BOCA um texto para café-concerto CENA 1 O apaixonado, de seu nome LUCAS, aproxima-se da mesa de café onde o escrivão, TOBIAS, o espera, arvorando um profundo enfado. Ao reconhecer o cliente no meio da freguesia do café, TOBIAS consente um sorriso profissional. LUCAS, desgrenhado como se acabasse de sair da cama, senta-se à mesa sem cumprimentar, nem pedir licença. TOBIAS está excentricamente trajado: parece um D'Artagnan de trazer por casa. LUCAS, em contrapartida, veste com a negligência de quem já não pensa nos trapos — calças de veludo demasiado largas, pullover esburacado, cor de azeitona. TOBIAS Então sempre seguiu o tal conselho? A noite é boa conselheira... LUCAS lívido e um tanto ausente A noite...? Eu não preguei olho. Há uma semana que não durmo. Sempre a pensar nela. Nela. Nela. Nela. TOBIA jocoso E ela dá pelo nome de...? Nela? Manuela? LUCAS deita-lhe um olhar negro. TOBIAS profissional O nome... sabe, o nome é importante. As pessoas definem-se em função do nome que receberam. As Manuelas cuidado com elas, as Margaridas têm duas vidas, as Veras acham-se muito muito severas. LUCAS Olhe, eu não estou com disposição para brincadeiras. Passa a mão pelo cabelo, para acordar ou meter ordem nas ideias. O senhor já conhece o motivo que aqui me trouxe. Pretendo que me escreva uma carta. Enfim, não se trata bem duma carta. É mais uma declaração de amor. TOBIAS E por que raio não se declara você de viva voz? LUCAS com desalento Estou mais morto que vivo... será que não dá para ver? TOBIAS Bom... E o senhor já parou para pensar? Ou... ainda está no pára-arranca, pára-arranca...? LUCAS Estou... mais ou menos. Respirando fundo. Chama-se Eva. Mas, por favor, eu dispenso os seus comentários acerca do nome. Pensava que você seria uma pessoa mais discreta. TOBIAS E sou. Mas tenho a obrigação... profissional... de violar a intimidade dos meus clientes. Dos clientes do seu género. Sonhador. Com que então... Eva? Não se faz nada por menos... LUCAS levantando a voz Eu já lhe pedi que... TOBIAS Chut! Chut! Está toda a gente a olhar para si! Um tempo. Portanto, Eva. Feliz, feliz de quem a leva.
LUCAS lança-lhe chispas. TOBIAS Loira? Ruiva? Morena? Magra? Matrona? Gigante? Anã? Preciso de saber isso tudo. Para visualizar. A conversa tem de parecer diferente conforme a destinatária. Porque as mulheres são muito intuitivas. Se você pegar num texto escrito para outra, a Eva topa logo. Tão certo como eu ser Tobias. Tobias or not Tobias. Vem no meu cabeçalho... LUCAS um pouco mais descontraído O senhor tem nome de cão. TOBIAS Sou um proletário da escrita. Fica-me bem um nome bem cão. Não acha? LUCAS solta uma risada desafinada. LUCAS É magra, morena, média. Não tem nada de especial. É a luz da minha vida. TOBIAS Luz da minha vida... isso é bom começo. LUCAS Mas eu trabalho com electricidade. TOBIAS E daí? A coisa fica mais real. Mau mau seria você chamar-se Adão, não acha. LUCAS estremece. Tobias dobra-se, saca duma pasta de executivo, totalmente contrastante com a sua indumentária, e tira de lá um sebento bloco A4. TOBIAS Isto é só um rascunho. Depois o senhor vai ter de copiar com a sua letra mais cuidada. A caneta de tinta permanente. Uns leves borrões, umas lágrimas incontidas. Reflectindo. Não, não, seria um exagero. Você é electricista. Um homem não chora. LUCAS, siderado, leva as mãos à cabeça. TOBIAS Portanto... Escrevendo. Luz da minha vida. Vírgula. LUCAS Já lhe disse que não. Invente outra coisa. Meu amor, sei lá... TOBIAS Seu amor? E a criatura pertence-lhe, assim, do pé para a mão? Levava logo uma tampa. A palavra amor poupa-se, meu caro senhor. Nesse caso... Corrigindo. Eva. Vírgula. Não como. Não durmo. Perdi a fala. Perdi o rumo. LUCAS Não soa bem. Parece que fui operado com anestesia geral. TOBIAS O senhor é exigente. E que tal colhermos inspiração nos grandes clássicos do namoro. Vejamos... Olhando para o tecto e depois compondo um ar inspirado. Cortejá-la à persa, por exemplo: Eva. Tu és o vaso onde canta e transborda a espuma do melhor vinho e como ele sobes à cabeça... LUCAS abana a cabeça.
