Elogio incondicional

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ELOGIO INCONDICIONAL (UMA VEZ NÃO SÃO VEZES) 1. O PRAZER DOS SENTIDOS Começamos por constatar que apesar de a acção do filme consistir, quase exclusivamente, num desenhador a debuxar uma casa — não no desenho em si mas na escolha do ângulo — e se bem que haja quem não goste do filme, o nosso interesse não esmorece. A primeira arma que nos toca no filme é talvez a beleza das imagens. Todavia, estas em nada se aparentam com o postal ilustrado. Talvez por Peter Greenaway não ter apostado nos chavões da reconstituição — como Kubrick fez em BARRY LYNDON — recorrendo ao cenário do século XVIII em razão duma moda efémera na Londres de 1980. O carácter factício deste pano de fundo, a sua actualidade, são assumidos. A banda sonora é nesta perspectiva espantosa: a música tem a sonoridade da época mas o tratamento jazzístico — síncope e movimentos justificados por um critério de expressividade — ou pop — repetição duma frase melódica pura. Os próprios diálogos adoptam um tom cortesão mas só contêm alusões à situação ficcional apresentada e em tudo se radicam no presente. O lugar da acção é com efeito perfeitamente fechado, limitado à casa e ao jardim circundante. O filme é inteiramente construído em apontamentos repetitivos e complementares, um pouco como um puzzle, sobretudo como esses debuxos que constituem o essencial da acção. Não há continuidade, mas uma sucessão de elementos ordenados segundo uma espiral — rotação à volta da casa — coerente. Esta coerência pode até certo ponto parecer irritante na medida em que, perante esta fábula fechada, o espectador não tem outra alternativa senão assumir a sua opinião objectiva de voyeur, sem participar, nem sequer por via de identificação, na acção. 2. UM CONTRATO TEM SEMPRE GATO ESCONDIDO O filme é, com efeito, para além da sua beleza formal, duma agressividade pouco corrente. A ponto de só se poder interpretar como uma recusa o desabafo de numerosos espectadores que dizem não terem compreendido o filme. Não sei se o filme terá sido concebido para uma elite, mas decerto não se dirige a um público de cinéfilos que procuram o que lá não está e não se detêm no que lá se diz e mostra. Não se trata de questionar o visível, somente de o representar, duma forma talvez demasiado fiel; são questionadas sim as relações sociais, as implicações práticas e ideológicas da confrontação entre diversos parceiros sociais, etc. O visível pode servir de matéria-prima a uma ficção — e o filme mostra um processo mais próximo de A Morte e a Bússola de Borges que de O Nome da Rosa de Eco; — o filme revela os motivos e as finalidades desta ficção. Ficção, neste caso policial, que é evidentemente uma falsa pista. O desenhador pode cair no engodo da ficção mas o espectador é posto de sobreaviso — para além de algumas frases explícitas, as «provas» que poderiam comprometer o inocente são destruídas, e com elas a justificação ficcional do seu assassinato. O crime inicial é banal, o seu móbil a herança, e não necessita ser aprofundado. O centro do filme é mesmo o contrato — aliás a intriga policial só arranca na segunda parte do filme. Ora, há dois contratos: o primeiro só serve para cobrir o segundo e desencadear o processo ficcional — ofuscando o artista, deixando-o na ilusão da soberania do seu prazer —; o segundo, que não é destruído, e nem sequer chega a ser objecto de chantagem, revela o fim de todo o empreendimento: a reprodução duma classe dominante e impotente. A metáfora é apresentada da forma mais crua: os privilégios concedidos ao artista medem-se em termos de satisfação carnal; a reprodução que dele se espera é de natureza seminal e não estética. Assim, sob a leveza dos discursos aparentes, sobre a aparência — que apenas são testemunho da construção do filme em si, de «monstração» e não do sentido oculto do visível — assenta a temática da reprodução social, processo, esse sim, mais do que todos oculto e que obscuramente rege todos os outros — no topo dos quais o critério do «gosto» como Bourdieu evidenciou. O filme, que apresenta uma aparente unidade de lugar de acção, etc., é com efeito uma sementeira de falsas pistas. No entanto, espectador tem todos os dados na mão e uma das causas da sua cegueira — que o impele a seguir o mesmo caminho que o desenhador — deve-se talvez à obscura consciência de que o seu prazer o torna cúmplice, de que participa ao longo do filme numa maquinação de que sai, apesar de tudo, ileso... Que espécie de contrato será realmente inerente à compra dum bilhete? R.G. e S.


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