DEPOIS DA PAIXÃO Ao facto de A PAIXÃO DE JOANA D'ARC de Dreyer aparecer ainda hoje, e mesmo para o público desprevenido, como um dos momentos mais sublimes jamais realizados no cinema, não serão alheios dois aspectos relevantes do filme, no tocante ao ponto de vista: o martírio de uma «santa» tratado por um cineasta de origem não-católica e o destino de uma heroína «nacional» visto por um olhar não-francês. Esvaziada do conteúdo religioso e simbólico que lhe é habitualmente atribuído, bem como das formas particulares de erotismo ligadas à pureza mística e ao ensinamento patriótico, A PAIXÃO DE JOANA D'ARC adquire uma dimensão humana e política inédita. Protestante, Dreyer não acredita na santidade de Joana d'Arc. Dinamarquês, Dreyer não valoriza a pastora de Domrémy como figura lendária da construção da França, da sua unificação e conflituosa separação da nação inglesa. Imagine-se a história da Virgem Maria contada por ficcionista muçulmano... Em A PAIXÃO DE JOANA D'ARC, o que está em causa é a verdade individual contra a versão dos acontecimentos, e até dos sentimentos, que o sistema inventa e a razão de estado impõe. O que faz de Joana d'Arc uma vítima da intolerância é a loucura que trespassa no seu olhar e a fidelidade ao seu sonho que os juízes, guardiões não da lei mas da ordem, não lhe perdoam. E, se Joana d'Arc parece inquietante, é porque a sua obstinação e a sua «chama» podem contagiar o povo que, dividido entre o terror e a curiosidade, vem assistir à imolação da bruxa; todavia, esse contágio pela revolta permanece incerto e a paixão de Joana (não o martírio pela Pátria mas o acto de resistência contra o poder instituído) poderá ter ocorrido em vão. Todo o filme de Dreyer se constrói segundo um esquema de progressão dramática peculiar: a verdadeira fogueira é o tribunal, e as cabeças bem-pensantes dos juízes são visualizadas como o amontoado de lenha seca onde arde a humilde e solitária ficção da pastora a quem nem Deus nem o Rei vêm acudir; quando a condenada é consumida pelas labaredas, após a prova de fogo do julgamento, o seu fim trágico tem um estranho sabor a alívio — passamos então do plano dinâmico do drama para o plano estático do imaginário simbólico. O céu, Joana descobriu-o ou criou-o aqui na terra, e nenhuma luz visível a espera, apenas o fumo que do nosso olhar a oculta. Os grandes planos, que fizeram de A PAIXÃO DE JOANA D'ARC um verdadeiro modelo de antologia gramatical deste enquadramento absolutamente cinematográfico, exprimem a todo o momento a asfixia do interrogatório à porta fechada, a impossibilidade de penetrar no universo espiritual das personagens — cada cabeça, cada planeta — das quais apenas podemos tocar/focar de mais perto os trejeitos carnais. Mas, sobretudo, sempre que Joana dirige o olhar para o chão ou para as alturas, os limites do quadro, fora dos quais só existe a escuridão da sala, corporizam cruelmente não a presença do além mas a sua ausência. O além não é pois mais do que o negrume povoado de olhos duma sala de espectáculo. Com A PAIXÃO DE JOANA D'ARC o mudo atinge a perfeição: as bocas possuídas pelo verbo proferem catadupas de frases, mas as palavras permanecem fisicamente inaudíveis; porém, somos levados pela torrente daquelas «vozes» que aos poucos vão ganhando uma consistência tão expressiva que qualquer som «real» ficaria aquém da força fantasmática que nelas projectamos. Para ver e ouvir com o sétimo sentido: o da criação partilhada. R. G.