TOBIAS Talvez à maneira do norte de África. Eva. Gazela do meu deserto. LUCAS abana a cabeça. Não? E à maneira dos nórdicos? Eva. Rainha do gelo, sacudida por um vento muito ardente. LUCAS Ardente só mesmo a sarça. TOBIAS Ora, ora, senhor Lucas. Ardente era a pena de Camões. Eva. Uma escuríssima alvura. Uma leve fagulha em mar de cinzas. LUCAS Isso é piroso. E perigoso... TOBIAS corrigindo Então e se fosse... Meu paraíso — simples e alusivo... — tu não me conheces, eu não te conheço, mas é como se nos tivéssemos conhecido numa vida anterior. Ver-te foi reincarnar. LUCAS Calma aí. Eu andei com a Eva na escola. TOBIAS E só agora é que se apaixonou? LUCAS Ela estava comprometida com o meu irmão. TOBIAS desconfiado E romperam? LUCAS exultando Ele foi dar aulas para o interior. Para longe. Formou-se, no ano passado, em Matemática. TOBIAS Estou a ver. E que tal... Escrevendo. Eva. Vírgula. Aquilo que até agora me parecia pecado, deixou de ser tabu. LUCAS Lembra-me a publicidade para o sumo de maçã... TOBIAS enervando-se Eva. Já na escola eu queria ficar sempre a teu lado na carteira. Carregava com a tua pasta. Emprestava-te a régua de alumínio. Não tirava os olhos de ti. Suspirando. A infância é boa opção. Funciona sempre. Toca logo na veia maternal. LUCAS Mas eu nunca fiz o que você está para aí a escrever. TOBIAS agastado E julga que ela se recorda do que você fazia ou não fazia? LUCAS Mas recordo eu. Ela era feioza. Nunca lhe liguei nenhuma. TOBIAS Com a sinceridade, o senhor deita tudo a perder. Acredite em mim. As mulheres exigem ser amadas desde sempre. Se ela fosse uma desconhecida, o passado podia ficar envolto num manto de mistério. Na sua situação, precisa, no mínimo, de mentir. Afectando uma imensa paciência. Recomecemos. Do nada. O que é que ela faz? De que é que ela gosta? LUCAS É enfermeira. Cuidados intensivos. Gosta de filmes de terror...
TOBIAS Ai, isso é bom. Talvez... Eva, não quero sair deste coma. Porque sei que és tu quem vigia as batidas do meu coração. E só poderás, tu sabes isso, acordar-me com um beijo. LUCAS Eu não sou a Branca de Neve, ó amigo. TOBIAS Você não confia na força de expressão? Ok, ok. Vira-se a página. Reflecte uns instantes. LUCAS fita-o como se quisesse ler no seu olhar. Eva. Nunca gostei de canções lamechas. Nunca suportei histórias com final feliz. As flores nunca me comoveram, cheiravam-ne a funeral. Mas agora todas essas coisas me fazem chorar. LUCAS Eu nunca poderia falar assim. Aliás, ela sabe que eu gosto de flores. Lá em casa, sou mesmo eu que trato do quintal. Tenho lá um canteiro de rosas que ela costumava gabar imenso ao meu irmão... TOBIAS Excelente. Velho como o mundo e contudo eficaz. Eva. Só as flores conversam como tu falas ao fundo da minha alma. LUCAS As flores, felizmente, não falam. Já imaginou o que seria podar uma roseira que se pudesse queixar? E o fundo da alma, cá para mim, é um beco muito mal cheiroso. Suspirando. O senhor não consegue escrever nada mais verdadeiro. Como, por exemplo, ter medo de pisar o chão que ela pisou...? TOBIAS desistindo Homem, escreva você. Eu não sou escritor. Limito-me a escrever. Cartas. Principalmente cartas. Utilizando as mais belas mentiras que têm sido inventadas desde as tábuas de cera. Funciona às mil maravilhas. Tenho arrancado o perdão a muitos corações empedernidos. Tenho seduzido muitas aves raras. Mas o senhor quer ser verdadeiro...! Que arrogância! Ninguém diz a verdade quando fala. Falar é traduzir por mentiras as verdades que nos perturbam e nos escapam. O senhor disse que não dormia, por exemplo. Eu não acredito que isso seja totalmente verdade. Dormiu pouco. Dormiu mal. Dormitou. Anda a dormir em pé... Vê a diferença? LUCAS Desculpe lá. É que eu estou mesmo apaixonado. Preciso de alguém que dê o primeiro passo em lugar de mim. Para ver se não tropeço. Suspirando. Se não ponho o pé em ramo verde. TOBIAS Olhe, eu não devia fazer o que vou fazer. Lixo a minha reputação. Mas, com essa da verdade, o senhor deu arrasou-me. Erguendo-se com uma espécie de nobreza estudada. Conheço um sujeito, um milionário, que colecciona tudo e mais alguma coisa, inclusive cartas. Até já comprou uns rascunhos da minha autoria. Curiosidades. Literatura menor, como ele diz. Garanto-lhe que o tipo tem em sua posse o que há de mais refinado em matéria de cartas de amor. Curvando-se para escrever num canto do seu sebento bloco. Aqui tem a morada. Encontramo-nos amanhã às dez da noite frente ao portão da casa dele. Não me agradeça. Venha. Tome um banho antes de vir. Tá? Faz menção de se retirar mas vira-se uma derradeira vez para LUCAS.) Quem não arrisca... CENA 2 Frente ao suposto portão da casa do coleccionador, LUCAS espera, abrigado por um imponente guarda-chuva de pastor. A verdade é que não chove. Cintilam improváveis estrelas... TOBIAS chega a correr. Esvoaçando como uma mariposa atordoada.
