ESTUFA FRIA MAD TEACHER: O campo é uma região mais ou menos afastada dos grandes centros, onde os habitantes se dedicam à agricultura e à criação de gado. Diz-se que quem decidiu abandonar a cidade para ir viver para o campo optou por um regresso às origens. Diz-se que quem vive no campo está mais próximo da natureza. A natureza é conjunto de todos os seres e forças que formam o Universo e dos fenómenos que nele se produzem; a natureza é também a força activa que estabeleceu e conserva a ordem natural de tudo o que existe. Fala-se de mãe natureza. Mas, ao que parece, a natureza é tanto mais mãe quanto mais virgem for. Alguns estudiosos do sentido dizem que a natureza é o oposto de cultura. Porém, todos sabemos que cultura é sinónimo de cultivo. Agricultores são aqueles que cultivam a terra. Aqueles que se cultivam a si mesmos não são agricultores, são pessoas que aspiram a tornar-se cultas. Para as ciências sociais, a cultura é o aspecto da vida humana que se relaciona com a produção do saber, da arte, dos mitos e dos costumes, bem como a sua transmissão de uma geração para a outra. Para a sociologia, a cultura abrange tudo o que os indivíduos de um determinado grupo aprendem e partilham, sendo que esse conjunto de saberes, hábitos e valores confere um sentido de identidade e pertença a esse grupo. Entretanto, para a biologia, a cultura é uma criação especial de organismos para fins determinados. Recorde-se que a invenção do microscópio veio dar particular relevância à preparação de caldos de cultura. A filosofia tem dado a entender que a cultura é o conjunto de manifestações humanas que contrastam com a natureza ou comportamento natural. Os filósofos encorajam os homens a cultivar a fome de saber e a sede do conhecimento, alertando todos os praticantes amadores contra as aparências enganadoras e contra tudo quanto é da ordem do senso comum, ou seja a suspeitar daquilo que parece ser natural e a duvidar daquilo em que muitas pessoas acreditam. Por outro lado, as grandes religiões - também ditas «religiões do Livro» - fizeram valer a ideia que a natureza ostenta as páginas onde Deus escreve as linhas tortuosas da criação; porém, embora Deus do Livro esteja em todas as coisas e seres, ele está também para além e acima de todas as coisas e seres. Antes de se fixarem no conceito de um Deus único, os homens veneravam as forças da natureza e acreditavam, por exemplo, que uma divindade morava no trovão, outra na fonte, outra no monte, etc. O abandono dessas crenças facilitou a deslocação progressiva dos campos para as cidades - se o Deus único estava em toda a parte, viver longe do monte, não poder beber a água que brota da fonte e construir muitas casas juntas para não temer o trovão, não significava afastar-se de Deus. Os estudiosos da presença do homem à face da terra explicam que a principal característica da cultura é o mecanismo de adaptação, isto é a capacidade de responder e de se defender do meio ambiente através de uma mudança de hábitos. A cultura decorreria pois de uma necessidade de protecção contra a natureza e do desenvolvimento de uma aptidão a mudar mais depressa para responder aos fenómenos naturais. O homem não precisou, por exemplo, de criar pêlos como os ursos ou grossas camadas de gordura como as focas para viver em ambientes mais frios – ele adaptou-se fabricando roupas, inventando o fogo e construindo habitações. A evolução cultural seria pois mais rápida do que a evolução da natureza. Há muito quem ache que o homem não vai conseguir aguentar este ritmo de navegação contra tudo o que o rodeia, inclusive ele mesmo. Há muito quem ache que tudo isto já estava escrito antes de acontecer. E há quem faça gala em pôr tudo em causa, quem não queira pôr tudo em pratos limpos. Há quem prefira ver as coisas fora do sítio e fora de campo. Há quem procure agulhas em palheiro. Há quem arranje lenha para se queimar. Há quem ponha a carroça antes dos bois e até goste de ir pentear macacos. Há quem se meta em maus lençóis para poder dormir ao relento. Há quem meta os pés pelas mãos, os pés ao