FECHEI OS OLHOS E VI Para a minha filha Absinte, em maré de tempestade de amor Som: Um interminável galgar de degraus. Na escuridão das escadas: Jaime (aterrado) — Mónica! Está muito escuro! Não vejo os degraus, Mónica... Mónica (desenvolta) — No escuro é que eu vejo melhor. Vejo com as mãos, vejo com os pés e com os olhos que tenho dentro da cabeça. Jaime — Mas a mãe disse que não podíamos... Mónica — Ó Jaime, as mães dizem sempre que não podemos isto ou aquilo. Jaime — E se cairmos pelas escadas abaixo e fizermos um galo como ela disse...? Mónica (sentenciosa) — As mães mentem muito. Para o nosso bem, claro. Não vês corno eu minto às minhas bonecas? A mãe também costuma prever que os galos que fazemos na testa depois vão cantar. Já ouviste cantar um galo desses? Jaime (veemente) — Dentro da cabeça, já. Som: Longo ranger de porta A luz sobe com a progressão do som, revelando um cenário de acro atravancado de trastes: um velho manequim de costureira, 11111(1 roda de bicicleta solta... uma enorme mala de viagem. No fim a luz não deve ultrapassar uma penumbra cinzenta. Mónica — 'Tás a ver, Jaimito? É a mala do tio Mateus que caçava ele rantes. Aquele que tirou um dente a sangue frio e bebia um litro de água quente ou aguardente em jejum para matar o bicho • da barriga. Jaime —Achas que ter armas lá dentro? Mónica — Não sei... só abrindo... Jaime - E se houver um ninho de ratos... ai... Mónica — Então tu pediste um hamster à mãe e tens medo dos ratos do sótão? Eu levanto a tampa e espreito. Tu podes fechar os olhos, se quiseres. Mónica junta o gesto à palavra. Do interior da mala, salta um génio, bonacheirão e vestido de marinheiro, envolto numa nuvem ofuscante de pó e luz. Os miúdos ficam estarrecidos. Génio da Mala — Bom dia, boa noite, feliz ano novo, parabéns a você, que conte muitos e bons, que horas são, estou com urna fome dos diabos, o que é que há para jantar, não me digas que é outra vez guisado, e para a sobremesa quero morangos com açucar e sumo de limão... Bolas! Precisava de falar ou rebentava. Vinte e sete anos fechado nesta arca?!! Isto não é vida de qualidade para um génio da minha idade... para um génio da minha marca... Jaime — Você... você é o tio Mateus? Génio da Mala — Tio? Os génios não têm- família, seu fedelho malcriado. Nem rei nem roque, nem eira nem beira. Mas estão sempre prontos para a brincadeira. Para gozar temos a vida inteira... aliás várias vidas porque a nossa vida é muito compriiiiiida!!! Jaime — E como se chama o Senhor Génio? Génio da Mala — Não sou o Génio do Mal... sou o Génio da Mala porque durmo longas sonecas nas malas que encontro abertas. Esta última... foi sem querer... trabalhava eu a bordo dum grande paquete, quando urna tarde, depois dum almoço avantajado com várias pratadas de guisado, deu-me uma soneira de cair para o lado. Desci ao porão onde todas as bagagens estão, meti-me dentro desta e vamos a isto... que é festa. Jaime — Então não chegou a comer a sobremesa? Génio da Mala — Claro que não, grumete. Marinheiro que labuta em grande paquete não come doce, só come amargo e salgado. Trabalha de sol a sol, mal dormido e pior alimentado. Jaime (boquiaberto) — E só comem guisado lá nos barcos? Mónica — Ó Jaimito, há coisas mais importantes do que a comida. O Senhor Génio deve ter imenso poder. E, se lhe apetecer, manda vir morangos, frangos, orangotangos, mangas, tangas e missangas, camisas com mangas e sem mangas.