LUCAS Daqui a pouco nasciam-me raízes. TOBIAS Puxe pelo cordão da sineta. Puxe. O Almeida gosta de pontualidade. O ruído de sineta desencadeia um brusco black-out. Quando as luzes voltam a subir, mais lentamente, LUCAS, TOBIAS e ALMEIDA (o coleccionador) estão enterrados em sofás de couro. À sua direita e à sua esquerda, encontram-se duas personagens envoltas em drapeados cor de marfim. Imóveis quais estátuas, de vez em quando sacodem-se para desentorpecer os membros. ALMEIDA fuma narguilé. LUCAS E TOBIAS dão cabo duma garrafa de conhaque. ALMEIDA Com que então um macho apaixonado. Inflamado. Dilacerado. Suspira. É pena nesta parte do mundo não ser possível coleccionar homens. Você é uma peça interessante. E quase rara. Enfim, é pouco comum um macho apaixonado expor-se desta maneira... LUCAS agita-se no sofá. TOBIAS Eu falei ao senhor Lucas do seu acervo de cartas. O senhor Lucas procura a prosa ideal para uma missiva que derrube as... as... as naturais resistências duma Eva que deu com os pés ao irmão que não é para aqui chamado. ALMEIDA Isso é um grande clássico: dois irmãos seduzidos pela mesma fêmea. No mundo animal, a coisa resolve-se duma forma assaz violenta. E muito politicamente incorrecta. Meditando. Curioso. Não tenho nada desse género na minha colecção. Claro que os amores nem sempre deixam rastos. LUCAS Não ligue ao que esse escritor falhado rosna. Eu vim aqui para provar a nata. A nata das cartas de amor. ALMEIDA A nata. O nec plus ultra. A quinta-essência. Um tempo. Ou seja: o senhor rouba a namorada ao seu mano e agora pretende provar à dita que pode amá-la muito melhor que ele. E que sofre. Sofre porque ela, a Eva, ainda não percebeu isso. LUCAS Eu não roubei nada a ninguém. Mas sofro... lá isso sofro. ALMEIDA Dentro desse género, temos aqui o Monteverdi que nunca desilude. Inultrapassável. Uma energia tensa, corrosiva. Ouça e entregue-se. A música é uma cilada. Renda-se. Antes de ser derrotado... Uma das personagens imóveis dá um passo em frente. E canta. Voz feminina muito quente. Envolvente. A CANTORA (Lettera amorosa / Monteverdi) Se i languidi miei sguardi... A CANTORA rouba um cigarro a ALMEIDA e retoma a sua posição, fumando com volúpia. LUCAS É lindo. Mas muito triste. Triste de mais.
