ENTREVISTA COM BORIS LEHMAN Saguenail — A imagem que aos poucos se vai formando do teu cinema está ligada a uma centragem sobre a tua própria figura. Qualquer que seja aliás a etiqueta com que o classificam... O rótulo «autobiografia» parece-me falso, tanto mais que tu praticas quotidianamente o cinema. A distinção entre vida de todos os dias e cinema deixa de fazer sentido. No entanto, lembro-me de filmes teus como o MAGNUM BEGYNASIUM BRUXELLENSE em que te interessavas por um meio — um bairro — que te era familiar. Interrogavas esse meio. Gradualmente foste sentindo uma necessidade de te integrar no que filmavas. Embora a interrogação permaneça, o objecto já não é o mesmo. Boris Lehman — É difícil responder-te porque não sei se é um processo consciente. Mas há algo de muito importante: eu trabalho com meios reduzidos, pobres, irrisórios do ponto de vista económico. Portanto, como em todo o cinema experimental, ou underground, ou amador, ou de família, no cinema primitivo em suma, todas as pessoas exercem todas as funções, funções essas que foram posteriormente divididas no cinema de tipo hollywoodiano, industrial. No meu cinema são os amigos que representam, que estão atrás da câmara, que ajudam a fazer a imagem ou o som ou a régie. Há pois uma vertente «filme de família». É, de resto um aspecto que podemos abordar de várias maneiras. A certa altura, considerei-me órfão. Rejeitei a minha própria família e comecei a construir outra, uma família de cinema. Assumo o lado «filme de família», «filme de amador» num sentido nobre, positivo, que me interessa. Também existe um lado «diário filmado», «diário íntimo». S. — Voltando à questão dos meios. Não sei se podemos evocar o Van Gogh que dizia: «Eu pinto auto-retratos porque não posso pagar modelos». B. L. — Sim, acho que posso subscrever essa afirmação. A questão é que, ao mesmo tempo, se pode fazer arte com isso. Ou seja, basta haver uma maçã para o Cézanne passar vários anos a pintá-la. Portanto não é preciso ir até ao fim do mundo... S. — Os meios são porventura aquilo que serve para escondermos, para encontrarmos substituto... B. L. — Para nos divertimos no sentido pascaliano. Isto talvez pareça uma contradição em relação ao cinema que é uma máquina de fazer sonhar, viajar. Mas eu diria que, da mesma maneira que a Marguerite Duras filmou a Índia em França, eu também não preciso de ir muito longe, posso filmar aqui. E mesmo que eu faça longas viagens, acabo por filmar a mesma coisa que se não fosse tão longe. Porque é preciso evitar o exotismo. O Michaux, por exemplo, viaja, mas a viagem dele é interior... S. — E há o Raymand Roussel que acabou com toda a veleidade de volta ao mundo. B. L. — Claro, o Segalen, o Roussel... Digamos que a minha viagem é desse género. Evidentemente existe outra linhagem de viajantes aventureiros como o Blaise Cendrars. S. — Mas, apesar de tudo, houve a tua viagem ao México...
B. L. — O México foi uma viagem ao estilo de Michaux. Vamos longe para, no fim de contas, nos encontrarmos face a nós próprios. Só que é uma prova. O meu cinema comporta essa necessidade de pôr à prova. De uma forma mais ou menos consciente e, para pôr à prova, é preciso que haja deslocação, movimento. É preciso partir algures, trazer algo de volta, regressar e mostrar essa coisa que se trouxe. Coma eu te dizia ontem «a prova pelo filme». A prova de que se partiu, de que se esteve alhures. É uma constante no cinema documental e no cinema etnográfico: vai-se à terra dos papuanos, volta-se da terra dos papuanos e mostra-se o que lá se viu e que os espectadores não conhecem porque nunca lá foram ou porventura nem sabem que existe. Sei que isto é primário, mas é importante constatar esse movimento que não é primário. Regina Guimarães — Mas então eu diria em defesa do exotismo... B. L. — Quando falo de exotismo, também me refiro ao possível exotismo de Bruxelas. Eu não filmo Bruxelas como a maioria dos cineastas, mesmo os Belgas. R. G. — Só para te contrariar um bocado, eu diria que o exotismo pode ser visto como a busca do outro, a descoberta de si próprio através das imagens do outro. O exotismo não é totalmente desprovido de valor e sentido. B. L. — Eu queria dizer que, quando viajamos, vemos paisagens que são parecidas umas com as outras em todo o lado. Se fores ao Japão, encontras as mesmas árvores que aqui. Em contrapartida, se vires uma pintura japonesa e a comparares com uma pintura daqui, descobres que são muito diferentes. A diferença vem do olhar do artista, da sua interpretação do real. E a arte é isso mesmo; o facto de a mesma coisa poder ser vista de forma diferente. Com o cinema é mais difícil, porque utilizamos uma máquina que, em princípio, regista objectivamente as coisas. Mas há sempre alguém atrás da máquina... Pelo menos quando há alguém atrás... R. G. — Ir ao Japão e ver a mesma paisagem... será que isso é verdade? Não será uma questão de olhar, justamente... B. L. — Acho que é verdade. Muitas vezes meti-me num avião e fui a Montreal e quando lá cheguei disse para comigo: «Olha! É como a paisagem de Waterloo!». Tenho frequentemente essa impressão de que as coisas me lembram algo que já vi. Claro que há pequenas diferenças: os rochedos da Bretanha não existem na Bélgica. Porém, acontece-me pensar que posso encontrar tudo na Bélgica: uma paisagem de país do Leste, uma paisagem espanhola... É uma questão de enquadramento, depende da forma como organizamos a imagem. S. — Foi o que eu fiz no Porto. R. G. — Mas não é equivalente dizer que o cinema pode transformar a Bélgica em Japão ou em Colorado e dizer que a Bélgica se parece à primeira vista com o Japão e com o Colorado. S. — Só que ninguém sabe o que é a essência do Colorado ou do Japão. São apenas imagens. E essas imagens podem ser encontradas em qualquer lado. B. L — É o problema que nós evocámos ontem: porquê partir? porquê ir para longe? Obviamente para ver algo diferente daquilo que se vê todos os dias e porque há a esperança de se descobrir algo melhor, algo novo, etc. A atracção pelo longínquo, pelo desconhecido, existe.