Génio da Mala —— A menina está redondamente enganada. Enfim, redondamente é palavra errada, porque você é muito escanzelada. Come menos que o seu mano, com toda a certeza. Se calhar às vezes nem chega à sobremesa. Nós os génios apenas realizamos os desejos das pessoas de quem gostamos. Jaime — E não gosta de nós? Génio da Mala — Isso eu só vou saber ao certo, quando um de vós me disser um desejo secreto e eu tornar concreto e visível esse vosso sonho impossível. E se o vosso sonho não se tornar realidade, é porque eu não vos tenho amizade. Jaime — Quero um casal de hamsters numa gaiola doirada corno aquela que o imperador da China ofereceu ao rouxinol... Jaime não tem tempo de acabar de formular o desejo: um clarão ofuscante anuncia o aparecimento súbito duma gaiola "imperial" com os respectivos hamsters. Mónica — A mãe vai-te comer vivo! Não estás farto de saber que ela não te deu os hamsters porque tem medo que se pela de ratos! Como é possível incomodar o Génio com um desejo tão estúpido?! Génio da Mala — Qualquer desejo pode ser inteligente se, depois de concedido, a pessoa ficar contente. E o Génio da Mala adora contentá-la. Mónica — Então \agora sou eu a desejar. Ó Jaimito, e se pedíssemos para conhecer o tio Mateus da garrafa de água quente? Clarão intensamente azul. O tio Mateus, vestido à explorador e visivelmente ébrio, tem alguma dificuldade em debitar um discurso coerente. Tio Mateus (por entre soluços e arrotos) — Botija de água quente e garrafa de aguardente... Foram as águas que me conservaram (hic)... Génio da Mala — Veja lá o que ensina aos seus sobrinhos queridos. Se não tem tento na língua, volta já para o inferno dos elefantes ofendidos. Tio Mateus — Não, não, estou farto de lá estar. Fui condenado a dar-lhes caça noite e dia. Emagreci tanto que ando a nadar nas calças. (Mostra as calças largas de mais.) Ó Mónica, tu não és nada parecida com a tua mãe!? Mónica — Ainda bem. Ela é uma cobardolas, coitadinha. E eu quero ser uma aventureira, para verde perto as zebras, os cactos gigantes, os vulcões, os galeões afundados, os extra-terrestres... (Vão aparecendo os objectos enumerados em miniatura.) Tio Mateus — Ai, minha filha, que canseira. (hic) Isso não é vida para uma menina... Jaime (largando por uns instantes a gaiola e os hamsters que não se cansa de contemplar) —(5 tio, olhe que a Mónica sobe as escadas às escuras e tudo. E dá cada soco que depois o gaio até canta. Tio Mateus (juntando o gesto de empurrar o líquido com o polegar à expressão consagrada) — Às escuras, nunca andei. E a noite fez-se para dormir!... As próprias galinhas, que são tão estúpidas, percebem isso. Mónica (decepcionada) — O tio Mateus, afinal, o senhor é que ainda tem algumas parecenças com a mamã... Tio Mateus — Desiludi-te (hic) Mónica? Deixa lá, eu sempre fui a ovelha ranhosa da familia. E depois... sinto-me muito cansado. Cansei-me de viver e agora já me sinto cansado de estar morto. (hic) Estava a ganhar coragem para pedir ao vosso Génio que me arranjasse urna cunha: dava tudo para ser transferido para outro inferno. Mais calmo. E sem elefantes. Tio Mateus desaparece instantaneamente deixando um rasto de filmo. Os putos, estupefactos, nem se atrevem a bulir: Génio da Mala — Eu não tenho mau génio, atendo todos os pedidos. Lá foi o velhote parar ao purgatório dos caçadores arrependidos. As penas dos cativos são menores: em vez de darem caça às presas de outrora, são os bichos que os perseguem a toda a hora... Jaime (escandalizado) — E acha que é melhor? Génio da Mala — Depende do animal perseguidor. Se forem tartarugas a perseguir o condenado, ele pode dormir o dia inteiro descansado. Mas se for perseguido por esquilos, cada dia perde vários quilos.