ALMEIDA Verdade. No entanto, a tristeza, assim assumida, passa a ser um júbilo. Ou, pelo menos, é como uma corda tensa entre o desespero e a alegria. Note-se que, obviamente, quem escreveu isto não podia estar apaixonado. Um tal rigor no modo de relatar os sentimentos implica complacência e... distância. É como o pintor que pinta uma paisagem, observada na hora em que o sol está no zénite, à luz do néon do seu atelier. LUCAS O senhor não terá por aí uma carta mais esperançosa? Uma coisa escrita por alguém que naufragou voluntariamente no amor e que espera do encontro amoroso uma espécie de revelação. ALMEIDA afectando ingenuidade Revelação? LUCAS veemente. Sim. A revelação de que a vida inteira só vale na medida em que foi o caminho a percorrer para encontrar a alma gémea, por exemplo. ALMEIDA Que complicado...! LUCAS Haveria de ser simples? Tobias, arrasado pelo efeito do conhaque, dormita. ALMEIDA Tenho aqui um excerto que talvez satisfaça e exceda as suas expectativas. É uma pequena jóia. Escute. Deixe-se levar. A segunda personagem sai do seu torpor de estátua a canta. Voz masculina. Algo nervosa e sublimemente hesitante, como se ainda procurasse as palavras. O CANTOR ... eu amo o mundo inteiro a que pertence também o teu ombro esquerdo, não, primeiro era o ombro direito, e, por isso, beijo-o quando isso me dá prazer (e, aí, tu tens a amabilidade de despir a blusa), o ombro esquerdo está também incluído e o teu rosto sobre mim no bosque e o teu rosto debaixo de mim no bosque e o repousar no teu peito quase nu. E por isso tens razão quando dizes que já fomos um único ser, e eu não temo isso, pelo contrário, é a minha única felicidade e o meu único orgulho
e de modo nenhum o limito ao bosque. O CANTOR retira-se e volta à sua marca inicial levando o cálice de conhaque de TOBIAS adormecido. LUCAS Mete medo. É um encontro com a morte. Se eles foram um só, o amor não pode ser. Seria um incesto além-vida. ALMEIDA Ui...! LUCAS não se deixando interromper Eu nunca fui a Eva. Isso é que me agrada. Isso é que me enlouquece. Ela lida com a morte todos os dias e contudo anda alegre como um passarinho. ALMEIDA Bem, pouco tempo depois desta carta, o Kafka encontra-se com Milena em Gmünd e a chama apaga-se. De quem fala ele neste texto? Da Milena não será não. E, se ele foi ao encontro dela, certamente projectava libertar a sua escrita do obstáculo que aquele corpo e aquela voz representavam. O mesmo objecto que, um dia, inspira páginas arrebatadas, noutro dia seca a inspiração. E para o escritor a pena é sempre mais importante do que a musa. LUCAS Que maldade a sua, senhor Almeida! A mim parece-me bem verdadeira esta carta, embora a verdade dela seja diferente da minha. ALMEIDA O senhor rejeita as pérolas que eu lhe ofereço. E depois acha que eu sou maldoso... Seu porco! LUCAS enlevado A Eva põe alegria em tudo o que faz. Amá-la é ser criança. Ter caprichos de criança... ALMEIDA Esta então, meu menino, vai-lhe tirar as palavras da boca. O dono da voz masculina volta a avançar. Canta quase a dizer, com uma voz quase feminina. Cheia de água. O CANTOR ... gostava de lhe dar um beijo na boca, com exactidão e gulodice e comer-lhe a boca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao seu ombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir desculpa, e a desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto final até recomeçar,
e por que é que a menina gosta de um meliante e de um cevado e de um javardo e de um indivíduo com ventas de contador de gás... LUCAS interrompendo o CANTOR fica a olhar para ele com um ar de reprovação Calma aí...! Isso é muito ousado. Escrito por alguém que vai directo à boca e às mamas, com a ténue desculpa de que não tem culpa de ser grosseiro. Eu nunca... ALMEIDA E no entanto o pobre do Pessoa era um tímido. Só um tímido escreveria que todas as cartas de amor são ridículas. Não acha? O CANTOR volta à sua posição. Masca pastilha elástica. LUCAS desarmado Eu... quer dizer... eu já tinha ouvido dizer. Mas não imginava... É quase chocante. ALMEIDA Chamava Bébé à Ophélia. Os americanos também dizem "baby". Tratava-a de boneca. Julgava-se quase culpado de ter pousado os olhos naquela inocência. Só lhe desejava a boquinha e as maminhas. Típico da fase oral. Claro que acabou por correr com ela. Não devia suportar a impressão de se comportar como um pedófilo. LUCAS pensativo Mas eu acho que o sentimento de culpa faz parte. A certeza de não ser digno. E, até certo ponto, a vontade de ser maltratado também faz parte. ALMEIDA Não diga mais nada: Soror Mariana. A religiosa bem portuguesinha. Pascoaes afirmava que ela e Santa Teresa d'Ávila eram as duas figuras de proa do espírito ibérico. Coitado, bem se vê que vivia enterrado no Marão... A CANTORA compões uma madeixa e uma prega, arvora uma expressão profundamente dorida e entoa, com voz de defunta, o seguinte trecho. A CANTORA Vivo... infiel que sou! e faço tanto para conservar a vida como para a perder. Ai, morro de vergonha!... mas então o meu desespero está só nas minhas cartas?! Se te amasse tanto como te disse mil vezes, não há muito morta? Tenho-te enganado.