caminho, as mãos à obra. Há quem aprenda a engolir facas em vez de engolir sapos. Há quem não ponha as barbas de molho, nem meta o rabo entre as pernas. Há quem não mate a pulga atrás da orelha. Há quem se atire de cabeça sem ter as costas quentes. Há quem ferva em pouca água para resistir ao frio. Há quem faça as suas tempestades num copo de água sem nunca deitar água na fervura. Há quem já esteja pelos cabelos e há quem cultive o pêlo na venta. Há quem não faça olhos de carneiro mal morto. Há quem não fique como um boi a olhar para um palácio. Há quem não abandone o barco nem leve a água ao seu moinho. Há quem ande às aranhas e não precise de se armar em carapau de corrida. Há quem
não atire poeira para os olhos. Há quem não cante de galo. Há quem não dê uma no cravo, outra na ditadura, perdão na ferradura. Há quem não enterre a cabeça na areia. Há quem esteja nas suas sete quintas quando fala para o boneco. Em quem fique a ver navios por não fugir com o rabo à seringa. Há quem meta a mão na consciência e a pata na poça. Há quem não meta a viola no saco. Há quem se meta na boca do lobo. Há quem meta o nariz onde não é chamado. Há quem não passe a batata quente. Há quem pise o risco. Há quem gaste latim a pregar aos peixes. Há quem reme contra a maré por estar a rebentar pelas costuras. Há quem queira sair da casca. Há quem não faça negócios da China. Há quem tire palavras da boca. Há quem não tenha papas na língua. Há quem malhe em ferro frio. Há quem não tenha o rei na barriga. Há quem faça teatro. ADÃO - Quando eu era um rapazola, achava que o meu defunto pai não sabia gozar a vida. Todos os dias de pé ao romper do dia. Um ror de horas a trabalhar no campo com um naco de broa no corpo. Às vezes, saía de casa sem tomar a cevada que ficava pronta de véspera. E matar o bicho, carago, só mesmo em manhãs de muito frio. Quase não falava o meu pai. Enfim, era de poucas palavras e, se abria a boca, ladrava, uivava ou gania, ele era conforme. Às vezes, eu chegava a dizer para com os meus botões que ele ia desaprender a falar como tinha desaprendido a ler. Sabia escrever o nome e a coisa parecia-se mais com um gatafunho do que com nome de gente. Em casa, não havia sequer um transístor a pilhas. Aquele sarrabulho do 25 de Abril, só ouvimos falar do assunto pela Tia Belmira, deus lhe dê eterno descanso, que era o telejornal lá da freguesia. E foi uma porrada de tempo depois do Catano ter voado para o Brasil. Eu teria os meus treze anos, por essa altura, e fiquei muito desconsolado ao perceber que já não havia colónias, que não ia matar pretos e leões para África. Sempre tive inveja da farda da rapaziada com madrinhas de guerra e dos aerogramas que as catraias liam à lareira. Não imaginava que aquilo pudesse ser mesmo a sério, com gente a morrer e a voltar sem pernas ou menos que homem. Porque fazer-me homem era a minha grande preocupação. Tinha ficado sem mãe à nascença, com aquele pai a querer à viva força que eu me agarrasse aos livros - mas que livros? o livro era o livro único da primeira, da segunda, por aí em diante até à quarta, e eu nunca fui além da terceira. Tinha metido na cachimónia que zarpava para África, enriquecia por lá e depois voltava cheio de noves fora, com dinheiro para comprar uma televisão, um tractor, um carro e um cavalo como a filha do senhor capitão que era uma moça linda de se ver. O caso é que o meu pai morreu em 1979. Finou-se numa meio de uma bouça nossa onde tinha ido cortar mato para a cama dos animais. E eu, com a minha terceira classe, três enxadas e uma carroça, tive que meter mãos a esta obra desenganada que é cultivar a terra para comer. Muita obra, pouco proveito. E uma vida enterrada ao correr das sementeiras. Com tudo isto não arranjei quem me ature. Fiquei solteiro e agora já não acredito em milagres. A televisão deu volta ao miolo das moças. Tudo quer fazer permanente, andar de unha pintada, ter feriados, férias e arca frigorífica com jantares que basta aquecer no micro-ondas. Não é que eu ache que elas não têm razão, mas a terra não rende o suficiente para essas