AS PONTAS DA ESTRELA L’ÉTOILE DE MER (“A estrela do mar”) apresenta-se como um caso interessante de “surrealismo real” no campo do cinema. Tanto mais interessante quanto, não será descabido lembrá-lo, o surrealismo produziu um número relativamente escasso de obras cinematográficas, sobretudo se comparado à incalculável quantidade de criações afectadas, inspiradas ou moldadas pelo movimento que Breton animou, nas áreas da litertura e das artes plásticas. Sempre me pareceram paradoxais as relações entre o surrealismo e o cinema; com efeito, é assaz inconcebível que a frente teórica mais frutífera no que diz respeito ao discurso sobre a imagem e suas aplicações tenha dedicado tão pouca atenção àquela que foi a arte do século, a nova arte nascida de um sonho futurista, passando ao lado do muito que com ela se jogava, quer no plano do real, quer no plano do imaginário (e também na esfera onde ambos se confundem), “isso” da sombra que o cinema trazia à luz – com toda a brutalidade própria de uma forma de expressão popular. Todavia, basta ler as páginas que Breton consagra (às idas) ao teatro e ao cinema no seu romance “NADJA” para avaliar o fraco apreço que o autor e mentor do movimento tinha pelas formas cinematográficas enquanto desejo de arte (e desejo de revolução…). Breton, há que dizê-lo, inventou o “zapping” (avant la lettre) ao praticar, graças à possibilidade de mudança de sala oferecida pelo “cinéma permanent”, uma estranha actividade de montagem que consistia em cruzar o começo de um filme com o miolo de um ou dois outros e o fim de mais um ainda. Embora Breton e os seus amigos desconhecessem o consumo das pipocas, porventura não desdenhavam a ideia de fazer refeições dentro de uma sala de cinema, tal como o faziam nos teatros parisienses. E por terem sido sensíveis apenas ao imaginário difundido pelo cinema (o “FANTOMAS” DE Feuillade por exemplo), virando costas às questões levantadas pela IMAGEM EM MOVIMENTO INSCRITA NO TEMPO, será legítimo afirmar que ignoraram aquilo que no cinema está mais próximo da “beleza convulsiva”. Ora, passada a primeira impressão de encantamento produzida pela beleza do processo de “desfocagem-metamorfose” utilizado por Man Ray à tomada de vista, e pela frescura e/ou evidência poética de algumas composições e enquadramentos, L’ÉTOILE DE MER deixa-me um travo a convencionalismo requentado no tocante à ficção que o filme contempla como puro pretexto. Ocorreme perguntar: por que raio de carga de água é que um poema visual – pois disso se trata conforme no início da obra atempadamente o realizador nos anuncia: “um poema de Robert Desnos tal como Man Ray o vê” – precisa de um enredo romanesco tão rasca para se construir e constituir como objecto? E a essa interrogação tento encontrar resposta no gosto dos surrealistas pelo kitsch/rasca. Mas não basta. Bem vistas as coisas, há talvez na ÉTOILE DE MER uma tentativa de encenar o bizarro conceito de erotismo que os surrealistas amiúde preconizaram, um misto de gosto pelo escandaloso e pelo obsceno aliado à timidez sexualmente correcta… Acontece que o melhor do filme de Man Ray – no meu entender, ele reside na maneira de mostrar (e não tanto no modo de encenar) e numa prática de montagem parente da “collage” – é claramente incompatível com a pobreza franciscana do dispositivo narrativo que a fita propõe. Vamos dizer então que L’ÉTOILE DE MER se nos apresenta como um belo documentário sobre Kiki de Montparnasse, André de la Rivière e Robert Desnos enquanto manequins de um surrealismo na altura demasiado vivo para se prestar aos moldes e modelos da ficção. Regina Guimarães