Tu é que deves queixar-te de mim. Ai, porque não te queixas meu amor! Vi-te partir não posso esperar ver-te voltar e contudo respiro! Atraiçoei-te. Imploro-te que me perdoes. Mas não; não me perdoes, suplico-te. Trata-me com dureza. A CANTORA vai sentar-se ao colo de TOBIAS que acorda estremunhado. ALMEIDA Claro que o Chamilly era um patife e você é boa pessoa. LUCAS Esse Chantilly era o amante da freira? ALMEIDA Era. Ou seja: não era. Ao que parece as cartas da Alcoforado são tão-só uma peça, bastante convincente, da literatura epistolar no século XVIII. Francesa. As cartas estavam, na época, muito em voga... LUCAS Pura literatura então... TOBIAS acariciando o ombro da cantora Mas não era você mesmo que rejeitava os lugares comuns da impura literatura que é a minha? LUCAS desencorajado Eu julgava, porque não me acho único, que alguém já sentiu, algures, outrora, o que eu sinto. E que até sentiu melhor. E que conseguiu, melhor do que eu, exprimir o que lhe dilacerava a alma. ALMEIDA Repare, Lucas, que o seu tempo é a idade do telefone portátil e do correio electrónico. Dos recados, das mensagens, dos forums, das conversas de chacha. Nesse contexto, arder seria dar cabo da rede, de todas as redes, lixar as fibras ópticas, alvejar os satélites. Certo? Ora tornar-se terrorista nesta especialidade não parece coadunar-se com os seus objectivos. Duro. Você é um egoísta de primeira água à procura dum baptismo do fogo. E exigente, ainda por cima. Mas eu não gastei as minhas munições. Com o gesto eloquente do aristocrata que encomenda mais uma rodada. Saia o Apollinaire. Escaldante, por favor. O CANTOR avança, compondo um olhar semi-alucinado. Voz sussurrada. O CANTOR Penso quantas vezes posso e só tenho esses instantes de doçura no meu Lou adorado, cujo amor todo só para mim quero,
toda a ternura, toda a passividade. Quero que sejas em tudo obediente, até à morte e para isso te obrigar, bela indomável, são as tuas nádegas que eu quero açoitar, as tuas gordas nádegas de veludo que se agitam, se abrem e fecham voluptuosamente, quando montado as chicoteio. E hei-de vergastá-las até sangrarem até parecerem um misto de framboesa e leite. Essas duas belas eminências devem a justo título tomar a vermelha veste cardinalícia e eu encarrego-me de o conseguir. Farei com que se torçam de dor e de delícia até ofegares e eu te possuir profundamente, boca a boca e se não te deres conta de que é o suplício da estaca que para ti reservo, enrabar-te-ei até à raiz do meu vergalho e far-te-ei gritar de dor arrombando esse belo traseiro que outra coisa não merece e que por ora me tem inspirado demasiada piedade... LUCAS interrompendo Isto é pornografia. O CANTOR deita-lhe a língua de fora. ALMEIDA Isto é uma verdadeira carta de um verdadeiro poeta a uma verdadeira amiga sua. Uma espécie de madrinha de guerra. Já não se fabricam mulheres desta fibra. TOBIAS Isto o senhor nunca me tinha mostrado. ALMEIDA E desde quando me vieste contar as tuas paixões? TOBIAS enxotando a CANTORA Não as tenho. O CANTOR faz menção de querer sentar-se ao colo de LUCAS que acede, horrorizado. ALMEIDA E como queres fazer literatura? Sobretudo literatura menor? TOBIAS Eu cá me arranjo com os meus companheiros de sexo. Eles contam-me as suas paixonetas e eu estrago tudo no papel. Como convém.