mordomias. No fim de contas, fui pelo rumo que o meu pai levou. Depois de o ter amaldiçoado vezes sem conta, dou comigo a falar para a vaca e a conversar com esta terra que me há-de comer. É dureza, não se enganem... Andei por romarias e bailaricos à procura de cara metade, mas tudo quanto consegui foi voltar a casa tão bêbedo que nem atinava com o caminho e acordar na cama ainda mais sozinho que na véspera. As mulheres não querem a vida da lavoura e elas lá sabem, elas lá sabem... Porque isto é uma prisão muito grande e ninguém nos agradece o sacrifício. E será que vale a pena criar filhos para lhes dar um par de sapatos uma camisa limpa e muita lenha para se queimarem? Se pudesse recomeçar, acho que tinha desobedecido ao meu pai que deus tem. Havia de emigrar para a França ou para a Alemanha, como os melhores da minha vizinhança. Mesmo que não fizesse fortuna por lá, tinha mudado de ares. Enquanto o pau vai em vem folgam as costas, não é isso que diziam os antigos? EVA - Quando eu era pequena, muito pequena, brincava aos médicos com as bonecas e com os bichinhos que caçava. Arrancava olhos e asas, pernas e patas. Um dia, fechei o hospital e deixei lá dentro uma dúzia de barbies mutiladas... sem esperança de melhoras ou tratamento. Via-me crescer, portanto fui-me fazendo crescida. Inventei então o desejo - pouco original, diga-se passagem - de
ser veterinária quando fosse mesmo grande: fazer de mãe dos animais neste mundo cão, dar guarida a gatinhos recém-nascidos, alimentar cachorros escorraçados. Enfim, tratar de todas as bestas desamparadas, conquanto fossem mamíferos domésticos ou aves canoras. Os répteis e os insectos pareciam-me seres perigosamente arcaicos e absolutamente dispensáveis. Quando, em vésperas de completar dezoito primaveras, confessei a mim própria que não tinha paciência para investir no estudo o muito que era preciso marrar para tirar um diploma de madre teresa das alimárias, mudei de rumo mental e, embriagada de incenso e ecologia, tornei-me freakalhona, vegetariana e advogada do regresso às origens. Não às minhas, claro está, que eu não venho da selva das cidades mas sim do deserto dos bairros suburbanos, onde as árvores e os pardais definham à sombra dos prédios, devorados pelo poder do betão. THE POWER OF CONCRETE. Depois de charrar horas a fio e de limpar zelosamente o pó dos bancos da faculdade de ciências com o meu escultural traseiro durante três anos, acabei por me apaixonar à séria por um cromo que sonhava com uma criação de cabras e ovelhas no cu de judas mais fora do mundo que se arranjasse. Fiz-me legítima esposa do cromo. Os nossos amigos da onça juntaram-se para me oferecer um grande tear de prenda de matrimónio. Autarcia era o nosso lema. Comer verdura da horta. Vestir a lã da tosquia. Lavar-se com água super fria. Viver de ar por economia. Infelizmente, eu não nasci num presépio. O cheiro a estrume dá-me náuseas. Sou alérgica à palha, ao pólen, aos pêlos. Só consigo beber leite magro, pasteurizado e homogeneizado. E o simples som da torneira a correr no pátio não tardou a dar-me cãibras e calafrios. Pois é, eu julgava que o regresso às origens ia ser uma cena quente e aconchegada. Como voltar a entrar na barriga da mãe. Mas essa coisa a que chamamos campo é um lugar desabrigado, inóspito, exposto a tormentas e a bicharocos ameaçadores. Sem falar do silêncio, por vezes de cortar à faca. Porém, de todas as más recordações que guardo da nossa vida campestre, o frio é a primeira que me surge e seguramente a pior. Dormir vestida dos pés à cabeça, acordar de nariz e pés gelados, pinchar no meio das correntes de ar para conseguir sentir as pernas... não, não tenho andamento para ser a ponta visível do iceberg. Dizem que o frio conserva. Não duvido. Mas a vida é uma espécie de doença, basta levantar um calhau e observar o que mexe e pulula lá por baixo para perceber isso. Custou-me horrores abandonar o cromo do meu marido. Foi uma traição imperdoável deixá-lo a contar carneiros ao acordar e carneiros para adormecer. Um dia, ao falar com a minha vizinha - morava a mais