Encontro com jean claude carrière

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ENCONTRO COM JEAN-CLAUDE CARRIÈRE A meados de Fevereiro do corrente ano, Jean-Claude Carrière visitou o Porto a convite do Fantasporto. Aproveitando a sua estadia, A Grande Ilusão teve uma longa entrevista com o célebre argumentista que gentilmente se dispôs a debater connosco o polémico tema do papel do argumento na criação cinematográfica. JEAN-CLAUDE CARRIÈRE — Vou tentar lembrar-me do que já disse ontem na conferência de imprensa para não cair em repetição. SAGUENAIL — Gostaríamos que nos falasse sobretudo do seu trabalho de argumentista. Onde começa e onde pára o trabalho do argumentista? REGINA GUIMARÃES — Para explicar o nosso interesse particular (embora o saibamos muito informado sobre outros aspectos da actividade cinematográfica), talvez valha a pena dizer-lhe que a questão da importância do argumento tem suscitado muita polémica no cinema português. Cada vez que um filme português tem problemas de bilheteira, de acolhimento por parte do público ou da crítica, é frequente alegar-se que o defeito do filme é falta de trabalho ao nível do argumento, dos diálogos, etc. S. — O cinema português é um cinema de estado e todo o financiamento se faz em torno do argumento. J.-C. C. — Isso não é só em Portugal. R. G. — Os subsídios são atribuídos mediante apreciação e selecção dos argumentos, e há gente, aliás muito respeitável, que afirma que é preciso uma escola de argumentistas em Portugal. Não é propriamente um debate público, mas é um debate importante no meio cinematográfico. J.-C. C. — E qual é a outra alternativa? R. G. — Digamos que há outras pessoas, igualmente respeitáveis, que acham que a existência de especialistas em argumento não resolverá os problemas do cinema português, por um lado; por outro, que a existência de uma escola não significa que haja bons argumentistas. A necessidade de encontrar co-produções veio agudizar o problema, porque doravante é preciso produzir argumentos vendáveis no estrangeiro que obedecem a normas nem sempre muito claras. S. — Como o argumento não sai muito caro, o trabalho de preparação passa sobretudo pela escrita e re-escrita dos argumentos. Na medida em que o dinheiro e o tempo para a realização são bastante reduzidos, os fantasmas e as preocupações cristalizam-se no argumento enquanto objecto. J.-C. C. — Não é o tempo consagrado ao argumento que influi sobre os prazos de rodagem. Dois ou três anos para redigir um argumento é um tempo normal. Enquanto se escreve o argumento, há tempo para colocar e resolver todas as questões ligadas à realização do filme. Durante a rodagem, o realizador não pode dar resposta a tudo; tem dezenas de pessoas à sua volta que o solicitam permanentemente. A cada instante, há alguém que o vem questionar: «São estes os sapatos? A câmara fica aqui? A cor das paredes está boa?» Durante a rodagem, o realizador não tem tempo para meditar sobre o argumento porque tem de pensar em tudo, até nos sapatos e na cor das paredes. Essa multiplicidade de pequenas decisões come-lhe o tempo todo. Agora, respondendo à vossa pergunta: o argumentista está presente do princípio ao fim do filme; o período em que está menos presente é durante a rodagem. Na experiência que tenho, não só pessoal, o argumentista aparece no filme logo no início — muitas vezes é ele que propõe a ideia do filme, outras fá-lo juntamente com o realizador, quase sempre em colaboração com o produtor. O argumentista assiste ao nascimento do filme (quer este se baseie numa ideia original ou numa adaptação — sugerida pelo realizador ou proposta por outrem) e acompanha também a fase de acabamento. Que eu saiba, nenhum filme é acabado sem que o argumento volte a ser trabalhado, durante a montagem, durante a sincronização e até nas misturas. Durante as misturas, ainda modifico frases inteiras; aproveito o facto de um actor estar de costas para modificar uma réplica, caso seja necessário e caso possa melhorar a realização da cena. Na fase da sincronização, há muitos pormenores que são retocados. Quando se trabalha com uma voz off — o que acontece em muitos filmes — o texto off é escrito na fase de redacção do argumento, a título indicativo e depois pode ser utilizada. A colaboração entre o argumentista e o


montador também é imprescindível. O argumentista deve forçosamente ter uma formação no campo da montagem. Numa escola de argumentistas, a montagem é uma área prioritária e essencial. O cinema é montagem. A especificidade absoluta do cinema — Godard disse-o mil e uma vezes — é o «découpage» por planos. É um facto consabido que a experiência confirma. É próprio do cinema e de mais nenhuma forma de expressão. Estou aqui sentado frente à câmara, levanto-me e vou até à janela — plano de corte: a praça; é a minha visão da praça. A justaposição de duas imagens faz com que o meu olhar indique ao espectador que eu estou a olhar para a praça. Nenhuma outra forma na história da expressão concretiza isto. O cinema, no princípio, não passava de teatro filmado: plano fixo, entrada e saída de campo dos actores que representavam em frente à câmara imóvel. A partir do momento em que a montagem aparece, nasce a expressão cinematográfica. Estou debruçado, à janela, olho para a rua: há um homem e uma mulher; grande plano da minha cara que exprime desagrado: aquela senhora é a minha mulher, está no meio da rua com o amante e eu tenho ciúmes — é a montagem que exprime este sentido. A montagem é a verdadeira linguagem do cinema. Fiz e continuo a fazer muitas montagens. S. — Também sou montador e defendo que o montador deve acompanhar o filme desde o princípio. J.-C. C. — Eu trabalho muito na montagem. Fiz muitas montagens e continuo a fazer. Montagem de filmes para os quais não escrevi o argumento. O argumentista não precisa propriamente de ser montador profissional, de conhecer os truques todos do ofício, mas precisa de ter um contacto aprofundado com esse domínio da arte cinematográfica. De outro modo nunca conseguirá escrever um bom argumento. Ou então fará um argumento que acarretará uma carga de trabalhos para o realizador, não raro obrigado a adaptá-lo. Há duas concepções do ofício de argumentista; uma é falsa, a outra é verdadeira, como sempre. (Não estou a dar uma opinião estritamente pessoal. Muitos argumentistas diriam a mesma coisa). A falsa consiste em julgar que o argumentista é um escritor, um romancista, que o argumento é o desenlace duma aventura literária, que depois começa uma aventura cinematográfica, um processo técnico que se chama cinema e que existe uma separação entre as duas. Esta concepção está absolutamente errada porque se se considerar o argumento como um trabalho literário, depois da fase da escrita tudo fica por fazer. É por isso que muitos romancistas falham quando se consideram argumentistas. Escrever para o cinema não é escrever, não é escrever com palavras. Eu estou plenamente convencido de que o argumento é o princípio da aventura cinematográfica. O argumentista é muito mais um cineasta do que um romancista. Claro que não há mal nenhum em saber escrever, mas isso é verdade para todos os ofícios. Mas não é essencial. O essencial é pensar em palavras-imagens e isso é uma aptidão muito especial e uma escrita muito particular que não se parece com nada. O essencial é saber a cada momento como é que aquilo que se escreve se vai transformar em imagem. Conhecer esse processo, avaliar os tempos, prever as modalidades de encenação e, se possível, esboçar o estilo da realização (ritmos, enquadramentos, ângulos). Portanto, primeira condição para um bom trabalho de argumento: o argumentista deve colaborar com o realizador desde o princípio. É quase uma regra para o sucesso. Se o realizador e o argumentista forem a mesma pessoa, tanto melhor. Se forem duas ou três pessoas (é possível haver mais do que um argumentista), quanto mais depressa se juntarem e conjugarem esforços, melhor, porque assim terão uma visão comum do filme e uma forma interior e inconsciente comum da obra. Demorei muito tempo a perceber isto. De facto, o prestígio da literatura é grande. O argumentista sente-se dividido entre os sonhos de Prémio Goncourt, de Academia Francesa e de glória literária e, do lado oposto, as exigências do realizador que pensa no seu filme e anseia pelos louros da realização. O argumentista está entre essas duas coisas que brilham, sem saber muito bem de que lado está. Porém, se se sentir tentado pela glória literária, que escreva romances. O argumentista sabe que os louros não são para ele, serão sempre para o realizador... ou a infâmia do fiasco. O insucesso, a vergonha, o insulto acontecem a toda a gente. Seja como for, o argumentista deve entregar-se ao filme. É a única maneira de sair deste dilema dilacerante. Porquê? Porque, hoje em dia, sabemos que no nosso cérebro, dividido em dois hemisférios, o centro da linguagem é do lado esquerdo. O lado esquerdo é a parte que raciocina, que analisa, que escreve mediante um código de palavras. Toda a escrita é um código, elaborado e trabalhado pela parte esquerda do cérebro. A parte da imagem fica do lado direito, O lado direito é o centro da