O meu BABEL também resultou disso: parti para o México, para longe da Bélgica, para um país mítico, para a terra do tesouro dos luas, dos garimpeiros, dos Aztecas e por aí fora. No princípio há um desejo: o desejo de partir. Mas depois, pelo menos no meu caso, vem a decepção porque de facto não se vê nada. O nosso desejo alimentava-se de palavras. Talvez eu me tenha comportado como um pobre turista. O certo é que apenas vi a superfície das coisas, não vi «grande coisa». No entanto, o lado «prova» continua a existir. Parti, tive de resolver quotidianamente uma data de problemas: a dormida, a comida, o calor, os mosquitos. E isso pôs-me à prova. O meu cinema é algo que me põe à prova. S. — No teu caso, o cinema é uma maneira de viver. É uma prática muito especial. B. L — Sim, porque eu desempenho o meu próprio papel e, em princípio, toda a gente desempenha o seu próprio papel nos meus filmes. O que não quer dizer que eu faça um cinema puramente documental, etnográfico ou científico. Também me acontece pedir às pessoas que desempenhem um papel que não o seu. Seja como for, nunca será o Piccoli a fazer de Ricardo II. Isso não me interessa. R. G. — Mas não achas que a busca da disparidade, a pesquisa sobre o desfasamento fazem parte da função dum intelectual? B. L — Essa palavra não me assenta. Não me considero um intelectual. R. G. — Digamos então de uma pessoa que faz uso do espírito? B. L — Queres dizer que deve procurar o outro. R. G. — Não forçosamente procurar o outro. Estava a falar das disparidades, daquilo que não é «o mesmo». B. L — Eu considero-me um rebelde, um anormal, um ser desadaptado às leis sociais, um marginal, em suma. E isso também faz parte da minha definição do artista. O artista não pode ser normalizado, estandardizado, logo é diferente. Por isso é que me identifico com as pessoas diferentes. E, talvez por isso, senti-me atraído pelos loucos. Trabalhei durante uns quinze anos no Club Antonin Artaud, uma instituição para psiquiatrizados. E também é por isso que quase nunca trabalhei com actores, mas antes com gente da rua, com «não-profissionais». Até ao nível da equipa técnica, eu opto por trabalhar com amigos. Preciso de conivência, de cumplicidade. Como a minha pesquisa se instalou no terreno da intimidade, torna-se muito difícil funcionar com equipas de fora e metê-las dentro do mundo íntimo que é o meu plateau. Como a rodagem não é planificada, contratar técnicos coloca alguns problemas. As minhas rodagens espraiam-se ao correr do tempo, de algum modo duram eternamente, não têm princípio nem fim. E isso constitui outro obstáculo porque eu não consigo fabricar um produto excepto quando sou obrigado, quando tenho uma produção o que já aconteceu algumas vezes. Aí há imposições, prazos, etc. que me forçam a acabar o produto a determinada altura, ainda que o produto possa ser algo de estranho à verdadeira aventura. S. — Desde sempre, tens mais filmes em curso do que filmes dados como acabados. Mas tens efectivamente filmes oficialmente acabados e esses são mostrados, exibidos ao lado de outros
filmes que foram realizados duma forma convencional a partir de projectos, Filmes cujo resultado a maioria das vezes é pré-determinado o que não é o caso dos teus filmes... B. L — Mas há muitos mal-entendidos como tu próprio muitas vezes dizes. Anda tudo a boiar na mesma sopa... R. G. — Que dá pelo nome de audiovisual. B. 1. — Quando os meus filmes estão acabados e são mostrados em Festivais tornam-se filmes como os outros. S. — Mas tu também carregas contigo essa outra ideia de cinema, tanto mais que conheces bem o cinema que os outros fazem. B. L — Porque fui um cinéfilo militante, porque gosto de cinema, mesmo do cinema que nunca farei, mesmo dos maus filmes. S. — Portanto também te situas em relação a esse outro cinema. B. L. — Talvez. Encontrei um lugar pessoal, um pequeno lugar com um estatuto diferente que nem sempre é bem entendido. Os meus filmes são pois recuperados e assimilados como se tivessem sido feitos por outra pessoa. E supõe-se então que foram realizados a partir de argumentos escritos. No fundo, não tem importância. S. — Mas isso vem da estupidez das classificações que não é apenas o sistema dos produtores como também o dos organizadores de Festivais. Tens sempre de fornecer uma sinopse, por exemplo. E se o filme não tiver sinopse à partida, se tiver sido realizado com base numa planificação escrita em linguagem mais técnica ou específica, tens de inventar o enredo para a sinopse e escrevê-la a posteriori. B. L. — Tens de preencher formulários. E se não entrares nas classificações convencionais, ficas a braços com um grande problema. Os meus filmes são dificilmente rotuláveis. Documentários? Ficções? Curtas? Longas? Essas categorias correspondem a imperativos ditados pelas televisões, pelos produtores e até pelos festivais, em todo o caso a maioria deles. De início, o Festival de Roterdão acolhia da mesma forma uma curta-metragem documental e uma longa metragem de ficção, um filme 35 mm e um filme underground, sem fazer