de 2 km mas era a mais próxima... - de um cabrão de um GNR lá do sítio que tinha feito a folha à mulher, pus-me a olhar com atenção para a cara da gaja. Teria uns trinta e tal anos, a gaja. Qualquer pessoa lhe teria dado mais de cinquenta. Nesse dia fiz as malas e pus-me a milhas. JOSÉ - Trezentos e sessenta e cinco. Foi o número que me saiu na rifa, igual aos dias que um ano tem. São muitos, os dias, e eu há muito que deixei de os contar. Isso é bom para quem tem esperança. Ora eu cá não. Só tenho certezas. E, para além da morte, que é certa, sei que daqui não há-de sair o homem que aqui entrou. Não que eu não conte sair daqui um dia. Mas isso não conta, já não conta para nada. A bem dizer, eu já morri. Morri na hora em que matei. Ele matou-me. Quer dizer, ele matou-me aquele filho da puta. Não lhe bastava ter-me feito a vida num negrume quando me lembro do ódio que lhe tinha, ainda sinto um calafrio na espinha... Não bastava a mulher que me roubou, as águas que todos os dias me furtava, a sombra que me fazia sempre que vida lhe corria de feição e sempre assim foi, sempre... Tinha de roubar-me a própria vida, o sacana. Também sei que vou arder no inferno. Mas havemos de arder juntos. Se existir uma lei e uma justiça acima dos homens - que são fraca loiça, quase todos eles, lá isso... -, as chamas serão tantas e tão altas que até os pés dos anjinhos hão-de ficar chamuscados. A doutora Assunção aconselhou-me a não falar assim. A não falar assim da minha vítima. Homessa, vítima o tanas...! Vítima, aquele canalha? A única coisa de que me arrependo é de lhe ter simplificado a vida. Teve morte santa e rápida que a minha sachola foi certeirinha na mona do traste. Eu devia ter feito aquilo a sangue frio. Não para matar. É muito cómodo ir desta para melhor sem ai nem ui. Sem alombar com a velhice a chuparlhe as carnes e a roer-lhe os ossos. É fácil de mais. O cabrão havia de me ter ficado sem pernas. E com tudo o resto no sítio. Eu ia dentro na mesma - menos tempo, aqui entre nós, e abençoado seria esse tempo - mas o gajo, aleijadinho e com todas as suas faculdades, era mais prisioneiro do que eu.
Com a mulher a pôr-lhe os cornos e os filhos a rezarem para o pai não durar muito. A doutora Assunção fala caro. Também, com o salpicão que o meu irmão lhe traz e as garrafas de vinho fino que a minha mãe por ele manda, não é caso para menos. Fala de serenidade. De sincero remorso. De reinserção. Isso de reinserção, não sei o que vem a ser. Algum subsídio da CEE... será? Eu mal a ouço, seja como for. Ela fala e eu, diante dela, é como se ouvisse uma cantiga cantada em americano a passar nos discos pedidos. Às vezes, até me dá ganas de... de lhe pedir que se cale. Diz que o meu padrinho - é nosso primo em terceiro grau, pelo lado do meu pai - lhe recomendou que me acalmasse. O meu padrinho é gente fina. Anda lá pelos governos em Lisboa e pode muito. Porém não tanto que consiga livrar um assassino, está visto. Assassino, não ladrão, nem traidor, nem mentiroso. Eu avisei o gajo. Em diversas ocasiões. No dia em que o gajo me roubou a noiva, avisei-o bem avisado. Ela era o sol da minha vida. Era minha desde que me conheço. Não casou contrariada, diz o povo. Casou contra a natureza, digo eu. Que sou um homem de palavra. A prova é que estou aqui a cumprir uma promessa. A mulher era minha, as águas eram minhas. A sachola, fui eu que a afiei na pedra de amolar. E a hora de ele morrer foi a minha hora. Estou aqui porque me entreguei à polícia. Ainda o sangue dele não tinha secado, já eu estava na esquadra. A minha pobre mãe nem me quer ver. Acha que eu ensandeci. No fundo, prefiro que assim seja, o desgosto talvez lhe pese menos. Fiz mal o que devia fazer, mas não fiz mal em ter feito o que fiz. Ninguém compreende, paciência, eu cá me arranjo com a minha consciência. Trezentos e sessenta e cinco dias por ano para ruminar a minha história. E cada instante que passa me dá razão. Carradas de razão... ROSA - Nasci velha. Não sei é caso de rir ou de chorar, isto de ser velha à nascença. Mal a minha mãe viu que eu me aguentava