intuição, da imaginação, da fantasia. Um grande cineasta tem de pôr os dois lados a trabalhar. Preferencialmente a parte direita, mas também o lado racional, analítico e falante. O papel do argumentista situa-se exactamente neste estranho contacto entre os dois lados, o da escrita e o da imagem. Aí reside o mistério do seu trabalho. Se privilegiar o lado razoável, articulado, construído, dramaticamente estruturado, impecavelmente escrito, vai-lhe faltar 50% da obra de arte que deve brotar da parte contrária, incoerente, demente, imaginativa. Imagem, imaginação. Muitas pessoas são incapazes de jogar com ambas as partes, mesmo alguns realizadores que têm a parte direita excessivamente desenvolvida. Buñuel era um pouco assim, não era um homem da escrita. O essencial é saber se o argumentista consegue sozinho incarnar as suas partes e, se sentir em si o equilíbrio de ambas as partes, de que parte de si o realizador precisa. Depende muito do cineasta. Há realizadores que são muito construtivos, articulados, mas carecem de imaginação. Nesse caso é da nossa fantasia que precisam. Abrir uma porta, fechar outra. É um trabalho muito especial. Eu sou um homem de teatro, escrevi umas quinze peças de teatro. Também escrevi uns vinte e cinco livros e muitos argumentos. Posso afirmar que de todas as formas de escrita, a do argumento é a mais difícil. A escrita de cinema pressupõe talento, como todas as outras, mas também implica conhecimentos técnicos. É possível fazer teatro sem conhecer tecnicamente o teatro. Aliás, a técnica teatral é simples e muito livre. É possível fazer literatura sem saber como um livro é impresso. Não é possível fazer um argumento ignorando como se faz um filme. Ter talento, dominar a técnica e perceber como é que a coisa escrita se vai metamorfosear em imagem são três condições essenciais para ser um bom argumentista. Por último, a postura do argumentista requer humildade e modéstia e uma consciência aguda de que o seu trabalho é apenas uma parte dum trabalho comum. Por razões técnicas e por razões de ordem pessoal, é uma escrita difícil e ingrata. Muita gente hesita em escolher este ofício porque é consabido que o autor do filme é o realizador. S. — O problema coloca-se um pouco nos mesmos moldes para o montador... J.-C. C. — Pois, o montador é considerado como um simples técnico. A situação do montador é ainda mais difícil porque, de há alguns anos a esta parte, o realizador escolhe e decide a montagem do seu filme. No cinema americano dos anos 30/40, o realizador cingia-se ao trabalho de «mise en scène». Quando o dia de rodagem acabava, tiravam-lhe a película e ele não tinha qualquer poder de decisão sobre a montagem. O direito de escolher a montagem é uma das primeiras conquistas do realizador. S. — Há pouco dizia que tudo devia ser minuciosamente previsto, da forma dos sapatos à cor do papel de parede. Essas informações estão consignadas no argumento? J.-C. C. — Não, eu dizia apenas que na fase da escrita há tempo para pensar nesses pormenores. Claro que nunca se pensa em tudo, surgem sempre surpresas. Digamos que, na fase do argumento, dispomos de tempo para prever muitos dos problemas que se podem colocar. O que não significa que tudo deva estar escrito no argumento. Um argumento é um texto destinado a produzir um filme. Portanto deve formular uma imagem o mais rigorosa possível do filme sem que se perca de vista que o argumento não é o filme. É uma resma de papel para os produtores, para as entidades que decidem... De todos os objectos escritos à superfície da terra, é certamente aquele que tem menos leitores potenciais. Terá no máximo uma centena de leitores — as pessoas a quem vai ser apresentado e depois as quarenta ou cinquenta pessoas que vão fazer o filme. A particularidade deste texto é que cada leitor procura nele algo diferente. O director de produção, por exemplo, vai tentar calcular quantos dias, quantos fatos para a actriz principal. E tudo isto deve estar explícito no argumento, de uma forma o mais elegante possível para não perturbar a leitura dos outros. Porque o actor vai procurar um papel, acima de tudo, e averiguar se a personagem que lhe propõem é interessante, se fica muito tempo no ecrã, se diz e faz coisas fascinantes, se se trata duma personagem motora. É uma palavra muito cara aos actores. A minha personagem faz ou não avançar a acção? Se fosse suprimida, o argumento mudaria de sentido ou não? Eis o que o actor vai tentar perceber através da leitura do argumento e é isso que vai pesar na sua decisão. O produtor ou o financiador buscará as razões comerciais e lerá o argumento um pouco como quem lê uma novela, perguntando a si próprio se aquela matéria é susceptível de cativar as pessoas, se há cenas suficientemente fortes, para atrair as pessoas sem que o filme se torne demasiado caro. E a cabeça


do produtor faz um orçamento do filme. Como vêem, são leituras muito diversas, Ainda a propósito dos actores, muito frequentemente eles só lêem as cenas em que entre a personagem que lhes é proposta, por vezes só se detêm nos diálogos que lhes dizem respeito. Chamam a isso uma leitura egoísta. Um dia, um actor disse-me: «Sabes, li o teu argumento e posso garantir-te que não fiz uma leitura egoísta.» A expressão é muito bonita mas a observação do actor prova que decerto fizera mesmo uma leitura egoísta. A única pessoa da equipa que faz uma leitura total do argumento é o realizador. O realizador e o argumentista têm em torno desse objecto uma cumplicidade total porque o conceberam juntos, ao longo de semanas, meses... Eu trabalho sempre com o realizador embora possa vê-lo só umas três vezes por semana. Noutros casos, como com Buñuel, é todos os dias, e a todas as horas do dia. Mas, por vezes, o realizador prefere deixar-me trabalhar sozinho um ou dois dias, e depois vir visitar-me. Depende muito de o realizador ser argumentista ou não. Mas, seja como for, no fim o objecto é muito familiar para os dois que o conhecem de cor e salteado. Um exemplo que costumo dar vem-me da minha experiência com Buñuel. Todo o dia estamos sentados frente a frente. Há uma mesa entre nós. Trabalhamos horas a fio nestas posições respectivas. A minha direita é a esquerda dele: estamos em assimetria. Em princípio, temos uma visão do espaço completamente oposta, como frente a um espelho. Ao fim do dia de trabalho, fico sozinho, começo a formalizar e passar a limpo a cena em questão e passo à escrita. Depois faço muitos desenhos. O desenho foi o meu primeiro ofício. É muito útil, não para esboçar um enquadramento (isso nunca, porque nenhum desenho consegue exprimir o valor duma profundidade de campo) mas para ilustrar pormenores de fatos ou adereços, aspectos físicos e expressivos das personagens, ideias de cenários, etc. Ajuda muito, por exemplo a visualizar a posição dos actores numa cena (Buñuel pedia-me sempre que desenhasse. Fiz centenas de desenhos para os filmes dele). Retomando a minha narrativa: no dia seguinte, voltamos a estar colocados um em frente ao outro; eu escondo os desenhos e começamos um jogo que já é habitual; estamos a redigir o argumento do CHARME DISCRETO DA BURGUESIA e naquele momento trabalhamos sobre a cena dos pára-quedistas; pergunto a Buñuel: «De que lado fica a porta da entrada?»; Buñuel responde-me: «À esquerda». — e eu anoto; volto à carga: «De que lado é a lareira?»; resposta: «Ao fundo, ligeiramente à direita»; e verificamos assim, de forma sistemática, que, ao trabalharmos juntos, superámos a diferença de espaço e criámos um terceiro espaço, o espaço cinematográfico que nos é comum. É a isto que eu chamo a forma interior, invisível e comum que é engendrada pelo trabalho. Porque nos levantamos, caminhamos, deslocamos cadeiras, representamos, criamos uma encenação elementar que faz com que esqueçamos o quarto de hotel onde estamos. É a esta sintonia que é preciso chegar. É preciso chegar a uma visão o mais próxima e o mais comum possível do filme. É óbvio que nunca será rigorosamente a mesma porque há um momento em que o realizador irá escolher actores que não corresponderão exactamente ao que se pensava, os cenários não corresponderão totalmente àqueles que tínhamos em mente, etc. Hoje em dia, é raro construírem-se cenários em estúdio. A maioria das vezes o quarto de hotel é um verdadeiro quarto de hotel. Logo os desenhos que se fazem diferem da concretização. Mas devemos tentar aproximarmo-nos o mais possível do projecto comum. As raras vezes na minha vida em que não trabalhei com o realizador, em que ele recebeu um argumento escrito previamente por mim (eventualmente de parceria com outros como já aconteceu com Tonino Guerra de quem sou muito amigo e com quem colaborei) de facto recebeu um objecto que lhe era absolutamente estranho. Uma leitura desse objecto não lhe pôde chegar. Três meses não são demais para que o realizador consiga apropriar-se desse objecto estranho, e conhecê-lo ao nível dos pormenores de ritmo, de tom, etc. Um leitor de argumento que tenha de decidir se vai ou não financiar tal filme do qual só tem o argumento está numa situação muito difícil. Não há objecto mais difícil de ler do que um argumento. Pondo de lado a ausência da cumplicidade do trabalho elaborado em comum, continua a ser imprescindível conseguir ver imagens. A menos que o argumento esteja prodigiosamente bem escrito. O bom leitor de argumentos tem de ser um cineasta. Quando se concebe um argumento, deve-se ter em mente que o argumento não é uma obra literária e que o texto deve sugerir um filme. A graça, a sofisticação, o efeito literário mais ou menos rebuscado são perigosos porque impedem o leitor de transcender a beleza da escrita para imaginar um filme. Se a escrita for muito bela, basta-se a si própria e não é possível ir além. Quase seria