ALMEIDA Homem, o sexo não quer saber do sexo. E o amor não quer saber do amor. Não é assim, senhor Lucas? LUCAS atrapalhado Eu... eu sou um homem relativamente casto. E pretendo dizer isso. Também. Nunca poderia degradar a mulher que amo. Nem sequer em palavras. ALMEIDA Você não existe. Abanando a cabeça. Você não existe. Mas a destinatária daquela carta também não. São palavras de um soldado que, por ser escritor, pode arrancar à sombra todo o imaginário sangrento duma guerra sem outro inimigo que não o próprio corpo. Palavras de trincheira e arame farpado. Um tempo. O problema é que você não distingue, no seu mundo de paz assinada, onde está a sua trincheira e onde o arame farpado lhe rasga a carne. Um tempo. Claro que uma carta verdadeira consegue ser literatura. Por isso mesmo chegou a nós. O sentimento de que ela fala é uma vingança dos mortos-vivos contra os vivos que do seu sangue prtendem alimentar-se. Um tempo breve. Bem... mas não estamos aqui para enganar ninguém. Saia uma Heloísa... geladinha. A CANTORA sai do colo de Tobias e entoa o seguinte lamento. A CANTORA Chorar eis tudo o que poderemos fazer no nosso infortúnio; rezar não saberemos: teremos mais pressa em seguir-te sem tardar que em providenciar a tua sepultura; estaremos mais capazes de ser enterradas contigo que de enterrar-te. Em ti, teremos perdido a vida; sem ti não poderemos mais viver. Ah! Quem dera podermos não viver até aí! A simples ideia da tua morte é já para nós uma espécie de morte; que será pois de nós se a realidade dessa morte nos achar ainda vivas? A CANTORA retira-se e volta, discretamente, a ocupar a sua posição inicial. LUCAS Mas afinal quantas são? É uma carta colectiva? ALMEIDA Não. O Abelardo não tinha propriamente um harém. Um tempo curto. Era o que eu lhe dizia. As verdadeiras cartas de amor produzem verdadeira literatutra. A única coisa que não é verdadeira lá pelo meio será concretamente o amor. Nesta transformação da paixão de Heloísa na voz feminina plural está a pedra de toque da criação literária. A autora da carta, privada duma plenitude amorosa,
sublima o seu desejo graças à perda de identidade e à pulverização. Esse processo de estranhamento... sim, de estranhamento, é a ante-câmara da poesia. TOBIAS aplaudindo Bravo! Bravo! Bravíssimo LUCAS Com a vossa licença, acho que me vou retirar. A conversa está a ficar pesada. A mim, já me basta o peso do meu coração, não preciso de levar com pessoas que brincam com ele. Sacudindo o CANTOR que parece grudado ao seu regaço e erguendo-se. Um bom fim de noite para ambos. ALMEIDA O senhor é muito susceptível. E malcriado. Acha que eu mostro estas preciosidades ao primeiro cristão que me bate à porta? LUCAS hesitando Peço perdão... estou exausto. Nem me sinto. Não queria ser indelicado consigo mas, quanto mais ouço, menos me reconheço... ALMEIDA Excelente princípio. Duvidar de si. Saber-se infixável, inconstante, inconsistente. Perceber o seu lado feminino. E deixar correr muita água debaixo das pontes. Um tempo. Tenho aqui um bálsamo que o vai consolar. LUCAS Não quero ser consolado. ALMEIDA Isso julga você. Todos queremos. Mostra-lhe Bettina, mostra-lhe. A CANTORA avança e, no seu timbre mais juvenil, interpreta a carta de Bettina Brentano a Goethe. Uma cabrita saltitante como a sua autora é suposta ter sido. A CANTORA O sol tem seus caprichos; mostra-me certas coisas em plena claridade e esconde-me outras tantas. Sucedendo a escuras nuvens ele paira sobre mim; ora é a tempestade ora outra vez a bonança; o tempo é de novo manso e olha o que se forma no espelho liso da água: clara e brilhante, a imagem do homem amado volta sempre à tona; imóvel está. Porquê só tu e não antes todos os outros? Porquê tu ainda depois de todos os outros? E, no entanto,
não haverei de ser-te mais cara com todo este amor no coração? Perguntar-te-ia. Não, bem sei que não responderias, por muito que te chamasse querido e meu único amado. A CANTORA não se retira. Fita LUCAS com um ar inquiridor. LUCAS Sim... E depois? Não busco a beleza do despeito. Espero. Espero ser correspondido. ALMEIDA Correspondido? Que presunção...! Esperar, não digo que não. Mas aprender a amar-se a si próprio é tudo quanto pode esperar. LUCAS Ora, ora. Até a menina desta carta continua a esperar, não obstante o silêncio de que se queixa. ALMEIDA Esta menina, irmã de um poeta e noiva de outro poeta, não largou mão de Goethe. E quando o Goethe morreu, ainda teve o despudor de publicar toda a sua correspondência com ele, reescrevendo obviamente as cartas que lhe dirigira. Eis como uma menina enamorada se transforma num monstro de literatura. Um tempo bem medido. É isso que você quer? Transformar uma paixão nascente — ou talvez serôdia, dadas as circunstâncias — numa mancha