GUERRA CONJUGAL A medíocre qualidade da maioria dos filmes que arranjamos coragem para ir ver (sem mencionar os inúmeros que já não nos tiram de casa...) tem a inegável vantagem de tornar os poucos que minimamente nos agradam em pequenas jóias, por efémera que possa ser a chamazinha que os faz brilhar. Ou será que há dias em que, contra os piores auspícios, nos predispomos a apreciar tudo aquilo que se passa no escuro? Foi de uma ou de outra maneira o caso desconcertante de A GUERRA DAS ROSAS. Filme espinhoso, um tanto desajeitado na postura demasiado generosa de efeitos do narrador-realizador, consegue contudo deixar-nos a impressão duma violenta diatribe contra o casamento. A violência é rara no cinema, apesar de sobrar o molho de tomate e outros ingredientes mais requintados), e mais raro é que se ataque uma instituição simulando uma tomada de defesa — i. e. por um lado, pintando o matrimónio como um mar de rosas e, por outro, encenando-o como um absurdo naufrágio. O diagnóstico de Dany De Vitto é discutível mas interessante por parecer polémico: numa sociedade materialista em que a relação de base é o contrato, o contrato de casamento é inviável e anacrónico porque assenta em valores contraditórios (o coração e a razão, para falar como... Pascal). Os cônjuges não podem permanecer alheios à escalada da tensão competitiva nas sociedades ditas avançadas, na medida em que o matrimónio surge como uma etapa obrigatória de inserção social e uma jogada segura na roleta do sucesso. Nesse sentido, como o filme limpidamente demonstra, a experiência conjugal possível limita-se à revelação mútua e progressiva de que os motivos da união e da partilha se transformaram em motivos de separação e demarcação de territórios. A história do casamento é uma ficção de divórcio. A comicidade do divórcio dos Rose é insuportável porque, nas entrelinhas do processo de ruptura, se insinua constantemente a vileza com que os esposos rentabilizam o capital de perícia adquirida com a lição do casamento. Aqueles dois seres, que se conhecem casualmente num leilão (a natureza do local de encontro não deixa de ser significativa), parecem talhados um para o outro — a frieza calculista de Kathleen Turner condiz com a paixão calculista de Michael Douglas; portanto, quando o asqueroso De Vitto conjura veementemente o divórcio, é da união legal que está a falar, visto que aquelas provações só calham a quem assina o «funesto» papel. Ocorre-me um trecho de outro filme visto na mesma temporada — ATA-ME, de Pedro Almodovar; quando António Banderas rapta a mulher dos seus sonhos, faz-lhe a seguinte proposta: «Tenho 50.000 pesetas... e quero ser um pai para os teus filhos». A ridícula «honestidade» do criminoso exprimia, aí também, a ideia de que a conjugalidade tradicional poderá doravante ser concebida como um programa marginal. A coabitação conjugal favorece o desenvolvimento de destrezas em vários domínios — no caso da mulher, obriga a um despojamento mais ou menos frustrante de estatuto. O quotidiano de fada do lar transforma Mrs. Rose num cordon bleu e dá-lhe um aguçado sentido dos negócios. No momento crucial em que faz um balanço dos anos de esposa e mãe, a mesma Mrs. Rose dá a sua dupla missão por cumprida: os filhos estão criados, o marido está no auge de uma excelente carreira. Mrs. Rose não muda — ela é apenas o produto da atroz maturidade do matrimónio. Torna-se por conseguinte óbvio que o objecto do filme é o casamento que não o seu patético desenlace: após uma perseguição implacável no lar indiviso, os cônjuges caem (literalmente) do lustre luxuoso, símbolo do falso céu a que subiram. R. G.