necessário dar aulas de leitura de argumento. No limite é mais difícil ler o argumento do que escrevê-lo. Eu já participei em comissões de leitura de argumentos para atribuição de financiamentos do tipo «Avance sur recette». Em geral, tentamos convocar o realizador e o argumentista para os ouvir, para ver algumas fotografias ou desenhos quando os há, para ter acesso a mais documentos que permitam ir além da leitura do argumento. Se o trabalho de leitura for levado a sério torna-se extremamente difícil. Um homem normalmente culto que não seja cineasta, um homem de boa vontade, pode ser seduzido por uma forma de escrita por detrás da qual não há um bom filme, não há matéria fílmica interessante. A escrita literária é muito sedutora; é frequente ouvirmos dizer: «É uma bela história! É um argumento muito bem escrito...» Eu desconfio sempre desses textos o que não quer dizer que eles sejam sempre disfarce para maus filmes. Mas a beleza da escrita não chega para avaliar a qualidade duma matéria fílmica. O argumento é, por definição, um trabalho ambíguo e difícil de classificar com rigor. É difícil dizer é isto ou é aquilo. Está entre isto e aquilo. Acho que a melhor comparação que consegui encontrar — que aliás citei num livro publicado pela escola onde trabalho — é a seguinte: o argumento é a lagarta que se vai transformar numa borboleta. A lagarta contém todos os elementos da borboleta, todas as células, todas as cores da borboleta. Mas não voa nem pode voar. O argumento contém o filme sem ser o filme. A realização consiste em arrancar uma borboleta duma lagarta e dar-lhe o golpe de asa. Às vezes, a borboleta sai e morre imediatamente porque o golpe de asa foi frouxo. Quando a borboleta voa e aguenta o voo com firmeza, a misteriosa operação acabou e do argumento resta uma pele seca e desinteressante. Em geral, no fim de uma rodagem, o argumento é deitado ao lixo, porque é um objecto cuja existência efémera chegou ao fim e já se transformou naquilo que continha. Bem ou mal. Devemos desconfiar da linguagem alegórica, mas nesta imagem da lagarta e da borboleta acho que há algo bastante pertinente. S. — Acha que os seus argumentos se parecem uns com os outros apesar de serem feitos com e para realizadores diferentes? J.-C. C. — Não. O meu trabalho depende do realizador. Comecei com Jacques Tati e pessoas daquela geração que escreviam argumentos ilegíveis, argumentos ultra-técnicos. Consistiam num «découpage» plano a plano, com um desenho técnico para cada plano, um esquema complicadíssimo que descrevia os movimentos de aparelho. Para ler esses documentos era preciso começar por aprender a ler porque o material era ilegível: abreviaturas, ângulo de tomada de vista, objectiva, 35 ou 50... Se o olho não estiver habituado é impossível imaginar. Os leigos não entendem patavina... Em alguns argumentos, nos do Clouzot por exemplo, indicava-se o diafragma da cena... Estão a ver até onde ia a tecnicidade daquela escrita!!! Eram objectos em linguagem especializada, concebidos para a equipa técnica. O Tati era o seu próprio produtor, portanto não precisava de seduzir as pessoas. Aliás, esses argumentos eram impossíveis de contar. Era uma matéria completamente visual. Os argumentos que fiz com o Pierre Etaix eram também ultra-técnicos. Portanto, no princípio comecei por redigir argumentos muito técnicos e trabalhava na montagem ao mesmo tempo. Depois, mais ou menos por essa altura, rebentou a Nouvelle Vague. Ora o «découpage» rigoroso só é aplicável quando se roda em estúdio ou em cenários muito adaptados ao projecto. Se se rodar em cenários naturais, como passou a ser o caso com a Nouvelle Vague, a filmagem submete-se ao cenário. Logo o «découpage» técnico só se redige quando já se encontrou o cenário. Em geral, é o realizador que trata dessa tarefa de planificação. A partir daí, tudo depende do cineasta em questão. Os filmes de Buñuel, para dar um exemplo intermédio, são planificados sequência a sequência e nunca plano por plano. Nos «découpages» de Buñuel não há nenhuma indicação técnica, a palavra «câmara» nunca aparece. Durante a rodagem, falava-se por vezes de questões técnicas, mas muito pouco. O Buñuel agarrava na sequência (é preciso não esquecer que na época da nossa colaboração, ele já tinha realizado trinta filmes, o que significa um conhecimento aprofundado da técnica) e calculava grosso modo quantos números iam ser necessários: «Interior sala de jantar» «Dia» — a criada entra e há umas sete réplicas — logo preciso duns quatro planos; nessa altura, ele anotava quatro números, um pouco ao acaso, e essa indicação servia apenas para o director de produção (que queria saber quantos planos iam ser rodados naquele dia), para o anotador e para as folhas de montagem. O verdadeiro «découpage» era feito no plateau, quando o cenário


estava pronto. Antes de começar, Buñuel pegava no visor (ou desenhava um ecrã com os dedos e conforme a distância a que colocava a «janela» dos olhos tinham uma «30» ou uma «50»). Quase nunca se enganava, mesmo quando visualizava a cena com uma «18» ou uma «70». Durante dez minutos, procurava o primeiro ângulo. Fazia esse trabalho absolutamente sozinho, na presença de toda a equipa que ficava à espera. Enquanto procurava, às vezes pedia aos actores que ocupassem determinadas posições. Quando por fim encontrava o ângulo ideal, decidia a posição da câmara. Rodava então o primeiro plano e ia filmando em continuidade até onde podia. Mal começava a sentir que não sabia como continuar, parava e mudava de plano para o qual buscava novo ângulo. Era quase sempre assim que ele trabalhava. Esta maneira de proceder implica que não há montagem. Neste método buñueliano, o argumento não tem números nem indicações técnicas. Mas há outras maneiras de funcionar. Trabalhei três vezes com Godard e com ele o processo é completamente diferente. Começa-se pela imagem, por filmar em vídeo. Filma-se uma coisa qualquer que tem uma vaga relação com o tema sobre o qual se trabalha, se fala. Fala-se muito com Godard. Almoça-se, janta-se, fala-se, fala-se muito do argumento. Um belo dia, ele tem vontade de fazer um filme com o Jacques Dutronc — o SALVE-SE QUEM PUDER, por exemplo, no qual colaborei. Começa por filmar uma fotografia do Dutronc, depois uma paisagem suíça, a seguir uma rapariga a andar de bicicleta. Entretanto filma também uma série de coisas que lhe passam pela cabeça nessa altura, Por exemplo, lembro-me de termos filmado um quadro de Bonnard que representa uma mulher nua num sofá a olhar para uma janela. O resultado deste trabalho dá um filme de quinze minutos aproximadamente. Projectamos o filme. Aí eu acrescento-lhe imagens. Estamos ambos fechados numa sala e paramos numa imagem. E o Godard pergunta-me: «Aqui há matéria para uma cena?» Respondo que sim; mais vale responder que sim, doutro modo não há argumento. E se eu responder que sim, ele pergunta: «Que cena?» E eu respondo-lhe que alguém bate à porta. E improvisamos assim. De vez em quando escrevemos, mas muito pouco porque o Godard — um pouco como o Marco Ferreri com quem também já trabalhei — desconfia da escrita. Desconfia da escrita que o vai «encurralar» na fase da rodagem. O Godard espera algo da rodagem, algo que tem a ver com a espontaneidade. Não tanto ao nível das imagens que são muitíssimo calculadas. O Godard é muito rigoroso no enquadramento e é-o cada vez mais. Quanto mais envelhece mais as suas imagens são sábias. Essa sapiência vem-lhe dum trabalho aturado de repérage e dum sentido agudo da imagem. Mas com os actores espera que algo aconteça. O tal algo nem sempre acontece e, nesse caso, ele saca do diálogo que tinha no bolso — uns papeluchos — e dá-o aos actores. Os diálogos são preparado para a eventualidade do actor não inventar nenhuma acção interessante. O argumento com o Jean-Luc Godard é uma impressão do filme. São colagens de fotografias, alguns textos, algumas indicações sobre algo que poderá acontecer, mas nunca uma matéria articulada. É o contrário absoluto dum filme do Tati. Com um argumento do Tati, o filme está tecnicamente sistematizado e pronto a ser rodado imediatamente. Com o argumento do Godard, temos impressão de estar ainda muito longe do filme; mas há todo um trabalho invisível que foi elaborado, que só aparece nos bolsos, um trabalho secreto que é mantido secreto. S. — Mas também é secreto para o argumentista? J.-C. C. — Não, secreto para nós os dois. Para ele quando trabalho sozinho. Em certos casos, ele gosta que lhe escrevamos cartas, com propostas que ele aproveita. No PASSION há bocadinhos de diálogo que eu lhe mandei da cidade do México. É muito estranho. É como um patchwork. Um outro processo muito particular do Jean-Luc é filmar-me a falar do argumento e não raro filmar-me com ele. Temos quilómetros de película filmada pelo assistente dele connosco a falar. Depois projecta esse material, visiona-o uma data de vezes, pega numa palavra aqui, noutra acolá. Mas parte sempre dum material não-escrito, de preferência. Porém, depois introduz a escrita no filme, a ponto de a introduzir na própria imagem. Prefere claramente partir da parte direita do cérebro. Talvez para lutar contra o seu próprio espírito que é muito analítico. S. — O Jean-Claude Carrière trabalha com realizadores muito diferentes. Acontece-lhe trabalhar em vários argumentos ao mesmo tempo? J.-C. C. — Não, é impossível. Nem vejo como seria possível. Nem sequer vejo como seria possível dedicar-me a várias escritas ao mesmo tempo. O que é possível é trabalhar durante a manhã para um


