dos votos da maioria. Se as pessoas votarem como pensam, ele tem muitas hipóteses… MULHER – E eu que não gosto de nenhum… HOMEM – … lá terás que te conformar. Se te pode servir de consolação, nem sempre as pessoas que nos são mais… mais simpáticas fazem melhor serviço que os caras de pau e os corações de pedra. Silêncio. HOMEM – Então, sempre vens brincar comigo às eleições no Domingo… MULHER de súbito sisuda – Estou muito hesitante. Nunca estive tão hesitante… HOMEM – Escolher-escolher, uma pessoa nunca escolhe. No máximo, pode evitar o pior. Já não é mau de todo. MULHER – Pois... Menos impostos mas salve-se quem puder. Mais sacrifícios mas ninguém se livra de ser posto de lado. Menos desemprego mas bófia por todo a parte. Venha o diabo e escolha. HOMEM – Ainda temos até Domingo para remoer a nossa decisão. Ou a nossa indecisão. E Domingo à noite comemoramos. MULHER – Preciso de estar convencida de alguma coisa para ir votar. Não é bem ir lá e tirar um boletim à sorte, como quem compra uma taluda sabendo que o mais certo é não lhe sair nada e… HOMEM – Não é bem mas quase. Convicção? Isso é que era doce. Se nenhum deles convence, um gajo vai lá por descargo de consciência. E sempre há-de haver um menos… um mais… um mais ou menos, coisa e tal. Embora eu não esteja bem a ver qual. MULHER – Eles são todos muito iguais. HOMEM – E não será mesmo isso a democracia? Todos iguais e a malta a jogar ao descubra as diferenças. MULHER – Sim, entre o prato com três maçãs e o prato com duas. HOMEM – Entre o cravo na lapela ou o lenço a sair do bolso do casaco. MULHER – Entre a nuvem do lado esquerdo e a chaminé a deitar fumo do lado direito.
HOMEM – Desde que não cheire a esturro. Ambos se forçam a rir. HOMEM – Portanto, TV dinner. Dois tabuleiros. Clarete pois claro. Frappé. Espero que a minha ex não tenha levado o balde do gelo. MULHER – Nunca devia ter ficado a ouvir o que os gajos dizem. Já me estragaram o dia. HOMEM – Onde é que votas? MULHER – Não sei. Estou muito hesitante… HOMEM sorrindo – Eu não estava a pensar em acompanhá-la até à urna, milady… MULHER – Voto no meu antigo liceu. Fiel às origens. Demasiado. HOMEM – Mas não faças essa cara que te fica mal… Se não tens confiança em nenhum, vota útil. É o que toda a gente faz desde que… Aquela coisa do voto é um direito e um dever, quer dizer, a seguir ninguém pergunta mais nada a ninguém, então… Mas eu curto as noites eleitorais. Sempre é uma variaçãozinha em relação ao futebol. Os tipos insultam-se com cordialidade porque têm de viver uns com os outros, quase todos dizem que venceram moralmente. E no fim há muitos vencedores, no pior dos casos, um perdedor, quando o governo cai. É de morrinhanha, porque uma pessoa sente que, nos bastidores, todos eles vão aos mesmos cocktails, frequentam os mesmos restaurantes, comem as mesmas gajas. A mulher não responde. HOMEM – Então preferes ir votar sozinha. Sem cavaleiro andante, nem advogado do diabo… Tudo bem, eu não me ofendo. Espero por ti e pelo tira-me isso às sete. Tá…? MULHER – Estou muito hesitante. Muito hesitante. Muito hesitante mesmo… ESCURO. MULHER a voz vai-se tornando cada vez menos audível - Estou muito hesitante. Muito hesitante. Muito hesitante mesmo… Estou muito hesitante. Muito hesitante. Muito hesitante mesmo… Estou muito hesitante. Muito hesitante. Muito hesitante mesmo… Estou muito hesitante. Muito hesitante. Muito hesitante mesmo… FIM