Jaime — Ó Mónica, foste muito bera para o tio Mateus! Mónica — Pois é... mas às vezes os desejos sonhados são mais bonitos do que os pedidos concedidos. Jaime — Posso pedir mais outra coisa? Génio da Mala — Está bem, peça depressa e sem hesitar. Mal a sua mãe chegar, eu tenho de me eclipsar. Nós, os seres geniais, somos quase imortais. Porém, se alguém duvidar que existimos, logo sumimos. Mónica — Também vale eu combinar um pedido com o meu irmão? Seria engraçado se desejássemos o mesmo ao mesmo tempo. Aliás, tenho a impressão de que ele sabe desejar melhor do que eu. Jaime e Mónica têm uma curta troca de impressões em voz baixa, gesticulando abundantemente. Entretanto o Génio da Mala, com um ar enfadado, saca um pente e um espelho das profundezas da arca e .faz penteados grotescos e caretas de toda a espécie. Jaime — Senhor Génio... Senhor Génio, estamos prontos. Queremos navegar na Via Láctea e assistir a urna tempestade de estrelas. Louca agitação multidireccional de luzes estelares. O Génio, meio amuado, queda-se a um canto, sentado à chinês. Jaime — Mónica, dá-me a mão. Mónica — Não sejas medricas. Alguma vez viste coisa mais linda? Jaime — Ai, não sei é se volto a ver os meus ricos hamsters... Nem tive tempo de escolher nomes para eles. Mónica — Dá-lhes nomes de estrelas... Sirius e Vega, por exemplo. Eu não me importo de ser madrinha. Jaime — E ajudas-me a comprar comida com a tua mesada? Eles são pequenos, mas comem que se fartam. Mónica — Isso vê-se depois. Prometo que te ajudo a escondê-los para não apanhares um raspanete. (Quase gritando) Estica o braço Jaimito! Vamos apanhar poeira de estrelas. Para enfeitar as paredes do nosso quarto. Jaime — Não vale a pena. As estrelas não podem viver cativas como os hamsters. Só brilham no céu. Se as levarmos para casa, apagam-se. Mónica — Mas brilham tanto que até cegam. E parece que viajam dentro de nós. Que bom! É melhor do que andar à chuva no pino do Verão. Tão bom como comer gelados em pleno inverno! Jaime — Como chupar seixos do mar! Como encher a boca de amoras! Mónica — Como espremer espinhas nas costas do pai! Como berrar mais grosso do que o trovão! Jaime — Como ganhar à bisca sem fazer batota! Corno fazer asneiras às escondidas! Génio da Mala (saindo do seu mutismo) — Esto.0 a ver que os meninos não precisam do meu poder para se divertirem a valer. Vou pregar para outra freguesia, já que dispensam a minha companhia. Jaime (subitamente muito seguro de si) Não! Queremos que fiques. Ainda a procissão vai no adro. O efeito "tempestade" de estrelas desaparece. O Génio parece pregado ao chão. Mónica — Toda a nossa vida a desejar coisas... não te vamos deixar ir embora assim. Agora és prisioneiro dos nossos desejos. O Génio saca de um par de algemas e oferece-as a Mónica, simbolicamente. Génio da Mala (muito humilde, de lágrima no olho) — Nunca ninguém me falou assim... quereis que eu fique porque gostais de mim? Ou é apenas para eu vos oferecer emoções que sem mim não podeis viver? Jaime — Gostámos de ti, Génio, claro que gostamos. E para te provar que falo a sério, concedo-te um pedido. Posso tratar-te por tu? Génio da Mala — À vontade. Eu não sou eu, para dizer a verdade. E quando falas comigo, o mais certo é estares a falar contigo, meu bom amigo. Mas vamos ao que interessa: queres mesmo cumprir essa promessa? Mónica (assustada) — Jaimito, vê lá no que te metes! O pai diz que não se deve dar confiança a pessoas estranhas.
Jaime (muito senhor de si) — Eu sei o que estou a fazer, Mónica. Sou medricas mas não sou malagradecido. Génio da Mala — O meu pedido é singelo e singular: no teu cérebro gostaria de viajar. Contudo, para eu explorar a tua mente, não basta tu consentires gentilmente. Terás de entregar-me a chave do teu coração. Se de bom grado beijares a minha mão, eu entrarei no reino da imaginação que é o único lugar onde o corpo não tem barreiras e todas as mentiras são verdadeiras. Jaime beija cerimoniosamente a mão do génio da Mala. Black out. Génio da Mala (cantando) Era urna vez a cabeça Duma pessoa pequena Não queiras crescer depressa Ser grande não vale a pena Era uma vez o miolo Dum miúdo comilão A sete palmos do solo Já tinha o mundo na mão Pensar em cabeça alheia É urna estranha actividade Se essa cabeça andar cheia Só posso pensar metade Pensar em miolo novo É urna espécie de aventura Como regressar ao ovo Ou perder-se em rua escura Nesta cabeça encontrei Garrafas, aranhas, mapas Macacos, ouro de lei E o tesouro dos piratas Miolo, cinzenta massa Sótão da alma vadia Arca do tempo que passa Mala de outra travessia. Fez-se luz na tua cabeça, Jaime. (A luz de cena volta a acender-se.) Pensaste um pensamento tão indecente que eu não podia ficar presente. Mesmo assim, obrigado por este bom bocado. Mónica — Afinal, o que é que há para ver na cabeça do meu irmão? Génio da Mala — O que eu vi não se conta, menina tonta. Ai, estou com vontade de dormir uma sesta... Não haverá cá em casa uma mala mais confortável do que está? Mónica (autoritária) — Nem mala nem meia mala. Nunca vi ninguém mais preguiçoso. Génio da Mala — Se não me deixam descansar, fico impossível de aturar. Como os bébés de colo, quando fazem birras a solo... Mónica — Durante o vosso encontro cerebral, eu também me fartei de pensar. Quero navegar no alto-mar. Dentro de um barco, o génio do Génio não só está ao nosso serviço corno passa a estar á nossa mercê. Trovão. Ventania. Relâmpagos furta-cores. Os três actores aparecem instalados dentro da inala.
