gangsters no cinema
«O meio faz parte da verdade, tal como o resultado. É preciso que a procura da verdade seja ela mesma verdadeira; a procura verdadeira, é a verdade exposta cujos membros esparsos se reúnem no resultado». Karl Marx
O inquérito Não é nossa intenção proceder aqui à análise do filme negro americano. Limitamo-nos a apresentar uma hipótese cuja formulação nasceu tanto dos acasos cruzados após visionamento de certos filmes como duma procura sistemática. É pois necessário reconstituir o trajecto tortuoso da reflexão e abster-nos-emos de tirar quaisquer conclusões definitivas na medida em que a hipótese se baseia mais num feixe de suposições do que sobre dados históricos provados. A verificar-se, tal interpretação hipotética poria em causa todas as teorias sobre a história do cinema e do seu percurso estético. Digamos que se trata do relatório dum detective cinéfilo, concorrente da polícia-crítica, sobre um crime antigo, fora da alçada da lei. Da mesma maneira que a polícia tem por função primeira proteger os bens e cobrir o crime que presidiu à sua aquisição, e criar portanto uma barreira que impeça o acesso ao que está por detrás da fachada, a polícia-crítica cinematográfica instaura o cinema como sétima arte, objecto da sua vigilância e deixa na sombra as condições de produção geradoras da sua estética: «Por outro lado o cinema também é uma indústria» (A. Malraux). Cegada pelo esplendor das imagens oníricas que lhe são propostas, a crítica admite a existência duma estrutura pouco nobre nos bastidores, sem se dar ao trabalho de a aprofundar. Ora, o cinema nem sempre foi uma indústria e não pode hoje em dia ser considerado como tal visto que, constituindo um investimento de alto risco, se revela na maioria dos casos deficitário. A originalidade mínima de cada filme proíbe nos tempos que correm uma estrutura industrial, mas o cinema conserva contudo as características estéticas essenciais que este tipo de estrutura engendrou, às quais é atribuível, antes de tudo, o custo incrivelmente elevado da produção. Eis a explicação geralmente aventada; mas como é possível ignorar a contradição flagrante entre a lógica do rendimento industrial, por um lado, e a elevação do custo do investimento proporcional à do risco de insucesso, por outro? A hipótese segundo a qual o produtor teria interesse em perder dinheiro — proposta por M. Brooks em Producers não tem ponta por onde se lhe pegue. Urge procurar mais longe e não cremos que se trate duma chinesice. Primeiros indícios A moda dos filmes «rétro» levou a produção americana recente a utilizar como cenário o Hollywood dos pioneiros ou, duma forma mais generalizada, o mundo do «show-business». Ora, tanto num caso como no outro, é patente uma curiosa conexão entre o mundo dos malfeitores e o do cinema: em COTTON CLUB de Coppola, os «maffiosi» dirigem obscuramente a produção cinematográfica, em DAY OF THE LOCUST de Schlesinger, um produtor chefia paralelamente uma rede de prostituição... Outras fitas mostram — sempre de forma secundária essa associação curiosa, que na Europa pareceria incongruente, de um cenário metacinematográfico e de uma personagem mitológica: o gangster — tal aproximação é posta na conta da fantasia dos argumentistas de Hollywood, mas a permanência ainda que esfumada dos dois ingredientes pode revelar a simples utilização de um dado histórico que desconhecemos. Reconstituição Se a partir de então quisermos buscar confirmação mínima para este facto nas «histórias do cinema» não encontraremos a menor alusão expressamente verbalizada que comente este conluio entre a classe dos malfeitores e o cinema, apesar do facto decorrer logicamente do relato sobre as origens
