Guerra da dependência

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GUERRA DA DEPENDÊNCIA É significativo que os filmes do «Terceiro Mundo» que chegam até aos nossos ecrãs postulem uma cultura intacta, como se a colonização e a dependência económica neo-colonialista pudessem ser ignoradas, corno se os conflitos internos pudessem ser separados dessa situação, como se fosse possível fazer reviver uma cultura cujos mitos não se tivessem adaptado à busca de solução para as contradições da actualidade. Daí advém o fascínio que sobre nós exercem — como é próprio de tudo aquilo que se encontra fora de alcance, no tempo como no espaço — e simultaneamente uma impermeabilidade que mantém o espectador ocidental de fora (cf. o nosso artigo «Os passos nas pegadas» in A Grande Ilusão, nº 8). Flora Gomes, após um primeiro filme inspirado nas grandes epopeias de guerra revolucionária, obra simpática mas convencional, tanto ao nível da factura como do discurso — MORTU NEGA —, pega o touro pelos cornos e apresenta-nos, com o seu recente OS OLHOS AZUIS DE PONTA, talvez o primeiro filme sobre as contradições inerentes à aplicação dum modelo dominante desadaptado — desde as «fábulas» de Sembene Ousmane. O título coloca imediatamente um problema insolúvel: Yonta não tem olhos azuis. O drama é que ela não descodifica a evidência — o texto original não lhe era dirigido e o nome da verdadeira destinatária fora substituído pelo seu — e tenta encontrar justificações para o erro — a iluminação azulada dos néons da discoteca. A contradição toca protagonistas de várias gerações que reagem cada qual de maneira diferente — mas nenhum consegue resolvê-la: os dois antigos combatentes retiram-se (um refugia-se na loucura, possuído pelo espírito/pássaro dos génios tutelares abandonados, o outro regressa à sua aldeia); as raparigas novas adoptam o modelo importado: Yonta traz no cinto uma hora universal; a sua colega, após ter acedido à prática do ritual das dádivas simbólicas — às quais se acrescenta um preservativo contra a SIDA — organiza uma boda à «italiana» e aí o filme «descamba» para uma atmosfera nitidamente felliniana) à volta duma piscina; as crianças, por seu lado, constroem simbolicamente o futuro com peças soltas (as câmaras de ar da cena inicial) mas esse futuro oscila entre a recusa da ordem de despejo (cena dos móveis da vizinha reintegrados na casa) e o sonho da emigração (obviamente idealizada: o novo «Maradona»). O filme tira partido desses desajustamentos irrisórios ou dramáticos e propõe algumas soluções de compromisso — negociações da cooperativa com os investidores portugueses e ao mesmo tempo, com os pescadores locais. Mas a coerência da obra reside na forma como Flora Gomes consegue sintetizar visualmente as contradições, adaptando também o modelo formal cinematográfico europeu. Certas cenas, verdadeiras «atracções» eisensteinianas, são inesquecíveis — as câmaras de ar-calendário, o voo de Vicente, a piscina onde flutuam as crianças, o bolo de noiva e o pescador imemorial, etc. —, embora quase desequilibrem o filme, porque o engenho criativo nem sempre se mantém ao mesmo nível. A vontade de discurso, crítico e optimista, de Flora Gomes insere-se entre essas cenas em que a força das imagens triunfa e anula qualquer perspectiva racionalizante. O filme assume a descontinuidade dos episódios cuja coerência só é preservada graças à redundância — visto que a essência da contradição é idêntica de cena para cena — e à permanência dos protagonistas, ao jeito de uma crónica picaresca. «Um filme sobre a velocidade», diz Flora Gomes na sua apresentação; sobre os efeitos da velocidade — sobre aqueles que a acompanham, aqueles que se sentem ultrapassados, aqueles que com ela se embebedam — com alguns momentos de pura vertigem. S.


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