argumento — quatro horas, cinco horas é o período máximo de concentração que se consegue — e, de tarde, ensaiar uma peça de teatro, ou fazer montagem. Combinar dois tipos de trabalho diferentes. Também é possível consagrar a manhã à escrita dum argumento e a tarde às correcções finais do filme anterior quando se está na fase do trabalho de auditório. Nunca me aconteceu trabalhar com dois tipos de escrita ou dois projectos escritos ao mesmo tempo. Porque, para cada história que se conta, há uma pulsão interior, um ritmo que a dada altura nos escapa. Sem termos consciência disso, escrevemos duma forma lenta ou rápida e o ritmo deve ser mantido do princípio ao fim do trabalho. Portanto é muito difícil parar, passar para uma coisa diversa que se caracteriza por outra pulsão e por outro ritmo — saltar por exemplo dum filme de duas horas para uma série de televisão de cinquenta e dois minutos e depois voltar para o primeiro. Claro que o cérebro é uma máquina espantosa e o espírito humano consegue performances extraordinárias. Mas o meu cérebro não é capaz de tanto. Pelo menos, por enquanto. S. — Desde a NouvelIe Vague, os realizadores são cada vez mais autores dos filmes. O trabalho do argumentista é vulgarmente identificado com os diálogos que constituem a parte verbal visível. Mas lembro-me de ter visto um filme seu no qual os diálogos eram muito escassos e o conjunto parecia uma encenação da ideia de eclosão do amor, de algo invisível. O Jean-Claude Carrière fazia o papel de veterinário. J.-C. C. — De facto havia muito poucos diálogos. S. — Os animais entravam em pânico porque, de repente, sentiam que se passava qualquer coisa... J.-C. C. — As pessoas, em geral, pensam que o argumentista é o indivíduo que escreve os diálogos e mais nada. Não, o argumentista é um cineasta. Os primeiros filmes que fiz com o Pierre Etaix eram quase mudos, eram apenas uma série de acções — LE SOUPIRANT, YOYO. S. — Sim, mas havia acção enquanto no filme a que me refiro eram simples impressões, imagens. J.-C. C. — L'ALLIANCE pretendia entre outras coisas apresentar-se como uma mulher e um grupo de animais, que sofrem uma certa evolução. Essas relações não são explicadas. O filme era feito de sensações, daquilo que os animais sentiam. Um homem, uma mulher e os animais, do outro lado, como espectadores. Os verdadeiros espectadores eram os animais. Foi um dos filmes mais difíceis que escrevi porque foi preciso resistir à tentação de dar uma explicação e não ser levado pelo medo de os espectadores não 'perceberem. Ora os espectadores captam bem as intenções do filme, até vão mais longe do que aquilo que se julga. Foi o caso de L'ALLIANCE visto que o filme foi muito bem acolhido. Fiquei todo contente por você me falar nesse filme que foi realizado pelo Christian de Challonge. O enredo é inspirado num romance meu. Nunca pensara que esse romance podia ser adaptado para o cinema (e por isso é que o tinha escrito sob forma de romance) porque as relações entre o homem e a mulher são dadas duma forma subtil e pouco explícita. O Christian achou que no romance havia matéria para um filme. Trabalhámos juntos e desenvolvemos imenso o conteúdo do livro. Trabalhámos juntos até na realização. S. — Eu até estava convencido que o Jean-Claude Carrière tinha efectivamente realizado o filme. J.-C. C. — Não, o filme é do Christian de Challonge. Eu nunca teria podido realizar e representar um papel no filme. Aliás, eu fiz o papel porque não tínhamos dinheiro para pagar um actor e o Christian pensou que eu era capaz de representar aquela personagem. S. — Já realizou filmes? J.-C. C. — Não. Só curtas-metragens. S. — Porquê? J.-C. C. — Porque acho que o meu lugar no cinema é como argumentista. Por várias razões. Primeiro porque escrevo fora da área do cinema. Trabalho imenso no teatro (com o Peter Brook há vinte anos) e escrevo livros. Quando se é realizador de cinema, é-se realizador e nada mais. É uma profissão que requer uma devoção absoluta. Não é possível escrever livros ou fazer teatro... está totalmente excluído. E eu sou demasiado curioso para trabalhar só no cinema. Por outro lado, quando se faz um filme em França (ou na Europa; a média é mais ou menos a mesma em toda a parte) é preciso consagrar-lhe três anos de vida. E durante três anos (mas às vezes são quatro, cinco ou mais) é acordar todas as manhãs com a mesma ideia na cabeça, o mesmo filme. Ou seja, é preciso reduzir o real a um filme e acordar todas as manhãs com a profunda convicção de que é esse