de Hollywood: a prodigiosa expansão das salas nos EUA é provocada pelo sucesso, em 1905, do filme GREAT TRAIN ROBBERY (ES. Porter) estreado numa sala de Pittsburg. «Essa loja de Pittsburg teve para o cinema uma importância comparável à da pepita que Joham Sutter descobriu em 1847 perto de S. Francisco. Foi a rampa de lançamento não duma quimera do ouro mas para uma idade do nickel (1), que dará origem à 'batalha das patentes'. Edison recruta a agência Pinkerton para defender os seus interesses e acaba por ganhar essa guerra em 1907 (processo de Chicago, que praticamente impossibilitou a exibição de filmes sem infringir o direito da patente Edison), passando a chefiar o monopólio da distribuição (2) e, logo a seguir, a guerra contra os "independentes". Contra os produtores, menos numerosos e mais vulneráveis, lançou os beleguins da sua polícia privada dirigida por Al McCoy. Ácidos misturados nos tanques de laboratório destroem os negativos, câmaras roubadas, balas verdadeiras assobiando às orelhas dos actores cowboys, bulhas orquestradas na figuração provocaram mortos e feridos. Kennedy (director do Trust Edison-Biograph) tirava proveito dos ensinamentos do seu velho mestre, Rockefeller, que outrora enviara bandos armados dinamitar os "pipe-lines" dos concorrentes da Standard Oil» (3). Na sequência destas lutas rebentará, finalmente, uma «guerra das stars». «Os conflitos degeneraram por vezes em batalhas campais. Em 1912, sob o comando de Mark Dintenfass, as tropas de Laemmle tentaram várias vezes a tomada de assalto dos estúdios Kessel e Bauman. Após violentas escaramuças, foram detidas pelo exército permanente sustentado por Thomas Ince para a rodagem dos seus filmes sobre a guerra de Secessão» (4). Nesta época, a produção cinematográfica está instalada na costa este e nos grandes centros industriais. Os filmes têm uma bobine de duração (12 minutos) e caracterizam-se pelo seu custo irrisório. São precisamente os baixos custos de produção que levarão ao fracasso do «Trust» e ao constante renascer de independentes. Em 1913, o «serial» faz a sua aparição: «Em 1913, o velho Chicago Tribune, jornal de MacCormick, rei das máquinas agrícolas, fazia a vida negra a um outro diário audacioso, escandaloso, empreendedor, o Chicago American, fundado por um magnate da imprensa, W. R. Hearst, protótipo de CITIZEN KANE. Chicago vibrava tantas vezes ao som das balas trocadas entre os gangs adversários, de W. R. Hearst e MacCormick, que os rivais organizaram serviços permanentes de ambulâncias automóveis. Mas nem por isso negligenciaram as inovações técnicas. Os MacCormick, a conselho dum tal Koenigsberg, publicaram folhetos cuja adaptação cinematográfica era exibida semanalmente no cinema do bairro; desta forma asseguravam a clientela afecta aos Nickel Odeons dos quais, cinco anos antes, tinham denunciado a imoralidade» (5). Os «independentes» retiram-se para oeste e acabam por assentar arraiais num lugar estratégico em razão da escassa distância que o separava da fronteira mexicana para onde podiam fugir rapidamente: Hollywood. Começam a produzir filmes cada vez mais caros, até BIRTH OF A NATION em 1915, que custou acima de 100.000 dólares. As condições económicas e estéticas do cinema foram definitivamente transformadas — apesar de, na altura, Hollywood estar ainda longe de ser a máquina industrial em que se tornaria nos anos 20. Deduções Assim, a expansão do cinema nos EUA até à edificação de Hollywood coincide com a das «organizações criminosas». A mesma origem — imigrantes recentes —, o mesmo percurso de Este para Oeste com paragens nos grandes centros urbanos, os mesmos métodos. Paralelamente, descobrimos o tema do crime nos filmes que marcam esta expansão — dentro de uma produção que os historiadores qualificam de pouco imaginativa, é lícito pensar que tais filmes são inspirados pela proximidade do produtor. Donde se conclui que, nessa época, existe um parentesco entre as instituições criminais e as cinematográficas. Podemos supor que essa conjunção se operou no período das «guerras» sucessivas contra o «Trust», e que a associação foi cimentada a partir de 1913, quando a indústria, em pleno progresso, precisou de crédito que os bancos — até ao sucesso de BIRTH OF A NATION— hesitavam em conceder. Assistimos então a uma revolução nas condições de produção e de estética cinematográfica: a expansão fulgurante do cinema nos EUA estava ligada ao fraco investimento que a produção e a distribuição implicavam; de repente, ambas