de tinta permanente? LUCAS Não. Amar a Eva exige que eu descubra o melhor de mim. Ainda não ouvi nada que se parecesse comigo. Nem em bem, nem em mal... TOBIAS divertido Ni-na-na. Ni-na-na... ALMEIDA Então resta-me tentar trocar-lhe as voltas. Acenando ridiculamente. Suzette e Juliette, dai cabo dele. O CANTOR avança e toma a sua posição. A CANTORA ajeita as pregas. Preparam-se para executar um dueto, composto de excertos duma carta de Suzette Gontard (amante de Hölderlin) e duma carta de Juliette Drouet (amante de Victor Hugo). Duas vozes diversamente dilaceradas. A CANTORA (Suzette) seca como um ramo a crepitar. O CANTOR (Juliette) melodioso e grave, como uma alma cansada. A CANTORA Quando estou silenciosa e seca, por favor, não duvides de mim, é o fogo a minar as profundezas. e, como tu, devo defender-me da paixão. O CANTOR Queria fugir, queria rasgar-te de mim, do meu amor
que deveria coroar a tua vida de rosas e perfumá-la de felicidade quando parece cobri-la de luto. A CANTORA Se a dor me desgasta, o céu, pelo contrário, envia-me sempre, atempadamente, o bálsamo duma doce melancolia que no coração derrama sua benção e nunca perderei a fé na natureza. O CANTOR Mas o ar que respiras matar-me-ia, meu Victor. Preciso mais do teu olhar que do sol e preciso dos teus beijos para refrescar a minha alma e dar-lhe forças. A CANTORA No limiar da morte, di-lo-ei ainda: a natureza há-de acordar-me, há-de devolver-me todos os sentimentos que fielmente conservei, que me pertencem, e que um destino adverso me roubou; ela triunfará, servir-se-á da morte para preparar uma vida mais bela. O CANTOR O laço que entre nós existe é aquele que me prende à vida. Se não fosse tua amante, gostaria de ter sido tua amiga. Se me tivesses negado a amizade, havia de pedir-te de joelhos que me deixasses ser o teu cão, a tua escrava. Os intérpretes interrompem bruscamente o canto. LUCAS chora como uma criança. ALMEIDA, aterrado, ordena aos CANTORES que se retirem e eles amuam a um canto. TOBIAS Faz bem chorar, faz bem. Senhor Almeida... não bata mais no ceguinho...
LUCAS Eu não sou cego. Nunca vi como agora vejo. ALMEIDA Ai, Tobias, como é que este mal se cura? Virando-se para LUCAS. Meu bom amigo: quem escreve só a si próprio ama. Todo esse palavreado não passa duma hemorragia de amor próprio. O outro, o ausente, não é apenas uma parte dispensável. O outro, providencialmente ausente, precisa de ser dispensado. Acha mesmo que essas metáforas inflamadas poderiam resistir ao impacto com a rotina? A esse atrito que são as pessos em carne e osso? Um tempo. Mas eu tenho o que o senhor quer, tenho exactamente o que o senhor quer. Exacta e perversamente. Um tempo breve. Agora vai ter de ouvir até ao fim. Vai ter de beber ou de entornar o cálice. ALMEIDA faz um estalido com os dedos. O CANTOR, de má vontade, avança para a sua posição de intérprete. ALMEIDA lança-lhe um olhar fulminante. Sobre um fundo sonoro de passos muito reverberados, o CANTOR reza... O CANTOR Meu coraçãozinho, minha querida, minha pombinha, minha vida, minha querida e doce vida, luz da minha vida, meu todo, meu haver e meu bem, meus castelos, campos, prados e vinhas, ó sol da minha vida, sol, lua e estrelas, céu e terra, meu passado e meu futuro, minha noiva, minha filha, minha querida amiga, fundo do meu coração e sangue do meu coração, minhas entranhas, pupilas dos meus olhos, ó bem-amada como chamar-te? Meu tesouro, minha pérola, minha pedra preciosa, minha coroa, minha rainha, minha imperatriz. Tu, filhas mimada do meu coração, o que eu tenho de mais caro e de mais alto, meu todo e cada qual, minha esposa, minha boda, baptismo dos meus filhos, minha tragédia, minha glória póstuma. Ah, tu és um segundo e melhor eu próprio, minhas virtudes, meus méritos, minhas esperanças, perdão dos meus pecados, meu futuro e minha felicidade, ó menina celeste, filha de deus, minha intercessora e minha advogada, meu anjo da guarda, meu querubim, meu serafim, como eu te amo! O CANTOR, comovido, vai juntar-se à CANTORA que continua refugiada a um canto. LUCAS comovido É mesmo...! Como é possível alguém dizer tão bem aquilo que eu, nem em sonhos, consigo balbuciar? Obrigado, senhor Almeida. A partir daqui, eu já sei explicar ao Tobias. Aliás, o Tobias já percebeu. Para Tobias. Não é, Tobias? É mesmo isto!!! TOBIAS Um nadinha caramelo pegajoso para o meu gosto pessoal, mas pronto... LUCAS O quê? TOBIAS Um bocadinho delicodoce... LUCAS Eu é que estou apaixonado! Eu é que sei, caramba! ALMEIDA Ai sim? Ai sabe? Um tempo curto. Esta é última carta e Heinrich von Kleist a Henriette Vögel. Uma hora depois de a escrever, matou-se. E ela matou-se também. Kleist procurava alguém com quem morrer... Um longo e incómodo silêncio. De repente, LUCAS rebenta.