filme. Se o realizador abandonar o filme, ninguém mais salvará o projecto do esquecimento. O realizador é um homem com uma ideia fixa, é um homem da obsessão. Eu não sou assim. Sou muito mais disperso, interessado por várias coisas ao mesmo tempo. Em vez de fazer um filme de três em três anos, faço três todos os anos. É uma questão de temperamento pessoal, de feitio, digamos. Alguns cineastas são pessoas obstinadas, mobilizadas por uma ideia fixa; outros são mais curiosos e mais dispersos. Faço parte da segunda categoria. Como realizador ia ser muito infeliz e provavelmente medíocre. O que não quer dizer que nunca venha a realizar um filme. O Alain Cuny acabou de realizar o seu primeiro filme com oitenta e três anos. Portanto, nada é impossível. R. G. — O Jean-Claude Carrière falou-nos da necessidade duma ligação muito estreita entre o argumento e a montagem. Disse também que no argumento deve haver uma marca do estilo do filme. Tem alguma coisa a dizer-nos sobre a relação entre o argumento e a banda sonora do filme? Os diálogos, claro, mas também o som em geral: ruídos, música, etc. J.-C. C. — É um lugar-comum dizer que o som é tão importante como a imagem. É uma evidência. A isso é preciso acrescentar duas observações. Primeira: mesmo no cinema mudo há efeitos sonoros. Em THE NAVIGATOR de Buster Keaton, há um grande plano dum despertador a tocar. E o espectador ouve o toque apesar de não haver som. No plano seguinte, o Pamplinas acorda. Às vezes até há gags sonoros no cinema mudo. O som faz parte do cinema desde o princípio do cinema. Uma pessoa grita, outra pessoa vira-se porque ouviu o grito apesar do grito não se ouvir. Segunda: tecnicamente, o som leva sempre um grande avanço sobre a imagem. O progresso no som precede o progresso na imagem. Houve som sintético antes de haver imagens sintéticas. Recentemente, apareceu o som digital. Pela primeira vez no cinema francês, com o filme do Alain Corneau TOUS LES MATINS DU MONDE. A sala precisa de estar equilibrada para o novo sistema. Tradicionalmente, transcreve-se o som para a banda óptica — chama-se a isso transcrição óptica. O som é gravado em magnético e transcrito para óptico. A perda de qualidade é inevitável. Agora o som é gravado em digital e projectado em digital, portanto o som já não está na película. O som está num disco com leitura laser. Claro que, à partida, coloca-se um problema de sincronização; o acerto tem de ser absolutamente rigoroso. Vi o filme num cinema parisiense e nos intervalos a publicidade era projectada com som tradicional. (Foi no Marignan, o que significa que o som tradicional era de boa qualidade). Quando a publicidade acaba, há uns segundos de silêncio e, a seguir, entra o som digital — o espectador perde a noção do sítio onde está e tem a impressão de estar numa sala mágica. A impressão e a emoção são totalmente diferentes. Ora, a imagem ainda não atingiu esse estádio, embora decerto venha um dia a ter uma qualidade equivalente. Portanto, o som não deve ser negligenciado, tanto mais que está na ponta do progresso. No argumento, os sons devem ser descritos. Há-de reparar nos genéricos finais dos filmes do Buñuel que aparece, em letras pequeninas, a seguinte indicação: efeitos sonoros — Luis Buñuel. O Buñuel levava muito a peito (talvez por ser surdo) a escolha dos sons: passagens de comboio, ruídos de avião, ambientes de cidade, etc. Era uma parte que o preocupava imenso. Eu tenho um método um pouco especial. Em cada cena, trabalho sobre os sons tão minuciosamente como trabalho sobre a imagem. O texto contém forçosamente indicações sobre o tom e a altura da voz de cada réplica, sobre as atmosferas e os ruídos pontuais, etc. Quando o argumento está completamente escrito, faço uma leitura de fio a pavio preocupando-me apenas com a expressividade do som. Desligo-me da imagem e tento ouvir o filme ao lê-lo. O que acontece, em geral, é que descubro uma ou duas cenas vazias no aspecto sonoro, cenas em que nada de interessante se passa ao nível do ouvido. Esta constatação leva-me a procurar elementos sonoros e, muitas vezes, os novos elementos sonoros vão mudar a cena. Por exemplo, recentemente trabalhei um argumento para um filme sobre o Vercingétorix, o herói gaulês que lutou contra o Júlio César. É um filme histórico; se um dia vier a ser realizado terá um orçamento muito elevado. Há uma longa cena, num sítio chamado Alésia onde o exército gaulês cai numa armadilha e é cercado pelo exército romano de César. Júlio César mandara fazer 40 km de fortificações, construídas no prazo de três semanas, à volta do monte de Alésia. É impossível mostrar isso no cinema. Nunca havemos de ter meios para reconstruir 40 km de fortificações. Para resolver este problema, surgiu-me uma ideia: uma cena nocturna, na colina, com duas ou três personagens mergulhadas na sombra e, como fundo sonoro, o barulho ensurdecedor das obras. O


barulho devia ser realmente ensurdecedor porque os 40 km de fortificações implicaram 50.000 homens durante três semanas a trabalhar. Devia ser um ruído infernal. O facto de partir desse barulho, que de certo assombrou os dias e as noites dos gauleses como um pesadelo sem fim, abriunos perspectivas para uma série de cenas. É uma solução económica e foi o som que presidiu à concepção da cena nocturna e por aí fora. R. G. — Eu referia-me também ao problema da banda musical. Muitas vezes tenho a impressão de que a música é imprópria ou redundante nos filmes. J.-C. C. — A primeira pergunta que devemos colocar ao escrever o argumento será sempre: qual é a música que decorre da imagem? Se alguém tocar piano, ouve-se piano. Se alguém ouvir rádio, ouve-se rádio. Esta construção de base é muito útil e, em muitos casos, não é preciso mais nada. Nos seis filmes que fiz com Buñuel, não há música nenhuma. Excepto a música de Schumann que a Tristana toca ao piano, por exemplo. Noutros casos, as coisas podem complicar-se. No TAMBOR de Schlöndorff, lembro-me de ter surgido uma questão difícil de resolver. Era um filme de época, com uma componente «fantástica» — o menino que não quer crescer cuja voz estilhaça os vidros. Esse elemento particular era muito difícil de exprimir de uma forma realista: que grito dar ao menino? Que grito para estilhaçar o vidro? Aos poucos fomos chegando à conclusão de que precisávamos de uma música para alargar o campo sonoro do filme. A partir daí colocou-se outra questão: que música? Foi muito complicado. Falámos com vários compositores, um dos quais teve a ideia de utilizar um instrumento antigo, uma espécie de grande corneta que existe numa zona montanhosa da Polónia. Encontrámos um exemplar desse instrumento raro em Londres. O som do instrumento parecia prolongar o grito da criança mas duma maneira muito mais surda. Toda a música do filme foi composta em torno desses dois elementos: o grito e a trompa. Se me perguntassem que música pressinto para o filme do Vercingétorix, teria de confessar que não sei. Por enquanto, ainda não se pensou nisso. Não há música daquela época. Lembro-me dos problemas que o Jean-Jacques Annaud teve para encontrar uma música para A GUERRA DO FOGO. Violinos e clarinetes num filme sobre a pré-história é algo absurdo e pode mesmo incomodar. Eu gostei muito da GUERRA DO FOGO mas a música incomodou-me. Aquela música de orquestra do Philippe Sarde faz com que, de repente, nos sintamos no «cinema», muito longe da realidade que é mostrada no ecrã. Não há regras. Cada filme coloca problemas diferentes ao nível da introdução da música. Não tenho nada contra os scores musicais à moda antiga como no TERCEIRO HOMEM. Mas precisa de ser muito bem conseguido. O CYRANO DE BERGERAC tem uma bela música. O Jean-Claude Petit compôs uma música que condiz com o filme; é uma música «robusta» que confere ao filme um certo vigor. R. G. — A propósito do CYRANO DE BERGERAC, lembro-me de ter pensado que o protagonista surgia como a encarnação do argumentista. Aquele que fica na sombra. Claro que já lhe devem ter dito isto uma data de vezes... J.-C. C. — É verdade que me disseram isso muitas vezes. R. G.— No fundo é a história do génio que nunca pode colher os louros. Aliás, foi esse o aspecto que mais me agradou no filme porque é uma situação típica no cinema — todos os talentos escondidos. O filme oculta aqueles que o fazem. J.-C. C.— Há muitas coisas invisíveis num filme. O filme é invisível. R. G. — No máximo, o espectador pode ter a ilusão de encontrar no filme a alma do cineasta. Ninguém vislumbra a alma do engenheiro do som ou do montador... J.-C. C. — Quando estávamos a escrever o filme, dizia muitas vezes ao Jean-Paul Rappeneau: «Tu é que vais subir à varanda! Eu e o Edmond Rostand ficamos cá em baixo e dizemos-te o texto em surdina...» Ele subiu à varanda e muito bem. Mas, no fim de contas, aquele que sobe à varanda acaba por não ter sorte nenhuma. Morre na guerra. Quando escolhemos uma obra que já está escrita — como aconteceu com o CYRANO DE BERGERAC — para fazer um filme é preciso, a dado momento, distanciarmo-nos da obra. Se ficarmos presos à obra estamos perdidos porque fazemos um filme que é uma ilustração, um filme segundo e secundário. Uma proposta de trabalho interessante é procurar maneiras de contar o filme. Neste caso, encontrar maneiras de contar o CYRANO DE BERGERAC diferentes da peça. Para além dessa leitura a que aludiu — o Cyrano como encarnação do argumentista — pensamos numa outra abordagem interessante a partir do