absorvem somas colossais a despeito de nada poder garantir que os lucros venham a ser proporcionais. Os móbeis Se levantarmos a hipótese desses fundos terem sido concedidos pelas «organizações criminosas», devemos tentar compreender as razões de tal investimento. Na era do capitalismo selvagem, estas organizações só se distinguem das outras empresas pelo seu campo de actividades — repreensíveis segundo a moral puritana — e sobretudo pela recusa em aceitar o contrato social, em particular sob forma de contribuição revertendo a favor do Estado. É sabido que a polícia sempre se mostrou ineficaz em combatê-las nos EUA e que os seus dirigentes foram sendo condenados principalmente por fraude ao fisco. De facto, constituíam um modelo de empresa capitalista numa época em que a livre concorrência era arbitrada pelo gatilho; o problema fundamental com que se defrontavam consistia em fugir aos impostos. O cinema abria-lhes a possibilidade e os meios dessa fuga: as despesas reais durante uma rodagem são praticamente incontroláveis. Para tal convinha que a actividade cinematográfica pudesse fazer acreditar que nela se enterravam somas fabulosas. Quanto mais elevados fossem os custos, mais dinheiro se tornava viável «lavar». Os álibis Se conservarmos a nossa hipótese, logo compreenderemos que era necessário erigir uma fachada. Assim foi criado o «star system» — em que as vedetas eram disputadas à lei do dólar, apesar de muitos filmes continuarem a ser realizados com actores pouco conhecidos, submetidos a um contrato que previa «cachets» módicos; desta forma foram produzidos filmes cujos cenários faustosos constituíam a prova visível dos meios financeiros investidos, todavia ainda se rodavam numerosos filmes em cenários reais, com pequenos orçamentos. Hollywood representa o desenvolvimento, à escala industrial, desta fachada. Este seu papel nunca passou desapercebido; contudo, os críticos preferem tomar em conta causas culturais e não as causas económicas: a nossa hipótese nunca foi encarada por Sadoul, que atribui a contribuição financeira à «Wall Street» — palavra que a seu ver designa uma realidade suficientemente condenável para não aprofundar a lógica desta sobre-avaliação do custo dos filmes — e imagina que o falso luxo hollywoodiano serve apenas para dissimular a mediocridade cultural. Ora – e este fenómeno é revelador –, Hollywood adquiriu imediatamente a reputação de reunir, para além dos ambiciosos de todo o continente, uma classe de malfeitores de talento, e de representar um centro de distribuição e de consumo de droga, álcool e mulheres. Logo à partida lhe atribuíram o apelido de «Babilónia». A industrialização progressiva da produção — processo que aliás só se conclui com a aparição do sonoro, por razões técnicas de insonorização — vai desencadear efectivamente uma elevação do custo das rodagens; o desaparecimento gradual da improvisação não põe todavia em causa o princípio da sobrevalorização dos custos de produção: o fabrico em cadeia é justamente um factor de redução desses custos. «Baixou simultaneamente o preço médio de custo das produções, e as grandes companhias, que editavam um programa por semana, multiplicaram o número de filmes «B», filmes esses realizados em pouco tempo, com orçamentos reduzidos. Para vender o peixe à clientela, foram integrados em Blocs, dos quais fazia igualmente parte, em jeito de "prata da casa", um sucesso de prestígio cuja publicidade elevava o orçamento a mais de um milhão» (6). A maioria dessas superproduções era já na altura deficitária, independentemente do sucesso de acolhimento. Portanto, a produção cinematográfica de prestígio (a que nos interessa analisar visto que modelou a produção à escala mundial) não segue as regras do lucro capitalista: trata-se de uma gama de produtos financeiramente sobre-avaliados cuja função é esconder uma produção paralela que, essa sim, obedece às regras do mercado. A problemática «artística» que a produção de prestígio engendrou serviu apenas para deslocar a contradição. Se, noutros tempos, o valor cultural podia compensar o investimento (apesar do mecenato já se situar como um investimento implicando benefícios a médio prazo), o desenvolvimento da sociedade industrial impôs a aceleração do reembolso — o valor de exposição, cujo primado a eclosão do cinema vem doravante confirmar, reforça a necessidade do reembolso a muito curto prazo.