nas perninhas, foi um ver se te avias: tratou logo de me pôr a tomar conta do irmão que veio a seguir a mim. Mudar e lavar fraldas. Embalar e entreter. Acordar a meio da noite para meter a chupeta na boca do crianço, não fosse a casa ir abaixo com o berreiro. Depois desse irmão, chegaram outros e outras. E eu de ama-seca durante anos e anos. Entretanto, tudo medra, a canalha como a erva. Aos doze eu já deitava um corpo de dezoito e não me faltavam pretendentes. Mas o tempo de namoriscar, onde estava ele? Levantava-me para ir dar erva aos coelhos, deitava-me depois de ir dar a lavagem aos porcos. Entre deitar um olho à sopa, remendar roupas, fazer barrelas se passavam os meus dias. Acho que era mais esperta do que os meus irmãos. Foi enguiço a minha mãe ter-me parido antes dos outros... Quase não fui à escola, embora saiba ler. E hoje é o que me vale. Ando sempre a pedir livros emprestados às catequistas para matar o tempo, agora que a casa está vazia e me faltam as forças para fazer o pedaço de terra que me coube. Às vezes não sei se são as forças que minguaram ou se é a falta de força de vontade que me traz pregada a uma cadeira. Não tenho grandes motivos de me alevantar e há dias em que, só de ver gente, faz-se-me um escuro na cabeça que tenho de rezar uma dúzia de terços de seguida para me atordoar. Depois de criados os irmãos - e foram oito, embora dois não tivessem vingado -, estive perto de três anos à cabeceira da minha avó e tive de ver o meu pai definhar ao mesmo tempo que a mãe dele se finava. Restavam duas mulheres em casa, um homem de quem era preciso cuidar, bichos a sustentar, terras a fabricar. A morte acabou por varrer as causas maiores da minha canseira e deixou-me para aqui, sem jeito, à espera sabe deus de quê. O senhor padre diz que é preciso ter paciência. Terá uns trinta e tal anos, o senhor padre, podia ser meu filho. E fala de paciência como se me desse alguma novidade. Pudesse ele sentir, durante uma noite que fosse, o frio que me vai cá dentro, não se atrevia a chamar pecado àquilo que eu sinto. Pecado desprezar a vida que deus nos deu e só a ele pertence? Eu acredito no juízo final e passo muitas horas a magicar no que vou contar se a minha alma for a tribunal e me autorizarem a abrir a boca. É pecado ter maus pensamentos, eu sei. Mas alguém me deu razão e maneira de ter pensamentos bons? A vida não é um desterro para toda a gente. Há muito quem a goze sem o menor merecimento. E há muito quem goze porque pode gozar com a cara de quem goza menos. O senhor padre julga que eu estou zangada com o mundo. Não, isso não é verdade. Dou-me bem com as galinhas. Deito-me com elas e com elas saio da cama. Irmãos e irmãs voaram para longe, enquanto a capoeira foi ficando. Mal a porta se abre, é um corrupio e uma felicidade. Não são esquisitas no comer, não chegam a velhas porque acabam na
panela. E lá vão dando ovos, quer faça chuva, quer faça sol... No tempo das geadas, trago sempre uma para dentro. Sento-a ao meu colo e é ela que me aquece e me faz companhia. Se deus não as tivesse criado tão cagonas e mijonas, mudava a capoeira para a minha cozinha. Não são estúpidas, as galinhas. São bichos presos à casa. Como eu. Não são donas de si, nem donas do seu viver. Como eu. Têm asas, porém não podem voar. Como eu... ARMÁRIO/BOCA - Quando eu era um rapazola, achava que o meu defunto pai não sabia gozar a vida. Brincava aos médicos com as bonecas e com os bichinhos que caçava. Nasci velha. Não sei é caso de rir ou de chorar, isto de ser velha à nascença. Paciência. A bem dizer, já morri. Morri na hora em que matei. Andei por romarias e bailaricos, mas tudo quanto consegui foi voltar a casa tão bêbedo que nem atinava com o caminho e acordar na cama ainda mais sozinho que na véspera. Autarcia era o nosso lema. Comer verdura da horta. Vestir a lã da tosquia. Lavar-se com água super fria. Viver de ar por economia. Infelizmente, eu não nasci num presépio. Levantava-me para ir dar erva aos coelhos, deitava-me depois de ir dar a lavagem aos porcos. Entre deitar um olho à sopa, remendar