mesmo enredo. Tradicionalmente a personagem da Roxanne é uma figura frouxa de que o Edmond Rostand não gostava muito: uma preciosa pouco interessante que só se encontra a si própria no fim, no último acto. Em suma, uma mulher superficial. Uma vez dei comigo a contar a história do Cyrano do ponto de vista da Roxanne, como se a peça se chamasse «Roxanne» e considerando que se tratava da história duma mulher. Nesta perspectiva, é a história de uma mulher que encontrou aquilo que todas as mulheres procuram: um homem perfeito, com todas as qualidades físicas — é muito forte — do espírito — é muito inteligente — e do coração — é muito bom. É um homem perfeito. Só tem um defeito: são dois homens. Se contarmos a história desta maneira, apercebemonos de que é uma história única, o que explica o grande sucesso que sempre teve. É uma história que nos toca profundamente. Há um coração profundo da peça que está escondido pelos ornamentos literários. É esse cerne que nos toca. Visto sob este ângulo, o conteúdo da peça não anda longe dos mitos de Platão, dos mitos da dualidade da natureza humana que não consegue ser uma. Esta leitura representou uma orientação preciosa para o nosso trabalho. Para além da tal do argumentista que fica debaixo da varanda e morre virgem. Era um filme que ninguém queria produzir. Hoje é o maior sucesso de toda a história do cinema francês, ao nível mundial. Já ultrapassámos largamente o EMMANUELLE que até hoje era o filme com mais sucesso. O grande paradoxo desta história é que o maior sucesso do cinema francês é um filme em verso, em alexandrinos. R. G. — Mas a métrica dá um ritmo muito especial ao filme. Mesmo em Portugal, embora a maioria das pessoas não consigam perceber as subtilezas do texto, são sensíveis a uma toada musical. J.-C. C. — A particularidade do CYRANO DE BERGERAC, do ponto de vista da montagem, é que não podíamos cortar uma sílaba. De todos os argumentos que escrevi, é decerto o mais rigoroso porque todos os cortes foram feitos previamente. Porque para conservar a prosódia integral, não podíamos cortar nada. Outra particularidade interessante do filme, poucas vezes mencionada, é o facto de o maior sucesso do cinema francês, nos nossos dias, é um filme em que o último acto é uma dança macabra de um homem que vai morrer e as duas personagens principais morrem virgens. Nunca fizeram amor na vida e dizem-no. É uma morte envolta numa pureza religiosa, quase mística que é o contrário das sexshops e comércios afins. Aliás, essa peculiaridade tinha-me escapado, quando li a peça. Só reparei nela no decorrer da escrita do argumento, Cyrano é um anti-herói, um homem que falha em tudo — a vida, a guerra contra os espanhóis, o amor... É um loser absoluto que morre virgem. Como explicar este sucesso? S. — A importância da cultura talvez seja permitir que descubramos que os valores que julgávamos adquiridos não o são. J.-C. C. — Valores que julgávamos adquiridos ou que julgávamos perdidos. R. G. — Vou entrar no papel de advogado do diabo... O Jean-Claude Carrière não acha que atribuir uma excessiva importância ao trabalho do argumento pode minimizar a margem de manobra na realização. O cinema também é «mise en scène» e também é negociar com o real... até com as condições materiais. J.-C. C. — Mas a «mise en scène» é inseparável do argumento. O argumento já é uma «mise en scène». R. G. — Certo. Mas há uma coisa escrita e há outra coisa que se passa em frente à câmara. J.-C. C. — Claro. Podemos sonhar com o Cary Grant e trabalhar com o Senhor Dupont... R. G. — Entre essa situação limite e as situações habituais há muitos cambiantes. Mas há uma diferença entre o projecto escrito e a sua realização e há uma diferença entre a organização da escrita e a resistência do real. J.-C. C. — Eu costumo dizer que o argumento é o sonho de um filme. Quando escrevemos um argumento, podemos imaginar que dispomos dos meios ideais. E que depois começam as concessões. Por isso é que o filme deve começar com o argumento para evitar a desilusão no período da rodagem. A negociação com o real deve ser encetada antes. R. G. — Continuo a fazer-me advogada do diabo... Será que as concessões são forçosamente más? Não serão nunca produtivas? J.-C. C. — Para isso não há leis. Mas existem «imposições» enriquecedoras. Em vez de ter quarenta personagens e três cenários, tenho que contentar-me com o grande plano dum actor. Os dois


mais belos filmes que vi recentemente — EPOUSES ET CONCUBINES e TOUS LES MATINS DU MONDE — começam com grandes planos de actores. Fica muito barato. Mas nos dois casos, em ambos os grandes planos passa-se uma infinidade de coisas. No filme do Alain Corneau, há portadas que se fecham, sente-se o barulho dos passos, etc. Há uma verdadeira dramaturgia sobre um rosto. Nesse sentido, a necessidade de rodar em grande plano é enriquecedora, pode até levar à descoberta de um estilo que é aquilo com que toda a gente sonha. O mesmo acontece com o exemplo que citei da cena nocturna do Vercingétorix — um trabalho de dramaturgia sobre sons e rostos. E pode ser muito mais expressivo do que ver 50.000 pessoas a construir torres de madeira. Mas mais vale prever essas soluções com antecedência porque é raro haver tempo durante a rodagem. O realizador está cansado fisicamente, está constantemente açambarcado por mil e uma perguntas secundárias e não consegue ter recuo para meditar. Raros são os realizadores que param, paralisam a equipa e tomam tempo para reflectir. O Godard é nesse aspecto um caso raro. Fazer como ele custa muito caro. R. G. — Mas talvez algumas pessoas como o Godard esperem algo de mágico, de improvável, que deve acontecer no momento da rodagem. J.-C. C. — Ele não tem peias em dizer que se sente cansado. Hoje não tenho ideias, não me apetece rodar. E pára. Isto não acontece com muita frequência mas já o vi parar uma ou duas vezes. E não era uma «atitude», era uma reacção sincera. Muitos realizadores «gostariam» de fazer o mesmo, mas não podem porque têm de respeitar um plano de produção. O realizador é obrigado a ter talento todos os dias das 9h da manhã às 6h da tarde. Conheço bem o Bertolucci e visitei-o durante a rodagem de O ÚLTIMO IMPERADOR. Os Cahiers du Cinema tinham-me mandado como enviado especial para fazer uma reportagem sobre a rodagem na China. Falei imenso com o Bernardo sobre o facto de ele realizar um filme com um orçamento colossal e uma rodagem rigorosamente organizada — ele que fora um cineasta comprometido politicamente, comunista, livre-criador. (O Bertolucci tinha um produtor à perna e era obrigado a fazer x planos por dia). Confessava-me ele — «Todas as manhãs ao levantar, desejo ardentemente o feliz acidente que vai transtornar o plano de trabalho e anunciar a vinda dum anjo.» Todos os realizadores desejam o mesmo; conhecem de cor o argumento e o plano de trabalho mas desejam que rebente uma tempestade, um acidente benfazejo. A maior parte das vezes acontecem acidentes nefastos. R. G. — Voltando à sua experiência com o Luis Buñuel. Dos filmes de Buñuel recordo sempre cenas fortes, imagens que são ideias. Não sei se ele era racional ou não, decerto não seria um homem da escrita, mas eu sinto nos filmes dele um lado muito mental. J.-C. C. — Ele não concordaria consigo... R. G. — São imagens fulgurantes. J.-C. C. — Eu estou um bocadinho de acordo consigo mas ele não estaria. R. G. — São imagens fulgurantes que não se radicam na zona da emoção. A obra de Buñuel é globalmente uma obra de combate contra o obscurantismo o que é o contrário de um magma de impressões ou de emoções desordenadas. J.-C. C. — Como em todas as grandes obras, cada pessoa que entre em relação com a obra de Buñuel contribui com um pedaço de si própria. Ao afirmar isso, você está a fazer um retrato de si própria, mais do que de Buñuel. É isso que você vê e ao mesmo tempo fala de si. R. G. — Mesmo assim, vou tentar formular a minha pergunta. O seu trabalho com Buñuel incidia principalmente sobre aspectos da narratividade... J.-C. C. — Quando escrevemos não empregamos esse tipo de linguagem de análise ou de crítica. Quando trabalhamos, tentamos avaliar se uma cena é boa ou não. É a única preocupação que norteia o nosso trabalho. Esta cena é interessante? Articula-se bem com a cena que vem antes e com a que vem depois? Está a mais? É fraca ou excessiva? É longa? É repetitiva? São estas as perguntas que vão orientando a redacção do argumento. Com o Buñuel sabemos que pisamos um terreno com muitas armadilhas. O perigo com o Buñuel é deslizar para o fantástico, cair no excesso, fazer buñuelismo barato. É preciso desconfiar do «fantástico», mesmo ao nível da encenação. O Buñuel queria luzes francas e fortes e bania todos os efeitos de luz que criassem uma atmosfera de mistério. Nada de fantasmas, nada de portas a ranger no argumento. O Buñuel queria ir o mais longe possível