LUCAS fora de si Mas, então, o que é que uma pessoa, uma pessoa que ama e deseja amar... o que é que essa pessoa, que não quer morrer, pode fazer? ALMEIDA rugindo como um trovão CALAR-SE!!!!! LUCAS com um fio de voz Calar-se? E deixar morrer o desejo? Eu amo o amor. Antes de amar a Eva e depois de amar a Eva, amo o amor e também o mundo por haver amor no mundo. ALMEIDA marcando bem as palavras, com uma autoridade surpreendente Como ainda há pouco confessava, o senhor não é único. Não está sozinho nesse desejo. Portanto é preciso tactear, procurar, apalpar terreno, rastejar. Tocar, acariciar, fazer cócegas e cafuné. Beijar. Comece por praticar com quem está por perto. O resto vem por contágio. Acredite. Um tempo estudado. Vamos experimentar? LUCAS desamparado Aqui? Como? Com quem? ALMEIDA Comigo. Com o Tobias. Com os meus protegidos. LUCAS O senhor está doido. ALMEIDA Não estou não. Quero ver toda a gente a beijar-se. TOBIAS Eu não me importo. De beijar o Lucas. Se for necessário. LUCAS E se eu deixar... ALMEIDA voz alterada Vamos por partes. Cada parte é uma parte e o todo ainda é uma parte de outro todo. Primeiro, sentir o outro. Sentir-lhe o cheiro, o bafo. A temperatura. Aproximar lentamente, muito lentamente da curva da bochecha. Ou da curva dos lábios. O CANTOR e a CANTORA começam a seguir as indicações. Devagarinho para não espantar a presa. Segundo, sentir o todo. Fazer parte da massa. Pairar acima dela. Somos todos presas do amor universal. TOBIAS vai beijar LUCAS. LUCAS beija a CANTORA. A CANTORA beija TOBIAS. LUCAS beija ALMEIDA. ALMEIDA beija o CANTOR. O CANTOR beija TOBIAS. TOBIAS beija a CANTORA. Etc.... ALMEIDA voz alterada, para ACTORES E CANTORES Alarguem o círculo! Alarguem o círculo! O amor não cabe no círculo da casa. O braço, como asa, arqueia-se. Para amparar a queda. Para levantar voo. Para o público. Não me digam que estão todos doentinhos? A CANTORA vai beijar o MÚSICO. O MÚSICO curva delicadamente o braço e enlaça-a. ALMEIDA voz alterada Que nojo! Que infeliz prudência! Que falta de civismo! Que défice de religião! Se Cristo entrasse no jogo, viravam-lhe a cara! Ponde luto pelo amor. Ou então beijai-vos! Beijai-vos! A sério. Beijai-vos. Senão beijai-vos a brincar. Também serve. A intenção não conta. Conta o gesto.
TOBIAS aproxima-se duma espectadora e dá-lhe um beijo na face. LUCAS beija um rapaz novo da assistência e vai encorajar um casal de meia idade a beijar-se. ALMEIDA voz alterada Os beijos curam. A cura pelo beijo remonta à mais alta Antiguidade. Por vezes condenada, nunca foi totalmente abandonada. Ainda se pratica entre nós. Mas insuficientemente. A febre, que o beijo porventura ocasiona, é uma poderosa arma contra todas as doenças do corpo e da alma. TOBIAS e LUCAS distribuem beijos. ALMEIDA Como a água não se recusa, um beijo não se recusa. Jesus beijou a Samaritana que lhe dera de beber... Um tempo. Sentir ninguém. Sentir alguém. Sentir o outro. Sentir que o corpo não é o limite. E beber, avidamente, essa novidade. Essa água ilimitada... Os CANTORES, muito solícitos, exemplificam, para o estimado público, vários modos de beijar. ALMEIDA que entretanto se misturou com o público Até o beijo de Judas... Jesus aceitou de bom grado. Voz assustadora. Não saio daqui enquanto não tiver beijado toda a gente. ACTORES e os CANTORES não têm bocas a medir. Com alguma sorte, o público adere ao ritual. Ouve-se, em crescendo, um concerto de beijos. A luz vai baixando até ao escuro. ALMEIDA voz doce Fechar os olhos. Deixar-se levar. Esquecer-se. Abandonar-se. Fechar os olhos. Isso! Fechar. Fechar... Quando abrimos os olhos, depois dum beijo, o mundo é o-fus-can-te. Luz intensíssima. O concerto de beijos, que atingiu o limite do insuportável, cessa abruptamente. FIM