Brecht, por seu lado, concluía: «O modo de produção capitalista destrói completamente a ideologia burguesa... O capitalismo é consequente na prática: é uma necessidade para o sistema. Ora, sendo consequente na prática, não é ao nível da ideologia... o único obstáculo ao desenvolvimento do capitalismo é o próprio capitalismo» (7); mas o problema reside alhures, pois a manutenção duma produção deficitária é uma inconsequência totalmente prática. Últimos indícios É-nos impossível determinar em que medida a osmose entre organizações criminosas e produção cinematográfica foi mantendo ou perdendo significado. Para tal conviria encetar um estudo, que não caberia no âmbito desta secção. O cinema não passa evidentemente da cauda do cometa, no domínio da relação entre os gangsters e os outros sectores industriais, políticos, etc. Sabemos, vagamente, que controlam numerosas instituições políticas — dos governadores aos sindicatos —, mas é, no entanto, provável que não passem dum ramo viçoso do sistema, do qual fazem parte integrante — é do conhecimento público que o principal recurso de certos países da América do Sul, controlados pelos EUA, é o cultivo de «droga». Assim, é lícito ver na intervenção das «organizações criminosas» no cinema uma estrutura de financiamento paralelo, mas não forçosamente contraditória com a de «Wall Street». A presença de gangsters nos meios da produção cinematográfica descrita em filmes recentes pode ser interpretada ora como alusão a uma etapa histórica na evolução desta indústria, ora como permanência anacrónica da conexão entre meios financeiros/«show business» e o gangsterismo. O argumento do filme STATE OF THINGS de W. Wenders tenderia a confirmar a actualidade dessa associação: a despeito da «organização criminosa» em causa nunca ser nomeada, a sua influência directa sobre a produção e sobre a estética do filme é claramente afirmada; quanto à sua natureza, o modo de eliminação dos dois personagens não deixa lugar para dúvidas. Falso testemunho Uma vez que os nossos indícios se inspiram em personagens de ficção fílmica, convém talvez sublinhar certos aspectos do tipo do «gangster» elaborado por Hollywood. O gangster é o protagonista da produção mais característica de Hollywood — o filme negro; só a comédia musical pode rivalizar com este último a título de criação original comparável. O gangster é também figura destacada da produção americana mais desconhecida — a série «B», reservada ao mercado interno americano, onde o único concorrente do filme de gangsters é o «western». É curioso notar que o «western» reconstitui a evolução da «civilização» americana, muitas vezes em torno da edificação dum banco, dum bar e dum bordel, centros do desenvolvimento urbano, glorificando portanto a organização social — os justiceiros solitários aparecem, em contraponto, como personagens historicamente condenadas —, enquanto que o filme negro exalta esse individualismo condenado — a tradição do filme negro psicológico situa as razões da degeneração do herói ao nível da história individual, quase nunca social. Esta personagem é a grande ausente das comédias americanas, as quais amiúde têm por cenário os estúdios de cinema, mas dessa ausência não seria pertinente tirar conclusões: a presença de tal tipo teria certamente sido objecto de censura; não será necessário relembrar que a imagem que Hollywood dá de si própria é um véu hipócrita que atinge o cúmulo da dissimulação com o «código do pudor». A sua presença fora do campo das comédias, que constitui o reverso desta imagem de si própria e da América que Hollywood fabrica, parece suficientemente significativa. Uma vez mais é preciso desconfiar da suposta imaginação dos argumentistas: o cinema só fala metaforicamente de si próprio, e este discurso não se produz apenas a nível metalinguístico. Acreditamos que os representantes do mundo do crime faziam efectivamente parte dos meios de produção cinematográfica. A polícia está, aliás, notoriamente ausente da maioria desses filmes, sendo as suas funções asseguradas pelo detective mercenário, que acaba por se apagar a meio do enredo, para deixar o campo livre aos conflitos dos quais os gansgsters são os únicos protagonistas. Estes últimos, contudo, não passam de um sinal, de uma máscara, da presença de organizações de maior envergadura que ficam na sombra. O filme negro é simultaneamente revelador e dissimulador, através da mitificação de uma personagem menor, dessa presença.