diferença nenhuma. Esta atitude tornou-se actualmente muito rara. O que significa que o star system ataca e vence em todas as frentes. Por exemplo, um filme sobre um artista só tem impacto se o artista for uma star. Se o artista não for conhecido, é difícil montar uma produção e depois mostrar o filme. Não é só no cinema de ficção que o star system funciona. Até no documentário as regras são as mesmas. A lei do mercado é a mesma. A propósito de etiquetas: muitos dizem que eu trabalho na fronteira entre a ficção, o documentário, o cinema autobiográfico, o cinema etnográfico, etc. Em certo sentido, é verdade. Mas é mais verdade ainda que eu não me sinto em nenhum género: faço imagens, faço filmes. Para mim, fazer filmes, se for obrigado a escolher uma palavra, implica forçosamente ficção. O meu cinema não é reportagem, é encenação.
S. — Aliás é curioso que a classificação imposta aos cineastas não seja imposta com tanto rigor aos fotógrafos, por exemplo. Ninguém quer mal a um fotógrafo se tirar uma fotografia a um amigo e depois duma paisagem. B. L. — Na fotografia também há etiquetas... S. — Mas os fotógrafos não são tão vigiados a esse nível como os cineastas. B. L. — Certo. Então, como eu faço auto-retratos, embora tu aches que eu não faço autoretratos, sou violentamente criticado porque se trata de um género que não é aceite no campo do cinema, quando é perfeitamente aceite na fotografia e na pintura. S. — Eu não disse que tu não fazes auto-retratos, disse que não fazes autobiografias. Ou seja, criaste uma estratégia que consiste em abordares o outro (alguém de quem tu gostas ou que tu admiras), colocares-te perante ele era esperares dele algo que te permitirá fabricar uma imagem. B. L. — É exactamente isso. S. — Idealmente, poderias encontrar-te a ti próprio graças a esta estratégia. Julgo perceber perfeitamente o teu dispositivo. Mas o objecto é sempre imponderável, fugidio, esquivo. B. L. — A minha estratégia é vir ao Porto e trazer o material e um operador para poder filmar. A estratégia é partir, chegar a um sítio qualquer com a esperança de encontrar qualquer coisa. Mas, ao mesmo tempo, eu não sei de que é que ando à procura. E o tal pôr-me à prova de que falava há bocado. Lanço-me em órbita e ponho o meu filme em órbita. O que significa que, é uma ousadia confessá-lo, não sei o que vou filmar, não sei bem para que filme estou a filmar e de certeza absoluta que não sei como é que o processo vai continuar e como vai acabar. Claro que tenho ideias na cabeça. Não há nada inocente. Inventei um sistema e em certa medida o sistema também pode funcionar como uma armadilha. Mas tento prosseguir o meu percurso, por vezes faço ligeiros desvios, depois volto ao caminho traçado. Pode haver tiques de linguagem, tiques de escrita... Porém mantenho-me globalmente fiel ao meu sistema artesanal: nagra, som directo, câmara 16 mm, som mono, tudo o mais simples e leve possível. Simples e leve, contudo suficientemente completo para poder trabalhar as imagens e os sons em todas as etapas. S. — Gostava que me falasses um pouco da fase da montagem. B. L. — Comigo habitualmente fala-se muito no dispositivo da rodagem. Claro que está tudo ligado: a produção, o material técnico, a minha forma de viver. É graças a isso que é extremamente difícil imitar-me. Para fazer filmes como eu, é preciso viver como eu. Há quem tente fazer cinema à Boris Lehman, mas ninguém consegue. Porque o meu cinema implica sacrificar muitas coisas de que as pessoas não querem prescindir. S. — O teu trabalho inscreve-se no tempo... B. L. — Exacto. Portanto há a etapa da rodagem, numa primeira fase. Numa segunda fase, tenho à minha disposição uma grande acumulação de material filmado e gravado por vezes ao longo de vários anos e, de repente, começo a sentir vontade de estruturar o espólio, juntar os
elementos e porventura encontrar o sentido da minha busca. Aí inicio um trabalho de manipulação, de montagem de imagens e de sons com adjunção de trucagens (raramente, visto que não é essa a minha via). Aquilo que eu captei é para mim fundamental: é a matéria-prima. Mas é necessário tratá-la de modo a criar associações. Reconheço que a minha concepção de montagem é muito primária: pôr um plano a seguir a outro e aproveitar o choque que isso produz. No fundo, a minha maneira de proceder na montagem é tão experimental como na rodagem. Não tenho argumento à partida mas também não tenho plano de montagem. A montagem deve ser empírica e avançar por tentativas, experiências consecutivas, opções. Não se podem fazer N montagens, por conseguinte a dada altura é preciso parar num «estado». Chamo a isso um estado da montagem. Haveria certamente outros possíveis. As minhas escolhas na montagem obrigam-me a destruir uma parte muito importante do material, perder muitas imagens originais porque não é viável montar tudo, mas simultaneamente há algo que nasce e se constrói, algo que anteriormente não existia. Aquilo que nasce e se constrói será, no fim de contas, o argumento e o tema do filme, o verdadeiro tema visto que o