roupas, fazer barrelas se passavam os meus dias. Se existir uma lei e uma justiça acima dos homens - que são fraca loiça, quase todos eles, lá isso... -, as chamas serão tantas e tão altas que até os pés dos anjinhos hão-de ficar chamuscados. A televisão deu volta ao miolo das moças. Tudo quer fazer permanente, andar de unha pintada, ter feriados, férias e arca frigorífica com jantares que basta aquecer no micro-ondas. Pois é, eu julgava que o regresso às origens ia ser uma cena quente e aconchegada. Como voltar a entrar na barriga da mãe. Mas essa coisa a que chamamos campo é um lugar desabrigado, inóspito, exposto a tormentas e a bicharocos ameaçadores. Sem falar do silêncio, por vezes de cortar à faca. É pecado ter maus pensamentos, eu sei. Mas alguém me deu razão e maneira de ter pensamentos bons? A vida não é um desterro para toda a gente. Há muito quem a goze sem o menor merecimento. E há muito quem goze porque pode gozar com a cara de quem goza menos. O meu padrinho é gente fina. Anda lá pelos governos em Lisboa e pode muito. Porém não tanto que consiga livrar um assassino, está visto. Assassino, não ladrão, nem traidor, nem mentiroso. Não é que eu ache que elas não têm razão, mas a terra não rende o suficiente para essas mordomias. No fim de contas, fui pelo rumo que o meu pai levou. Depois de o ter amaldiçoado vezes sem conta, dou comigo a falar para a vaca e a conversar com esta terra que me há-de comer. É dureza, não se enganem... Dizem que o frio conserva. Não duvido. Mas a vida é uma espécie de doença, basta levantar um calhau e observar o que mexe e pulula lá por baixo para perceber isso. Não são estúpidas, as galinhas. São bichos presos à casa. Como eu. Não são esquisitas no comer, não chegam a velhas porque acabam na panela. E lá vão dando ovos, quer faça chuva, quer faça sol... No fundo, prefiro que assim seja, o desgosto talvez lhe pese menos. Fiz mal o que devia fazer, mas não fiz mal em ter feito o que fiz. Ninguém compreende, paciência, eu cá me arranjo com a minha consciência. Se pudesse recomeçar, acho que tinha desobedecido ao meu pai que deus tem. Havia de emigrar para a França ou para a Alemanha, como os melhores da minha vizinhança. Mesmo que não fizesse fortuna por lá, tinha mudado de ares. Enquanto o pau vai em vem folgam as costas, não é isso que diziam os antigos? Dormir vestida dos pés à cabeça, acordar de nariz e pés gelados, pinchar no meio das correntes de ar para conseguir sentir as pernas... não, não tenho andamento para ser a ponta visível do iceberg. Às vezes não sei se são as forças que minguaram ou se é a falta de força de vontade que me traz pregada a uma cadeira. Não tenho grandes motivos de me alevantar e há dias em que, só de ver gente, faz-se-me um escuro na cabeça que tenho de rezar uma dúzia de terços de seguida para me atordoar. Trezentos e sessenta e cinco dias por ano para ruminar a minha história. E cada instante que passa me dá razão. Carradas de razão... CANÇÃO Bailando te procurei nos braços de outros dançavas. Como roubar-te não sei a esses a quem te davas.
Por ti revolvi a terra por ti me fiz emigrante... Fugido andei de uma guerra que julgavas infamante. REFRÃO E agora que a ti regresso ainda na flor da idade, só a ti quero e a ti peço mais uma oportunidade. Por ti semeei pomares campos de milho e vinhedos. Ó meu amor não repares nos calos destes meus dedos. Por ti me fiz hortelão entre lameiros e eiras E foi este coração que lavrou as minhas jeiras. REFRÃO E agora que a ti regresso ainda na flor da idade, só a ti quero e a ti peço mais uma oportunidade. Um belo dia bordaste com dizeres de amor um lenço. Melhor do que eu explicaste aquilo que de ti penso. Esse lenço que me deste no meu bolso tem morado. Fiel ao que lá disseste sou eterno namorado. REFRÃO E agora que a ti regresso ainda na flor da idade, só a ti quero e a ti peço mais uma oportunidade. Não sou rico, minha amada, lavrador não enriquece. Grande é sua empreitada mas não ganha o que merece. Se és como eras dantes a pobreza é um mal menor. Felizes são os amantes que vivem do seu amor.
