EU SONHO, TU SONHAS, ELE PESADELO A matéria dos sonhos e a matéria do cinema são parentes, já se disse. Ora mais afastados, ora mais próximos, já se percebeu. A nossa ignorância acerca dos sonhos, que por vezes reveste formas de apetite de saber, limita o conhecimento que conseguimos ter do que se passa com as imagens cinematográficas. Porém, fugindo à postura daqueles que se julgam aptos a analisar os comportamentos do público, o espectador que eu, tu e ele somos, pode, à revelia dos filmes consumidos (?), examinar, para proveito próprio, as alterações que os mesmos filmes consumam nas nossas vidas ou na ideia que delas concebemos. Não sei se o método será academicamente aceitável, mas, em todo o caso, parece-me evidente que a isso nos convidam os filmes de Resnais. A primeira vez que esta hipótese me surgiu a propósito de Resnais foi quando observei a reacção de uma pessoa que me é próxima na sequência da visão de NUIT ET BROUILLARD (obra que, aliás, pessoalmente nunca vi, facto lamentável...) e constatei que, para além da força simbólica do holocausto, a inteligência de certas coisas que se sabem entra em crise de desconstrução quando confrontada com uma elaboração do conhecimento produzida por outrem, num processo de interacção semelhante àquilo que acontece sempre que relembramos os nossos sonhos e eles nos interpelam como se tivessem sido sonhados por outra pessoa. A frase foi longa e a asserção porventura manca, mas é desse coxear que aqui se fala, ou seja, do inelutável handicap com que abordamos sonhos e filmes. MURIEL, que no meu entender é o mais buñueliano de Resnais (um Buñuel mais político e menos social... mas significativamente o cineasta hispano-universal lidava de bom grado com os relatos oníricos), revela-se uma obra interessante nesta perspectiva porque trata ao mesmo tempo da precariedade lógica, e equivalente sobrecarga irracional, das relações humanas e da acumulação de objectos nos cenários do nosso quotidiano, objectos aparentemente inanimados que constituem outras tantas caixas de ressonância para o imaginário de todos e de cada um. O apartamento atravancado de antiguidades de MURIEL é também uma representação justa e incómoda do corpo que habitamos, acumulação de órgãos, inextricável tecido em cujos fios circulam incessantemente sensações, prazeres e dores. Como nos sonhos, aquele espaço é improvável, ilimitado, provisório e provisoriamente mobilado, sítio de ir, de vir e de partir, cenário dado como cenário. Cenário portanto de corpo presente e ausente, sonho de corpo em que o corpo deixa de o ser para se tomar tão só casa de sonhos. Por tudo isto MURIEL é um «instante» extremamente angustiante sobre a transitoriedade das guerras e dos amores que, apesar da sua efémera natureza, deixam marcas, quanto mais não seja na interminável película da memória onírica. A própria cidade em MURIEL tem um ar de fortaleza à espera dum novo bombardeamento, o último pesadelo, esse ainda do corpo que a morte não surpreenderá.
Conversando com Antoine Bonfanti que foi responsável pela sonoplastia neste trabalho de Resnais, descobri que a equipa artística optara por acessórios cénicos de madeira verdadeira para que as personagens se movessem e se ouvissem no ventre de um grande instrumento acústico. Será por isso que nos fica de MURIEL a impressão dum drama representado dentro dum caixão ou será antes a voz do outro mundo da bela Delphine Seyrig que para lá nos transporta muitos anos antes da sua triste partida? A grande loja do mundo é, como a sua, uma montra de antiguidades que toscamente transformámos em casa nossa. As personagens de Resnais são crianças perdidas e achadas no labirinto, na floresta, no laboratório, no estúdio, na câmara escura. Porque o lar para onde pretendemos regressar NÃO EXISTE. R. G.