sem deixar de ser real. Uma vez percebida esta preocupação essencial, agarramos na matéria do filme desenvolvendo alguns elementos e excluindo outros. As palavras «narrativa» ou «antiobscurantismo» nunca vinham à baila. Em vinte anos, nunca falámos de ideias. S. — Mas os filmes de Buñuel comentam pessoas e factos. Na cena do poeta assassino, por exemplo, há uma referência evidente ao Breton... J.-C. C. — As referências são múltiplas mas, para Buñuel, a pior atitude perante os seus filmes consiste em tentar explicá-los, esmiuçá-los e emitir juízos definitivos. Detestava que lessem intenções no filme porque achava isso redutor. Escrevemos nove argumentos juntos, dos quais seis foram realizados. Desses seis, há três adaptações de livros — BELA DE DIA, O DIÁRIO DUMA CRIADA DE QUARTO e ESTE OBSCURO OBJECTO DO DESEJO. Nesses três casos, à partida havia um livro, por muito que no decorrer do trabalho o transformássemos ou subvertêssemos. Um livro era um objecto alheio escolhido pelo interesse que algo no seu conteúdo despertava em Buñuel. Em BELA DE DIA todo o «plot» vem directamente do livro, mantido quase na íntegra. O nosso contributo são os fantasmas sexuais que transformam completamente a história. Pela primeira vez na história do cinema, dois homens, dos quais um espanhol, tentavam explorar os fantasmas sexuais femininos. Disso estávamos perfeitamente conscientes. Éramos os primeiros a penetrar no continente negro, num território pouco conhecido e muito delicado. Informámo-nos junto de psiquiatras — o Buñuel tinha muitos na família — falámos com muitas mulheres, Todos os elementos fantasmáticos do filme são verdadeiros. A realidade da BELLE DE JOUR é falsa (é uma ficção de romance) mas o fantasma é verdadeiro — é essa a peculiaridade do filme. Mas a nossa especulação parava aí; daí para a frente a discussão era eminentemente técnica com vista à construção dum conjunto de cenas interessantes. S. — E num filme como O FANTASMA DA LIBERDADE? J.-C. C. — A VIA LÁCTEA, O FANTASMA DA LIBERDADE e O CHARME DISCRETO DA BURGUESIA são três argumentos originais. O único que é um pouco teórico é O FANTASMA DA LIBERDADE. Acho que era o filme que Luis preferia de toda a sua obra. Não gostava muito de falar das suas preferências; dizia que não gostava dos seus próprios filmes. Mas tinha uma secreta atracção por O FANTASMA DA LIBERDADE que significava para ele o fantasma da liberdade do artista; nenhum artista é livre porque se submete a um certo número de imposições, imposições que julgamos imaginar mas que não imaginamos. O princípio de encenar uma história perdendo e retomando constantemente o fio da meada parecia-lhe ser o contrário duma história bem construída. Este trabalho de desarticulação da narrativa atraía-o como um barril de pólvora. Sentia-se no papel daquele que coloca bombas nos alicerces da dramaturgia clássica. Esta intenção acabou por não se concretizar completamente, porque embora tenhamos conseguido desestabilizar a dramaturgia do todo, ela reaparece e organiza o conteúdo de cada cena. É por isso que O FANTASMA DA LIBERDADE é um belo título: mesmo a liberdade de Buñuel é fantasmática neste filme. O filme é uma homenagem a Karl Marx — «Um espectro percorre a Europa. Chama-se comunismo» — mas, ao mesmo tempo, mostra a impossibilidade, para Buñuel, de escapar ao facto de fazer filmes e de os fazer dentro de certos limites — a saber que há cenas, há um princípio, um meio e um fim. Como diz o Godard, é muito difícil fazer um filme que não seja cinema. Essa frase de Godard podia servir de abertura a O FANTASMA DA LIBERDADE. O polícia absoluto é o bocejo do espectador saído do filme, o filme deixa de existir. Imaginei, com o Buñuel, um casal de franceses, de pessoas vulgares — o Henri e a Georgette. Um casal de pequenos-burgueses de quarenta anos que iam ao cinema. Estavam sempre connosco enquanto trabalhávamos o argumento. De vez em ando, um de nós dizia para o outro, imitando a reacção do Henri: «Vamos embora, Georgette. Este filme não é para nós.» Mil vezes, ouvi o Buñuel dizer «Vamos embora, Georgette» — para recusar as minhas propostas. Era um código entre nós que nos obrigava a não ultrapassar um determinado grau de subversão, de provocação ou de liberdade aparente na narrativa. Para além desse grau, corríamos o risco de perder o espectador médio. Se não fôssemos além desse limite, mantínhamos connosco o tal espectador robot, embora ele pudesse ficar irritado ou intrigado com o filme. ANTÓNIO ROMA TORRES — No fim de contas, poder-se-á dizer que existe uma técnica do argumento? Como mencionámos, no princípio da conversa, o cinema português parece ressentir-se


da falta de argumentistas no nosso país. Você trabalhou com autores muito diferentes mantendo as suas concepções absolutamente pessoais. Existe ou não no seu trabalho uma dimensão técnica? J.-C. C. — Há várias respostas a essa pergunta. Primeiro, existe uma técnica do cinema a que o argumentista deve conhecer. O argumentista não pode escrever se não souber como é que a sua escrita se vai transformar em imagens e sons montados. A passagem por uma escola de cinema é muito útil para o argumentista. O argumentista deve participar na feitura de filmes, tirar fotografias; gravar e misturar sons, fazer montagem. De outro modo, será toda a vida um literato perdido no mundo do cinema. Não sei se existe uma técnica do argumento, mas existe uma técnica do filme cujo conhecimento é indispensável. Em segundo lugar, não é inútil ter umas luzes de dramaturgia: analisar peças do teatro clássico e alguns filmes; ler Aristóteles, Boileau, etc. e estudar as grandes leis da arte dramática; conhecer as grandes escolas visto que há muitos tipos de história. Há a história de tipo picaresco, por exemplo, ou árabe, que é uma história errante — Ruy Blas, Tom Jones, D. Quixote — é uma história sempre aberta que recomeça a cada passo, como O FANTASMA DA LIBERDADE. Chega alguém, senta-se na berma da estrada e talvez tenha uma aventura para contar. É o princípio do picaresco, que não tem começo nem fim, e pode durar tempos infinitos como «As mil e uma noites». É um princípio muito antigo que se desenvolveu em todas as tradições. No extremo oposto, temos outra escola — a escola grega e francesa — cuja técnica consiste em concentrar toda a história num só local, num só dia, reduzindo-se a uma só acção. Ambas as tradições são artificiais, nenhuma tem qualquer relação com a vida tal como é. Entre as duas tradições há muitas pontes e matizes possíveis. Não é mau para o argumentista trabalhar sobre os grandes exemplos de ambas as tradições. Em terceiro lugar, o argumentista tem todo o interesse em analisar argumentos de filmes muito diferentes uns dos outros. Todavia, na hora em que alguém lhe disser: «No sexto minuto, tem de haver um golpe de teatro.», o argumentista precisa de ter consciência de que o resultado dessas regras é a série de televisão americana. Ou seja, um produto convencional, bem calibrado, por vezes muito interessante, mas sem grandes variações porque os tempos e as acções são padronizados. Os esquemas desse tipo de escrita são muito conhecidos e estão previstos em função da duração total da obra e de cada episódio. Esses esquemas, bastante úteis para um certo tipo de argumentistas, tornam-se muito perigosos para outros. Como dizia Kant, é preciso conhecermos as regras para nos esquecermos delas. O conhecimento das regras faz-nos ganhar tempo. Para nos revoltarmos contra elas, convém primeiro conhecê-las. E é bom saber como é que os outros conceberam as histórias. Em quarto lugar, devo dizer que nunca dou aulas de argumento. Posso fazer análise de filmes, mas há quem faça isso melhor do que eu. Em contrapartida, acho que o workshop é uma coisa muito útil. A oficina de argumento: reúne-se um grupo de 12 a 14 argumentistas e realizadores (6 + 6, por exemplo) e durante três semanas trabalha-se em conjunto, bocadinhos de cenas, momentos-chave como o princípio ou o fim; há troca de ideias, debates, pequenas filmagens, etc. Este esquema de aprendizagem abre muitas portas a quem pretende ser argumentista. Por exemplo, o argumentista dá-se conta de que o seu papel é parente do papel do actor, coisa que fora do cinema, ninguém imagina. O argumentista é um actor e deve ser capaz de representar uma cena antes de a escrever. Se não for capaz de a representar é porque a cena não está certa nem viva, não é verdadeira, ainda pertence ao domínio da escrita literária. Perante o realizador, o argumentista precisa de representar, mesmo desajeitadamente, é obrigado a visualizar disposições e marcações no espaço — isto é uma prática que se adquire no teatro. Estes exercícios são úteis se forem conduzidos com rigor, isto é, por alguém que saiba observar, comentar, levantar as questões essenciais e fazer críticas construtivas. Todavia, não se trata dum curso teórico mas de aulas práticas. Em vez de partir da teoria dramatúrgica ou dos grandes modelos dos filmes clássicos e de tentar chegar à prática, prefiro partir de experiências práticas e tentar chegar a alguns elementos que se parecem com regras ou leis mas com infinita prudência. Depois de um exercício que durou duas horas, em dez minutos podemos tirar conclusões e dizer que essas conclusões são válidas para o trabalho efectuado durante a sessão, chamando a atenção para o facto de que cada situação de escrita levanta problemas diferentes. A. R. T. — Portanto, o contributo do argumentista não é a estandardização americana ou televisiva. Em Portugal, há cursos dados por brasileiros da televisão...