tema pretexto serviu apenas para encetar a aventura: vir a Portugal e filmar... Para quê? Ainda não sei, embora tenha em mente algumas ideias e algumas pistas. O trabalho de montagem é apaixonante porque também se inscreve no tempo. Não se pode fazer depressa. Confio muito na intuição. Determino o momento em que passo da rodagem à montagem por intuição. Doutro modo a rodagem nunca acabaria. E faço o mesmo com a montagem. Senão seria sempre possível acrescentar aqui, mudar acolá... S. — Nunca montas à medida que filmas? B. L. — Não, nunca. Preciso de sentir que a fase de rodagem acabou. Quando passo à fase de montagem, é-me muito difícil continuar a rodar. É evidente que pode haver necessidade de tapar um buraco e pode surgir de repente uma ideia fundamental... Mas, a priori, nunca volto a filmar. Não se pode filmar tudo, há forçosamente coisas que ficam de fora, como também há outras que não ficam perfeitas. Sabes, eu não faço planificação, mas tenho listas. Por exemplo, listas de planos a rodar. Ando sempre carregado de papéis e cadernos. Escrevo muito, estabeleço listas, balanços: planos já rodados, planos a rodar... Um pouco à maneira do Georges Perec. Claro que há os planos que nunca conseguimos filmar... S. — É como uma agenda. B. L. — Como uma colecção. S. — De uma agenda nunca se consegue fazer tudo... É preciso adiar, adaptar... B. L. — O aspecto colecção parece-me importante porque decorre da tentação enciclopédica. Encontras o mesmo no «Bouvard et Pécuchet» do Flaubert, na obra no Rabelais, nos escritos do Perec. A tentação do todo... Eu quero tudo. Por exemplo, poderíamos chamar ao MAGNUM BEGYNASIUM BRUXELLENSE pequena enciclopédia do bairro do «béguinage» porque eu pretendia filmar tudo o que havia no bairro. Essa vontade serve-me de guia. É óbvio que não é possível filmar todos os habitantes do planeta, é um conjunto que me escapa. Em contrapartida,
tenho o projecto de filmar todos os meus amigos. Comecei um filme chamado HISTOIRE DE MA VIE RACONTÉE PAR MES PHOTOGRAPHIES. Na medida eu que possuo à volta de 200.000 fotografias, como calculas é um trabalho que me ultrapassa. No entanto iniciei esse projecto utópico que porventura me conduzirá a outra coisa. É uma espécie de motor que me dá energia para enfrentar algo de gigantesco. O primeiro episódio do BABEL foi construído assim, a partir duma ideia megalómana. S. — Mas, ao contrário do que acontece com o enciclopédico Greenaway que tem uma concepção barroca — tudo deve entrar numa unidade: o plano —, no teu cinema a unidade plano tem de ser suficientemente despojada para poder dar a conhecer uma coisa. Um coisa que precisa de outras imagens, logo de outros planos, para poder ser definida e mostrada. A revelação da tal coisa filmada na unidade-plano só acontece verdadeiramente na fase da montagem em que cada coisa filmada aparecerá rodeada doutras coisas. B. L. — O meu grande defeito é a dispersão. Disperso-me porque sigo muitas pistas. Faço muitas digressões, arrisco muitos desvios. Nunca avanço numa linha recta. Não vou de A a B. Para ir até B, tomo caminhos tortuosos, atalhos estranhos e no fim talvez chegue a B. Para fazer um plano, para o filmar, preciso de fazer primeiro outro plano. E talvez nunca utilize esse primeiro plano mas precisava de o filmar. Posso ilustrar este meu funcionamento com um exemplo muito estúpido: queria filmar num asilo de velhos na Suíça; mas, para rodar naquele sítio, precisava de começar por filmar um plano com o director do asilo; era indispensável para eu poder filmar os outros... portanto filmei um plano inútil (tinha praticamente a certeza de que não ia utilizá-lo) mas que me serviu de elo, serviu-me para passar à rodagem de outros planos. Num processo normal de filmagem de uma obra de ficção é inconcebível fazer planos inúteis. Claro que esta necessidade das articulações tem a ver com o fenómeno da linguagem e com o processo da escrita. Ora, no meu caso, não posso falar de escrita automática. S. — A noção de despojamento é importante para mim porque explica em parte a tua maneira de enquadrar que é muito peculiar. B. L. — Talvez possas falar disso melhor do que eu. Achas que é isso que determina os meus enquadramentos? S. — Acho que no teu caso a imagem ganha sentido em função de um objecto e é construída em função dele. Por exemplo, ontem filmaste uma pessoa a ler um texto. No enquadramento havia um indício do lugar onde a acção decorria porque foi o lugar que determinou a escolha do momento em que rodaste o plano; mas o quadro tinha de ser suficientemente apertado para não devorar o sujeito-objecto exacto que era uma pessoa a ler um texto escrito por ela própria. B. L. — Posso responder-te que para mim o concurso de circunstâncias determinantes foi o seguinte: eu estava naquele sítio com a câmara, tinha aquela pessoa a meu lado, tinha o texto dela no meu saco e a dada altura tudo se sincronizou e me ofereceu a possibilidade de filmar o plano. Podia tê-lo filmado noutro lugar, noutra altura, mas aconteceu ali. S. — Estava a falar do enquadramento...