Receptadores (quem beneficia com o crime) Uma vez que o orçamento exorbitante dum filme é pura trapaça e que a dilatação dos custos serve para esconder transferências inconfessáveis, interessa agora perceber como é que uma estrutura de produção pôde atravessar o Atlântico e impor-se da outra banda como modelo único. Compete-nos, porém, citar duas reservas importantes: apesar do cinema europeu ter adoptado a estética e o modo de produção americanos, não conseguiu criar uma verdadeira estrutura industrial comparável a Hollywood nem logrou dilatar tanto os orçamentos quanto é prática nos EUA, se bem que a maioria dos custos, à excepção dos salários das «stars», sejam relativamente equivalentes aos da produção americana (em todo o caso, de maneira alguma as diferenças atingem uma proporção de dez para cem que corresponde à diferença global de custo dos filmes na Europa e nos Estados Unidos), o que confirma a já mencionada «dilatação» sistemática dos orçamentos hollywoodianos. Por outro lado, os cineastas europeus têm frequentemente contribuído para a renovação da estética cinematográfica — neo-realismo, «nova vaga» —, e todos esses movimentos foram marcados por uma baixa considerável dos custos. Curiosamente, a justificação dos altos salários praticados no cinema europeu é contraditória com o conceito de produção industrial: todos os participantes numa rodagem europeia são supostos ser excessivamente remunerados em razão da incerteza das futuras produções. Assim o investimento elevado satisfaz todos os intervenientes mas a política que o norteia parece contrária aos interesses do produtor. Se este for um empresário independente, pode eventualmente satisfazer-se a curto prazo auto-remunerando-se em grande — tal tipo de produção tornou-se bastante corrente depois da última guerra, mas não sobreviveu durante muito tempo; se, pelo contrário, as companhias de produção cinematográficas constituírem apenas um sector de grandes grupos industriais e financeiros de concentração horizontal — caso das grandes companhias, tanto americanas como europeias —, essa dilatação dos encargos encobre provavelmente transferências menos lícitas — a «fuga aos impostos» constitui a ilegalidade mais vulgarmente praticada no mundo. Finalmente, desde que o Estado intervém na produção, pequenos e grandes produtores dispõem da possibilidade de manter as suas produções sem correrem riscos. Assim, em Portugal — onde a trafulhice é mínima, proporcional ao tamanho do país e à escala da sua produção —, um pequeno monopólio tem vindo a ser montado sem riscos a partir duma falsificação muito simples: produziam-se em Portugal filmes franceses que beneficiavam de subsídios, por vezes superiores ao «orçamento-padrão» estabelecido pelo I.P.C., em relação aos quais o CNC especificava que tal financiamento devia representar apenas 40% do custo real; com este subsídio, o filme estrangeiro era realizado na sua totalidade e por vezes até parte dum filme português; a operação final consistia em dilatar a lista de encargos para justificara despesa fictícia dos 60% orçamentais que nunca existiram... Já não se trata de transferências de fundos, mas de fundos fantasmas que permitiram a realização de filmes cuja distribuição e rentabilização nunca chegou a ser encarada. Todavia, o cinema português só tira lucros a curto prazo destas manigâncias — partindo do princípio que se pode considerar um benefício a realização de filmes que não são distribuídos: na medida em que a estética desenvolvida não corresponde aos meios técnicos e humanos, a expressão formal degenera numa paródia do modelo standard; a formação do público, único meio que justifica um crescimento da produção enquanto actividade rentável, não é assegurada; por último, este tipo de produção só consegue sobreviver eliminando a concorrência. Moralidade (o crime não compensa) De todas as formas de cinema possíveis, muito poucas foram minimamente exploradas, e só uma serve de referência aos debates estéticos ou ideológicos que o cinema suscita. Esta limita-se a sobreviver a si própria visto que a sua função social de cultura de massas é doravante assumida por outros media — a televisão vai atraindo a si os técnicos de cinema e de produção audiovisual — e porque a elevação do custo de produção impede actualmente o investimento num filme que não garanta um mínimo de sucesso — a produção americana standard (Spielberg e companhia) estuda rigorosamente os alvos a atingir em termos de público. A produção de Estado, produção de prestígio, não pode manter-se muito tempo a «fundo perdido» dentro da nossa sociedade... A
sobrevivência do cinema passa por uma transformação das suas formas de produção e de distribuição, e, por via de consequência, da sua função e da sua estética. Esta última, a ser objecto de debate ou de crítica, não pode sê-lo fora do enquadramento prático das condições de produção, dos modos de financiamento e da função económica. Urge pois confirmar ou infirmar a hipótese aventada — e no caso de ela se verificar, a crítica deverá interessar-se não só pelo que o filme mostra, a estética do dinheiro, como pelo que o filme esconde, a estética do crime organizado. S. (1)
Georges SADOUL, Histoire du Cinema Mondial, Flammarion, p. 62. Ibidem, p. 66 (3) Ibidem, p. 104. (4) Ibidem, p. 108. (5) Ibidem, p. 114. (6) Ibidem, pp. 236-237. (7) Bertolt BRECHT, Sur le Cinema, L'Arche, p. 216. (2)