J.-C. C. — Doc Comparato... A. R. T. — Sim, Doc Comparato. Os realizadores portugueses são argumentistas dos seus próprios filmes... não há muitos argumentistas. J.-C. C. — Não é só em Portugal. No mundo inteiro, há muito poucos bons argumentistas... O realizador é uma personagem mais gloriosa do que o argumentista. É evidente que certos argumentistas têm vontade de passar à realização... mas não têm razão porque há muita falta de argumentistas e não há falta de realizadores. Acontece que a maior parte dos grandes realizadores — mesmo o Buñuel, mesmo o Fellini — precisam da colaboração do argumentista porque o exercício solitário da profissão não basta, não lhes basta. Quando me pergunta — qual é o papel do argumentista? — há-de perceber que não tenho resposta. A resposta é diferente de filme para filme e depende do realizador. A. R. T. — Por conseguinte o papel do argumentista é dialogar com o realizador. J.-C. C. — Não só com o realizador, mas também com os actores, com os técnicos... A. R. T. — Portanto é um papel de estimulação do realizador. J.-C. C. — Sim, muitas vezes é de estimulação. Muitas vezes, pelo menos no meu caso, é obrigar o realizador a fazer o filme que ele quer realmente fazer. Muitas vezes o realizador não sabe exactamente o que quer fazer. Foi o caso em CYRANO DE BERGERAC— obriguei o Rappeneau a elevar-se acima de si próprio. A verdade é que ele nunca tinha feito um filme tão conseguido como este. Aliás eu não fui o único a forçar... muita gente trabalhou nesse sentido: ultrapassar o nível da pequena comédia, ser mais ambicioso. O mesmo se passava, de certo modo, com o Buñuel. O Buñuel sentia-se atraído pela tentação de ser apenas um realizador realista... do estilo André Cayatte. Era preciso combater essa tentação, incutir-lhe confiança, dar-lhe ideias. Esse papel é também o do produtor e por vezes mesmo dos actores. R. G. — Acho interessante essa sua comparação entre o papel do actor e o do argumentista porque consegue subverter completamente o ponto de vista habitual sobre o trabalho do argumentista. Aí cria-se um espaço de revelação a dois (ou mais) que também pode ser mágico. Um pouco como o espaço da representação durante a rodagem em relação ao qual dizíamos que Godard esperava algo de sobrenatural. Ao ouvi-lo, imagino que o argumentista ideal é aquele que transmite ao realizador a certeza de que vai acontecer uma revelação. J.-C. C. — Em todo caso, aquele que tentar criar as condições ideais para que isso aconteça. Quando uma cena está muito bem escrita, um grande actor pode transcender-se. Se a cena estiver mal escrita, se for defeituosa, o actor ficará aquém. Os actores são muito sensíveis à qualidade do material que lhes damos. É todo um conjunto de factores. Lembro-me dum episódio muito marcante do filme DANTON do Wajda. Era uma fita sobre a revolução francesa com o Depardieu; havia o grupo do Danton e o grupo do Robespierre. O Robespierre era o Wojciech Pszoniak,, o grande actor polaco, e todos os actores do seu grupo eram polacos. O Gérard Depardieu contracenava com o Patrice Chéreau e outros actores franceses. Durante todo o filme, havia uma única cena em que o Danton e o Robespierre se encontravam. Era uma cena de refeição que eu tinha escrito. Estávamos em ensaios; havia os dois actores, Wajda, um intérprete e eu no apartamento do realizador. A cena estava escrita e era muito longa, devia durar um quarto de hora. A ideia parecia boa mas faltava qualquer coisa, faltava um contacto. Entre as personagens havia uma mesa e essa insuficiência só se viu na presença dos actores. O defeito vinha do facto de eles não se tocarem. Mas como resolver o problema? A sequência passava-se num restaurante. Propus ao Gérard Depardieu uma improvisação; pedi-lhe que se levantasse da mesa, que se aproximasse do outro actor, que pegasse na mão dele e a pousasse no pescoço, dizendo-lhe: «Estás a ver este meu pescoço, vais ser obrigado a cortá-lo». Isto era apenas uma tentativa mas o Gérard gostou muito da ideia do contacto. Quando executou a proposta, levantou-se, aproximou-se do outro actor mas ajoelhou-se. Ajoelhou-se aos pés do Robespierre, por iniciativa própria. De uma forma muito patética reforçou o sentido da cena. Porque uma coisa é decidir a morte de alguém à distância, outra coisa é matar esse alguém com as próprias mãos. A maneira de pegar naquela mão, de a pousar no pescoço, de dizer «Sentes a minha carne? Vais ser obrigado a cortar este pescoço» resultou numa solução sublime. Neste caso é um trabalho com o actor e sobre o gesto do próprio actor que teve o impulso de se ajoelhar. Acabou por ser um


dos mais belos momentos do filme. Nenhum trabalho cerebral pode surtir este tipo de resultado. Foi o actor que, ao levantar-se, sentiu necessidade de se ajoelhar — era improvável, impensável antes da improvisação. S. — Isso é um tipo de experiência habitual no teatro. J.-C. C. — Claro, no teatro é muito frequente. Faz parte do trabalho de meses de ensaios. O teatro é isso, busca isso, é feito disso. S. — Então o argumento serve para colmatar essa brecha no cinema porque numa rodagem não há tempo para isso. J.-C. C. — É um pouco isso mas o processo de criação no teatro é muito diferente. S. — Durante a conversa, falou-se de subversão. O Jean-Claude Carrière começou com o Etaix e o Tati. Depois trabalhou com o Buñuel e o Malle. Neste seu percurso, sente-se que há um élan muito anarquista. J.-C. C. — Pouco conformista, digamos. Nunca escrevi filmes burgueses, nem sequer parisienses. Não é possível julgar-me a mim próprio, como deve compreender. S. — Mas que visão tem do conjunto do seu trabalho? Mesmo que essa visão não seja objectiva. J.-C. C. — Para que uma história me interesse, tem de haver nela algo de extraordinário, de fora do comum. Esse algo pode até ser fantástico. Já fiz filmes «fantásticos». A crónica do quotidiano interessa-me menos. É uma questão de feitio porque aprecio muito esse género quando é feito por outros. O cineasta que mais admiro na história do cinema é talvez Ozu. É para mim um cineasta magnífico e é o contrário daquilo que em geral me atrai no trabalho cinematográfico. Foi porventura o único cineasta que atingiu uma dimensão verdadeiramente espiritual na sua relação com os actores. Sente-se nos filmes que há algo entre eles que transcende as relações humanas habituais. É um mistério que eu sempre senti nos filmes de Ozu. Um mistério diametralmente oposto àquilo que eu sou capaz de fazer. S. — Era um cineasta de culto. Dum culto de ordem religiosa. J.-C. C. — Da área do zen. Sim, provavelmente essa espiritualidade tinha alguma coisa a ver com uma atitude budista. Mas o caminho que se segue na vida não obedece a um plano. Um argumentista não passa do equivalente do contador na sociedade tradicional que exerce a sua actividade de contador com os meios actuais: o cinema, a televisão, etc. Mas, em boa verdade, o meu trabalho é exactamente igual ao dum contador na praça de Marraquexe em Marrocos. Não falo de mim, é um ponto essencial. A arte dramática é isso: encenar personagens e falar por todas as vozes com a mesma sinceridade, dando a cada personagem a mesma força de viver e de convencer. O modelo de todos os argumentistas é Shakespeare. E um modelo absoluto. Podemos estudar a obra de Shakespeare durante uma vida inteira, nada saberemos sobre Shakespeare. Sobre ele próprio não saberemos se era um homem conservador ou liberal, se preferia a cidade ou o campo, se gostava mais de homens ou. de mulheres... nada. Shakespeare desapareceu totalmente por detrás de cada uma das suas personagens que, sejam elas simples, complexas, atraentes, repugnantes, falam sempre a língua de Shakespeare. E a todos deu génio. O Iago no Otelo tem o mesmo talento que o próprio Otelo, apesar de ser uma figura nefasta. O dramaturgo investe-se completamente nas personagens e desaparece. Digamos que o cúmulo da glória é o anonimato: é quando a voz do autor se transforma na voz dum povo inteiro. Há uma bela expressão de Victor Hugo que fala da «boca de sombra», «o que diz a boca de sombra». O argumentista é uma «boca de sombra» e desaparece com muita facilidade porque o realizador o ofusca e o relega para segundo plano. Mas disso o argumentista não deve queixar-se porque a sua verdadeira função está na sombra. Não deve queixar-se. Pelo contrário. Entrevista conduzida por: A. ROMA TORRES, SAGUENAIL e REGINA GUIMARÃES


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