B. L. — Dantes, tinha um problema de rigor do enquadramento com o Antoine porque ele tem tendência para situar o objecto num contexto espacial do qual eu pelo contrário posso querer isolá-lo... R. G. — Mudando de assunto, fala-se muitas vezes de quotidiano a propósito do teu cinema. Mas a tua prática é exactamente o contrário da d um antropólogo do quotidiano. O teu cinema é um cinema de sobrevivência, um cinema contra a rotina, contra o quotidiano. Transformas as tuas personagens — amigos, conhecidos, artistas — em suportes dos grandes mitos fundadores. À maneira do Michaux que dizia que estava farto de imitar a natureza e que doravante passaria a intervir. Em verdade, tu perturbas, tu transformas o quotidiano dos outros quando os filmas para fazer emergir um maravilhoso, para satisfazer essa necessidade primordial do mito. B. L. — Por vezes sou um pouco insistente, um pouco pesado. Sei que isso faz parte dos meus tiques. Trabalho por associação, por analogia. Tento encenar ideias. O grande sonho do Eisenstein e a grande questão: como filmar ideias? Pegar no Capital e fazer um filme. As minhas personagens são por vezes personagens-ideias: a mulher com o cavalo ou a criança com a carpa dentro da banheira em LEÇON DE VIE. As minhas personagens carregam sentido a um nível primeiro. Não deve haver dificuldade de leitura das imagens. Pode haver dificuldade de leitura ao nível do filme como todo, porque é constituído por muitas imagens portadoras de ideias. R. G. — Acho que na tua maneira de enquadrar há uma tentativa de exprimir reflexos dos grandes mitos fundadores e na tua maneira de encenar — porque tu encenas na fase da montagem — há a tentativa de criar novos mitos pessoais. Filmar ideias e não tanto pessoas. De facto a tua encenação desenha-se na fase da montagem. Claro que as tuas ideias têm a aparência de pessoas, o que é muito feliz porque confere às ideias uma dimensão humana, próxima... B. L. — Viste que na LEÇON DE VIE as personagens e a natureza, as pessoas e os insectos são filmados da forma equivalente, digamos ao mesmo nível. As pessoas não são mais importantes do que as árvores, pelo menos foi isso que tentei fazer. Por outro lado, filmo as coisas como se as visse pela primeira vez. Tento encontrar um olhar inocente, embora isso seja uma pura abstracção do espírito porque ninguém é propriamente virgem quando faz imagens. Mesmo assim procuro redescobrir esse estado de inocência quando filmo. O que significa que para mim tudo é interessante. Nos júris de selecção fala-se à boca cheia de temas interessantes, de argumentos interessantes. A meu ver, isso não quer dizer nada. Tudo é interessante. Pode ser interessante este maço de cigarros. A todo o momento pode surgir algo de interessante para filmar e eu posso integrar esse algo, esse plano, num dos meus filmes em curso. No instante em que filmo não sei dizer onde, como, nem porquê, mas parto do princípio que o plano terá o seu lugar no fim da aventura. S. — Em relação aos outros cineastas que conheço, e a mim em particular, tu és aquele que no fim do filme tem um número incalculável de planos não montados. Imagens e sons captados
que nunca virão a ser utilizados. Tu conserva-los, claro. Mas, no fim de contas, o filme oficial é uma parte ínfima duma matéria muito maior. No meu caso, é exactamente o contrário. B. L. — O filme não é só uma parte ínfima de uma matéria muito maior como também é apenas uma pequena parte de uma grande aventura. O mais importante para mim é a aventura que compreende o acto de filmar. O acto de filmar é para mim mais importante do que o filme. O filme é um rasto, como uma fotografia é um rasto. Claro que podemos tentar reconstituir o todo de uma vivência ou de uma vida a partir de uma fotografia. É esse o propósito do meu filme HISTOIRE DE MA VIE RACONTÉÉ PAR MES PHOTOGRAPHIES. S. — Percebo perfeitamente quando dizes que a aventura é a rodagem porque eu próprio sinto, quando estou a rodar, que a minha percepção do tempo muda. De repente, começo a viver muito mais depressa. B. L. — No meu caso, diria mais intensamente. S. — Tudo se modifica na nossa relação com o tempo, o dia pode ter 240 horas. B. L. — O tempo é de facto algo de muito importante, porque existe uma espécie de fora do tempo social durante o filme. Um fora desse tempo regido pela pressa, pelo stress de ir ao escritório, comer, correr... O tempo do filme é mais intemporal, ou atemporal, ou talvez eterno. Não é por acaso que eu estou sempre a referir-me ao mito do paraíso, de Adão e Eva. É justamente porque se trata de um tempo antes da queda, de um tempo eterno. Em LEÇON DE VIE há uma busca desse tempo não regido