Cada frase deste texto será dita a um ritmo cada vez mais vertiginoso por um actor diferente. Os actores circulam, caminhando muito depressa e pesadamente pelo espaço, como carrinhos de choque aos encontrões... HOMEM DE CHOQUE: O meu coração é uma pista. Uma pista de carrinhos de choque. Ele é mais uma corrida mais uma viagem. Mais uma corrida, mais uma vertigem. Dá-se bem com solavancos. Dá-se bem com travagens e acelerações. Precisa de andar aos encontrões. O meu coração, colado ao chão, está lançado numa corrida desenfreada. O meu coração corre em busca de outros corações. E ele é PIM PAM PUM ZÁS CATRAPÁS e PUMBA e PIMBA. Sempre colado ao chão. O meu coração não voa. Ele rasteja. Mas rasteja depressa. O meu coração rasteja para sobreviver. Atenção, come depressa o teu gelado que ele vai derreter. Uma ficha um euro. Uma ficha um herói. Oito fichas cinco euros. Dez fichas seis heróis, é pegar ou largar que a barraca vai fechar. O meu coração é de feira, é de pregão. Mais uma corrida, mais uma vertigem. O meu coração é fuligem do fogo central. O meu coração é intoxicação. Olha o gelado a derreter, segura bem no pau. O meu coração faz barulho. Faz muito barulho. Geme, chia, range. Ruge, muge, guincha. E uiva: aúúú, aúúú. O meu coração bate. Bate desenfreadamente. O meu coração é uma canção sem letra. Uma canção fechada numa caixa. É uma caixa de Pandora. Olha o teu gelado, estás todo borrado nas beiças. O meu coração arrasta-se. Ele rói-se por dentro, que rato mais filho da puta. O meu coração é rato e ratoeira. O meu coração é isco. Mais uma corrida mais uma viagem. Pede-se à amável clientela que não atravesse a pista. Uma ficha um euro. É favor dirigir-se à bilheteira. O meu coração é papalvo. É parolo. É papa-açorda. O meu coração é pimba. E CATRAPUMBA, leva que já almoçaste. O meu coração não tem papas na língua. E tem língua de perguntador, o estupor. O meu coração fala línguas estrangeiras que eu não percebo, caralho. Também fala português com sotaque. O meu coração, ai que lhe dá um ataque, tiquetaque, tiquetaque. O meu coração é foleiro. Tem bicho-carpinteiro, Tem escaravelho merdeiro. Ai, coração, coração que não tens parança... Da próxima vez, meto-te o gelado pelo cu acima, ó prima. Eu é que te lambia e comia-te toda. O meu coração anda à roda. Ele gira e rodopia e arredonda a saia. O meu coração é de homem às direitas. É de mulher às avessas. É de pressas e de tiques e de baques. É besta para todos os combates. Besta-quadrada em terra redonda. O meu coração quer ir na onda, mas fica na praia. Não há nada que lhe valha. Não há ninguém que o queira. É meu e de todos a toda a hora. Porque um homem não chora. Porque uma mulher é só manha e ronha. E séculos de vergonha. O meu coração acredita no que lhe dizem. E paga para acreditar. O meu coração abre-se de par em par e grita num galinheiro. O meu coração faz de conta em vez de deitar contas à vida. O meu coração é uma barata tonta. É mosca, é lesma, é formiguinha no carreiro. O meu coração, vendido às postas, podia ser o teu jantar. Onde está ele, o morcão? Onde está ele, o cabrão? Anda perdido, o meu coração. Anda perdido da cabeça. Ai coração, para que te quero? O meu coração é pesado. É carne para canhão de um amor que eu nunca tive. O meu coração sobrevive. Ele rasteja. Ele fica à tona. Fica à espera que lhe pisem os calos. E que lhe limpem o sebo. E que lhe tirem a tosse. O meu coração é como se não fosse... É como se não fosse meu. O meu coração caiu do céu aos trambolhões. O meu coração não tem travão. O meu coração não tem direcção. Mais uma corrida, mais uma viagem. O meu coração é um vadio sem vadiagem. O meu coração pede perdão por ainda aqui estar. O meu coração pede para ser castigado e depois perdoado. O meu coração pede para recomeçar.