CAIXA VAZIA, CAIXA DE SURPRESAS O último «Oliveira» é doravante um dos acontecimentos esperados em todos os sentidos da palavra. Desejado pelos seus muitos admiradores... calendarizado para os seus cada vez mais numerosos espectadores dentro e fora de Portugal, visto que o Mestre filma actualmente ao ritmo alucinante de uma longa-metragem por ano. Todos nos perguntamos até que ponto Oliveira é ainda capaz de nos surpreender – alguns filmes-bomba como OS CANIBAIS atestam que o nosso cineasta mais vital nunca se contenta com os limites daquilo que a sua arte descobre e revela. Em quantas ocasiões, no decorrer dos encontros de redacção, não temos comentado, num tom divertido e algo envergonhado, que Oliveira produz filmes a uma cadência demasiado rápida para a nossa infixável periodicidade?! Pronto, aí está o «último Oliveira». Sabemos que, ao tempo em que estas linhas forem publicadas é provável que já haja um «novo Oliveira», mas sentimos como um dever maior acompanhar a sua torrencial obra e seus meandros. O último Oliveira lida sem rodeios com o Portugal do presente. A CAIXA surge, numa primeira e óbvia leitura, como uma bela alegoria sobre o estado de «mendicidade» em que Portugal se (re)vê nesta fase de integração na CEE. Mendicidade cínica e assumida que em nada impede a territorialização do espaço imaginário. É desta dupla «realidade» que nos fala o início da fita com o discurso do guarda-nocturno quando afirma que tudo está mudado, numa atitude de clarividente ebriedade, logo seguido pelo mijo matinal de uma «rural» vizinha, qual gato que incessantemente marca as fronteiras do torrão onde mora. A figura central de A CAIXA é o pedinte invisual, histrionicamente interpretada por Luís Miguel Cintra. A personagem caracteriza-se pela cegueira e pelo pavor – que justificam a sua total subserviência –, mas também por uma altiva e turva consciência do(s) seu(s) direito(s) e da sua identidade. Se ele possui a caixa — verdadeiro tesouro simbólico –, é porque, ao invés dos outros, a cegueira lhe confere esse «privilégio», como aliás o protagonista repetidamente explica quando tem de fazer frente à cobiça dos vizinhos fisicamente mais afortunados. Que melhor metáfora para a queixosa dependência do nosso palmo de quintal à beira-mar plantado, ou seja, virado para o ecrã vazio do oceano? As referências ao desencanto do pós-25 de Abril são breves mas venenosas. A morte do sonho colectivista expressa no irónico «Queres formar uma cooperativa?» será apenas um exemplo. Ao luto pela revolução (impossível?) vem acrescentar-se o luto pelo passado do futuro do cinema nas significativas confidências da vendedora de tremoços e castanhas (Isabel Ruth, puro vapor e quintessência da cinematografia portuguesa). Contudo, nenhum saudosismo perpassa, sobretudo é nula a nostalgia da «comédia à portuguesa» da gente «pobre mas honesta», posto que a truculência das personagens nunca apaga o amargo travo da sua mediocridade e visceral mesquinhez, com raras excepções aqui e ali — a conduta
falsa mas verdadeira das crianças, a atenciosa generosidade do taberneiro que se adapta aos novos tempos/novas vontades, a «viril» auto-suficiência da prostituta, que constituem outras tantas qualidades recheadas de vício da nossa solitária portugalidade. Porém as facetas mais interessantes de A CAIXA resultam indubitavelmente do excepcional contributo de Beatriz Batarda, pálida filha de cego — mas filha de peixe sabe nadar — e olheirenta encarnação da santa de pau carunchoso. Ela é simultaneamente a criatura explorada — maltratada pelo marido, condenada ao ferro de passar — mas impregnada duma melíflua «esperteza saloia» graças à qual nenhum incidente, por mais terrível que nos possa parecer — o esposo assassino na cadeia, o pai que se suicida esfaqueando-se —, impede a perpetuação do estado e da ordem das coisas portuguesas. À tradicional caixa de esmolas — inspirada na das igrejas mostradas no filme como edifícios tutelares — sucede o certificado de pobreza em papel azul celeste, selado e devidamente autenticado, que representa sem sombra de dúvida a definitiva santificação e pública legitimação do moderno estatuto de mendicidade. Neste ambiente de Jornal do Incrível, neste cu lavado da Europa dos sem abrigo, trata-se pois de um filme pessimista, tanto mais negro quanto as personagens de Oliveira evoluem num mundo privado de fé e de projecto — conquanto «projecto» seja a palavra-chave dos que nos «governam» —, abruptamente invadido pelos transeuntes que o percorrem velozes e indiferentes, mas fundamentalmente isolado e insular, irrisório palco. Ao optar pela adaptação cinematográfica de um texto teatral — a peça homónima de Prista Monteiro —, Oliveira fez ou foi obrigado a fazer certas escolhas que nem sempre funcionam no plano dramático. Com efeito, o cineasta delegou nos actores uma boa parte do trabalho de expressão, solução essa que, se surte alguns instantes de génio ao nível dos desempenhos femininos, pouco mais é do que rasca e não raro incomodamente contraproducente no que respeita ao grosso do elenco masculino. No entanto, a aventura da criação tem destes percalços. Tal como Luís Miguel Cintra na sua original e perturbadora interpretação do ceguinho — justíssima estilização naquilo que tem de carnal e frágil embora possivelmente errada numa óptica realista ou clínica —, Manoel de Oliveira continua a correr os mais saudáveis e imprevisíveis riscos. Nas veias de A CAIXA circula uma inquietação de português na sua fase europeia e de europeu na sua fase — ousemos dizê-lo... — portuguesa. R. G. e S.