pelas convenções sociais. S. — Um tempo de vida porque a vida não é só a vida social. Porém, habitualmente essa aventura no cinema é limitada. Ainda que num filme possa haver planos não utilizados — nos meus filmes quase não há, mas o meu caso é extremo — seria inconcebível utilizá-los para outro filme. No máximo, certos cineastas refazem a montagem, acrescentam alguns planos. Ora, como tu filmas todos os dias, acabas por ter mais material não montado do que material montado, do que filme. B. L. — É verdade. De rebente fizeste-me pensar numa coisa horrível, uma espécie de cancro... E é certo que a minha angústia nestes últimos anos também vem de eu ter consciência que todas essas bobinas não estão bem conservadas, de eu não as poder ver, de eu ser obrigado a mudar de casa demasiadas vezes... Digamos que a abundância de material não montado coloca um enorme problema de conservação. Porém, não será uma situação idêntica à do escritor que escreve e só publica uma pequena parte do seu trabalho? Não sei se sou tão diferente de muitos outros criadores, sou diferente sim no mundo do cinema. Porque há muito poucos cineastas no mundo que filmaram o seu diário ao longo de trinta anos. Houve quem o fizesse durante quatro ou cinco anos e depois pararam. O Jonas Mekas é para mim um mestre. Não consigo medir a influência dele sobre mim, mas existiu com certeza no plano inconsciente. Esta loucura de filmar todos os dias coisas anódinos que os cineastas normais não filmam! Os tempos mortos, um bocadinho de chuva por detrás dum vidro, um bolo de aniversário, o gato, as crianças, o casamento, o porto – são temas de fotógrafo amador! Filmei montes de planos deste género e
não é por acaso. No fundo são etapas da vida e são cenas que eu posso voltar a filmar. Como tenho muitos amigas, a dada altura muitos delas estão grávidas, terei a -ocasião de filmar muitos partos, muitas circuncisões... Como eu dizia ao meu operador, posso fazer um raccord treze anos depois... S. — Retomando a tua enumeração que começa com a chuva e acaba com o parto, é interessante notar que falas de crianças, de casamentos e de partos, mas de facto tu não tens crianças nem és casado. Falaste precisamente do que os outros vivem e que tu vives por procuração filmando-os. B. L. — Excelente observação. Mas o que é que me queres perguntar? A paternidade foi certamente algo que me preocupou durante muito tempo. Foi algo que eu não resolvi ou que talvez tenha resolvido fazendo filmes. Poucos cineastas falaram disso. O Godard já evocou esse problema. Será compatível fazer cinema e fazer filhos? Não sei responder. Sei que para mim é compatível ter amigos e fazer filmes porque meti os meus amigos nos meus filmes, porque os integrei no sistema de filmagem que eu inventei. Mas este meu sistema impede-me de viver outras coisas, isso é certo. É uma opção de vida. S. — Mas não existe um único modelo de vida. Ou pelo menos não deveria existir um só. B. 1. — É um projecto de vida. Eu não faço cinema conceptual. Não quero ser maldoso ou intolerante em relação aos artistas conceptuais como o Opalka que é um pintor que eu filmei, mas de facto a minha experiência é muito distinta. O Opalka é um pintor polaco que deixou de pintar e, quando recomeçou, encetou um projecto que obedece a um dispositivo complicado. Começou a pintar números em branco sobre tela branca — de 1, 2, 1, 4, 1000, 100.000, por aí fora, mantendo a ordem da numeração. Todos os dias grava o som da sua voz a dizer os números e tira uma fotografia da sua pessoa em frente aos quadros que está a pintar. A consistência da tinta está calculada de tal maneira que as telas tendem a ser absoluta e uniformemente brancas. Em casa dele tudo é branco. O cabelo dele é também completamente branco. No fundo, ele está a filmar a sua própria morte, mas é todo um processo muito controlado, com pressupostos estéticos precisos. É uma aventura mental, intelectual. Nada é deixada ao acaso, tudo é calculado. A minha experiência é amadora, é diletante. Considero-me um cineasta de domingo. S. — Só que, para ti, todos os dias são domingos. B. L. — Não gosto desse lado sério que porventura também existe em mim dado que, em certo sentido, sou um perfeccionista. Tenho até preocupações profissionais quando quero que uma imagem seja bem feita, bem acabada, legível. Ou seja, não estou na onda do underground sujo e hermético. A minha prática insurge-se contra o cinema profissional francês ou talvez contra o surrealismo francês. Defendo o surrealismo belga que assume uma postura muito mais diletante, mais lúdica. Faz-se isto ou faz-se aquilo, mas o assunto não é assim tão sério... O tal lado amador.