Génio da Mala — Seja feita a vontade dá maruja. Do inferno azul não há menina que fuja. E não sei se sabem que os mares do sul são bem menos amenos do que os pintam. Não hão-de faltar tubarões, monstros marinhos e alados para assustar os garotos mal comportados. A mala é violentamente sacudida. Mónica — Eu não acredito no Adamastor, quanto mais... Jaime (aflito) — Como é que se combatem os tubarões? Génio da Malta — É com os remos, à paulada. Mas é preciso uma força desgraçada!!! Mónica — Vamos mostrar ao Jaimito, para ele treinar. O Génio da Mala salta para a água... O Génio obedece cegamente. Tu pegas num remo grande... Cuidado; não percas o equilíbrio, se não ainda mergulhas de cabeça! E depois é só acertar nas trombas do tubarão. Jaime — O Mónica, eu não posso com o remo, é muito pesado. Mónica Passa daí essa moca do tio Mateus que eu faço-te uma demonstração. Visas bem o rapaz e... pomba, pimba, prás, trás, catrapás. Bate com a moca na cabeça do Génio. Génio da Mala — Ei! Atenção! Eu não nasci para ser vosso tubarão. Nem mesmo vosso bicho de estimação. Mónica — Mas eu cá tenho vocação para Génia do Mal, Maga do Mar, Mega Menina, Super Catraia, Bruxa da Sétima Saia, com uma vassoura super-sónica, ou não me chame eu Mónica. Jaime — Ó Mó, já estás a falar como ele... Mónica — Farta de ser criança, de ser mansa, de ser a menina da mamã, de ir para a escola de manhã, de ser tua mana, de ir cedo para a cama... Génio da Mala — Ó Jaime, a Mónica não é real. O melhor que há a fazer é levá-la para o mundo ideal onde ela pode ser anormal à vontade sem cair o Carmo e a Trindade: Jaime — Não ma roubes, Génio, não ma roubes. Custou-me tanto inventá-la. É triste ser filho único. A Mónica tem mais sabor que todas as sobremesas do planeta. Tem mais saber meu do que eu próprio. Génio da Mala — vais ter de passar sem ela. Urna irmã destas é como urna flor que. usa na lapela. Murcha ao fim de algum tempo, a flor. E então basta inventar uma ideia melhor. Todas as pessoas humanas se sentem sós em determinados momentos: Contra a solidão, têm o refúgio dos seus pensamentos. Olha para mim: não tenho pai, nem mãe, nem parente. Mesmo assim faço de conta que sou gente. E amo profundamente os desejos de quem me deseja. Levo-os a peito. A Mónica parte comigo porque é o teu desejo mais perfeito. Jaime — Eu não consigo dormir sem ela. O escuro às vezes é tão escuro que tenho medo que não volte a luz do dia. E o sono é tão pesado que tenho medo de não voltar a acordar. Preciso da coragem da Mónica e dos beliscões da Mónica e dos safanões da Mónica. Eu não sou um génio, percebes? Génio da Mala — Não viste a Mónica a dar urna tareia ao tubarão? Quando o medo te pregar ao chão, trata-o com urna pedra na mão. O, Génio do Medo ainda é mais cobarde do que este teu criado e desata a fugir mal se sente ameaçado. (Fecha os olhos durante uns breves instantes.) São horas, Jaimito... O teu pai está a meter a chave na porta. Se não te vê deitado, fica aflito. E a tua mãe, coitada, fica pior que morta. Salta para cima das minhas costas, Mónica, que eu sou veloz como tu gostas. Mais veloz do que a vassoura super-sónica. Mónica põe-se às cavalitas do Génio da Mala Mónica (gritando) — Iahu, Iahu. Vamos caçar gambozinos no sonho de outros meninos. Vamos chover perdigotos no sonho de outros garotos. Vamos entrar com pés de veludo no sonho de outro miúdo. Jaimito, volta para a cama e diz adeus à tua mana. Hei-de voltar quando o teu coração menos esperar. Black out. Som de passos de um casal a subir escadas. Voz do pai de Jaimito — Ó Graça, por favor... Vais ver que ele está a dormir que nem um anjo. Som da porta a entreabrir-se. Voz do Pai de Jaimito — Pronto. Ficaste mais descansada? Quem me dera ter o sono dele.