R. G. — Voltando ao material acumulado, (in)utilizado. Para mim que escrevo muito e publico pouco, os manuscritos, os rascunhos, constituem uma espécie de tesouro dentro duma caverna de Ali Babá. Só que eu não quero entrar na caverna. Tenho medo de lá entrar mas ao mesmo tempo não quero, não consigo destruí-los, queimá-los. É um tesouro terrífico. B. L — Medo?! Talvez eu tenha de facto tido medo de mostrar certas imagens de mim. Senti isso quando realizei o BABEL, primeira parte. Quando nos olhamos ao espelho, há coisas que se revelam, coisas que não temos vontade de mostrar. Mas depois assimilamo-las e mostramolas. Agora, o problema é que eu não tenho tempo de olhar para trás, de trabalhar coisas passadas porque estou a fazer coisas no presente e esse presente foge. Foge e recomeça por definição. Vivo com uma espécie de bulimia, de querer filmar tudo, de querer estar em todo o lado, de ter o dom da ubiquidade. Dirão de mim: estiveste no Porto, vimos-te em Locarno, mas também passaste por Dunkerque. Às vezes tenho essa impressão ilusória de estar em todo o lado ao mesmo tempo. O Patrick Leboutte diz que eu sou como o furão, sempre de passagem, sempre a esgueirar-me. O que significa que quem me procura pode nunca encontrar-me. Aliás, o meu estatuto de cineasta tem a ver com isto: o meu nome não é desconhecido, soa familiar às pessoas, mas as pessoas nunca viram nada do que realizei. Não estou nos media, nem sequer propriamente no circuito dos cinéfilos. O meu circuito é muito mais privado. E gosto desta forma «privada» de mostrar os filmes. Faço filmes com os meus amigos e mostro-os aos meus amigos. Tenho o meu público. S. — Mas, apesar de tudo, tentas alargar esse público. B. L. — É verdade. A minha família vai-se alargando. S. — Em trinta anos, percorrestes os festivais, foste programado em inúmeras cinematecas — agora tens uma retrospectiva em Lisboa, por exemplo... B. L. — Os meus filmes contêm o rascunho, as escórias, os excessos. Por muito que estruture o material, sou obrigado a aceitar e assumir as condições em que os meus filmes foram feitos. Porque isso faz parte deles. Os itinerários que percorro para realizar um filme estão no filme. No BABEL, por exemplo. S. — Mas não no MUET COMME UNE CARPE. B. L. — Não, porque se trata de um filme mais «normal», realizado num período mais curto, com uma produção... S. — O que eu queria dizer é que, para além dos amigos, há uma família de cineastas. Pessoas que conhecestes, que não são forçosamente amigos, mas com quem estabeleceste laços. Citaste o Mekas e o Godard... B. L. — Claro, o Godard, o Boltanski. É evidente que não sou o único artista com estas preocupações. O encontro com outros artistas é um tema ou um leitmotiv no meu cinema. Realizei o PORTRAIT DU PEINTRE com o Arié Mandelbaum, realizei L'HOMME DE TERRE com um escultor. Conheci o John Cage e o Boltanski e meti-os nos filmes. Tenho essa apetência mas não quero cair no star system, não quero andar atrás das celebridades. É muito
difícil comunicar com outro artista. O encontro entre artistas não é natural. Curiosamente o encontro entre um jornalista e um artista parece mais fácil, embora o conteúdo da comunicação seja frequentemente superficial. Gostava de ter um encontro com o Godard, fazê-lo de forma singela, descomprometida. Porém, há tantas barreiras que eu próprio coloco... No fundo, tenho medo de falhar, de estragar tudo. Portanto, prefiro evitá-lo. Por vezes tenho pena que esse encontro não aconteça, mas a minha filosofia é que, se o encontro não decorrer de forma natural, o resultado será mau. S. — Mas esse encontro acontece mentalmente. O Godard filmou coisas tão bem vistas que o simples facto de ele o ter feito nos... alivia. São coisas que ele fez, que nos dizem respeito e que já não teremos necessidade de fazer visto que ele as realizou. B. L. — Claro, por isso é que gosto de muitos cineastas. O Paradianov, o Pelechian, alguns filmes do Kiarostami dizem-me muito. Reconheço-me neles, eles trazem-me alguma coisa, transformam a minha maneira de ver e de viver. Também há filmes que eu vejo para me divertir como toda a gente. Uma experiência não impede a outra... Tenho medo de não estar a responder tua pergunta... R. G. — Penso que o Saguenail estava a sublinhar o facto que dentro da tua família de cinema há amigos que não são artistas, há artistas que não são cineastas e há um pequeno grupo composto por gente que faz filmes... com quem tens portanto um parentesco de actividade. B. L. — Se eu te filmar a ler um texto, para mim és tão artista como o Opalka a pintar números. Não faço diferença, nem faço juízo sobre os artistas. Quando fiz o filme sobre o Arié Mandelbam, houve quem criticasse a escolha do pintor. Mas eu não coloco sequer a questão de saber se o que ele pinta é bom ou mau, se eu gosto ou não gosto. Entro em comunhão com ele e filmo-o. É um amigo. Não tento julgá-lo. Tento não julgá-lo. S. — Mas isso é o homem enquanto artista. Todo o homem é artista. B. L. — Exactamente. S. — Mas, no meio disso, também há cineastas. Pessoas que fabricam imagens de uma forma que não é igual à tua. B. L. — O que se faz não quer dizer grande coisa. Faço isto porque sou melhor a fazer isto que outras pessoas. E não tenho jeito para fazer aquilo. Sou muito desajeitado para muita coisa. Nada de pretensiosismo. Não me considero um grande cineasta. Acho apenas que posso fazer bem aquilo que faço. Quanto a «influências», posso citar gente mais antiga como o Flaherty ou o Vertov. S. — Sentes que a esse nível há uma evolução? Uma evolução na maneira de filmar e portanto também ao nível dos modelos? B. L. — O meu percurso começa por ser o de um cinéfilo. Devorei muitos filmes. Depois, é um percurso experimental visto que assisti a muitos festivais de cinema experimental porque se passavam em Knockke-le-Zoute, mesmo «à beira de casa». Isso influenciou-me bastante e permitiu-me fazer uma data de amigos. Ainda não fazia filmes, mas a vontade já germinava.
Por outro lado, dediquei-me a actividades que não são propriamente cinematográficas: toquei piano, trabalhei com pessoas em tratamento psiquiátrico. Vivi diferentes experiências as quais me levaram a este trabalho que presentemente tento prosseguir mais exclusivamente com o cinema. Também tive experiências como actor, frente à câmara. Faz parte do todo. R. G. — Não recomeçaste muitas vezes a experiência de actor, excepto nos teus próprios filmes... B. L. — A experiência do BABEL é tão peculiar que não é possível fazê-la duas vezes. Consistiu em ser filmado a toda a hora, andar sempre com uma equipa atrás, filmar tudo o que se faz. Ao fim de ano ou dois, a barra começa a ser pesada de mais. Continuo a ser filmado mas de uma forma mais distanciada e menos sistemática. É difícil falar disto porque tem a ver com a evolução da própria vida que se vive. Quando digo que filmo a intimidade, isso significa que deixei de ter intimidade. Ou seja, filmo outra intimidade. Chego aqui como um corpo estranho para te filmar e já não consigo falar-te doutra coisa. A nossa relação é transformada, perturbada. Não é bom nem é mau, é diferente. Mas no BABEL aconteceu muitas vezes eu viver isso negativamente no plano da intimidade. Repara que sou obrigado a colocar-me a questão de quem vou meter na casa do meu amigo x: técnicos, câmara, nagra... Nunca levarei um técnico da televisão para casa dum amigo. O Antoine sim, porque se tornou um amigo, faz parte da família, o que facilita o processo. Repara também que eu volto sempre ou quase sempre aos sítios onde já filmei para filmar de novo. Volto ao lugar do crime e é isso que me permite a imagem certa. Como o Cézanne que pinta quarenta vezes a maçã ou a Montagne Sainte Victoire em Aix. Eu também filmo e faço fotografias constantemente. Não me podes dizer que já te fotografei... claro que já te fotografei, mas continuo a fotografar porque nunca acontece a mesma coisa. Até ao momento em que digo para comigo que obtive a imagem definitiva. R. G. — Isso já te aconteceu? B. L. — Já e é terrível porque é quase como um adeus, uma despedida da pessoa porque a imagem ficou concluída. Também tive essa experiência no BABEL: ver uma pessoa pela última vez, filmá-la pela última vez... Evidentemente que a questão se coloca de forma ainda mais óbvia com as pessoas de idade, quando se imagina que elas podem morrer pouco depois. O que de resto acentua a necessidade de filmar e viver depressa. Porque o tempo passa, o tempo corre, e o que não fiz ontem, talvez nunca possa fazê-lo. É uma sensação muito intensa: ter de fazer depressa, não chegar atrasado, estar em cima do acontecimento. Mas tenho sempre a impressão de estar atrasado. Que chego sempre tarde de mais. Só que mesmo tarde, lá consigo fazer alguma coisa. E mais depressa do que outros. Poderia falar-vos de pormenores essenciais como sejam os sacos todos que carrego comigo. Não tenho argumento mas tenho os meus fardos, os meus acessórios, aquilo que escrevo. Maços de fotografias. Sinto necessidade de andar com este peso. Os meus cadernos estão tão cheios de notas que por vezes já não consigo decifrar as ideias. Preciso de caminhar a pé com os meus fardos. Se não filmasse,
decerto não andaria carregado com esta tralha. Teria talvez um só caderno. E durante dias procuro tudo de quanto preciso para ir a Portugal. S. — No fundo é uma preparação para abordar tal ou tal pessoa. B. L. — Sim, mas não é da mesma ordem que preparar uma rodagem. Não há «repérages». É uma preparação mental e psicológica. O argumento é um documento que tranquiliza, eu procuro tranquilizar-me de uma maneira diferente. Claro que este método de trabalho é muito angustiante porque não está nada escrito. E de repente a intuição diz-me que tenho de filmar tal plano em tal momento. E obrigo toda a gente a «parar» para filmar. R. G. — Nunca perdeste amigos com esse teu método? B. L. — Perdi. Perdem-se amigos por muitas razões e por razões cinematográficas também. É sempre triste mas é inevitável. Porém, dentro dos amigos, há pessoas que não aceitam ser filmadas. Recusam. Oferecem resistência. Não entro em todo o lado a meu bel prazer. A minha grande amiga Nadine, que vocês conhecem bem, oferece sempre muita resistência. Só que com ela a resistência é positiva porque somos muito próximos, vivemos juntos durante algum tempo, etc. S. — Apesar da resistência, vocês filmaram juntos o COUPLE REGARDS POSITIONS. B. L. — Queria apenas dizer que tenho amigos íntimos que se recusam a ser filmados. Amigos mesmo muito íntimos. A minha prática não é simples, nem pacífica. Entrevista conduzida por REGINA GUIMARÃES e SAGUENAIL