LONGE DA CIDADE Se Louis Malte surge como um cineasta incómodo, é antes de tudo devido à irregularidade da sua produção e à diversidade tanto formal como temática dos filmes que realizou. A sua carreira tem-se desenrolado sob o signo da ruptura periódica: rodagem de ZAZIE DANS LE METRO — talvez o último filme burlesco da história do cinema — após dois filmes com os quais tentou renovar, num registo intimista, os géneros codificados do policial (ASCENSEUR POUR L'ECHAFAUD) e da «love story» (LES AMANTS); rodagem documental na Índia durante dois anos a partir de 68, depois de ter utilizado as estruturas da produção standard para realizar filmes ingénuos de cariz anarquista (VIVA MARIA, 1965 e LE VOLEUR, 1966); partida para Inglaterra e para os Estados Unidos — onde adapta ao modelo americano o seu intimismo contestatário — a seguir a dois sucessos de escândalo em que abordou do ponto de vista dos «culpados» — os burgueses, «os fascistas» — mas sem má consciências, as épocas conturbadas da História recente da França; regresso com a evocação consensual da caça aos judeus durante a ocupação, tema e tratamento denotando um certo desgaste do seu lado rebelde, e, por último, realização do corrosivo e assaz buñueliano MILOU EN MAI. Neste caprichoso percurso é contudo possível observar algumas constantes, do ódio feroz da burguesia enquanto prática de vida à consciência da desumanização da vida urbana em total ruptura com uma natureza original. Em vários filmes seus, descobrimos estruturas de progressão dramática idênticas: harmonia artificial, eclosão da crise, restabelecimento de uma ordem inicial que não consegue camuflar a perda irrecuperável ocorrida no segundo andamento — o tema central é a família em LE SOUFFLE AU COEUR, o contacto com a natureza em LACOMBE LUC1EN, a cumplicidade com os adultos em PRETTY BABY, o envelhecimento serenamente assumido em ATLANTIC CITY, a solidariedade em AU REVOIR LES ENFANTS, o modelo familiar em MILOU EN MAI. Através do insucesso no campo afectivo — que a solução da gargalhada final em LE SOUFFLE AU CŒUR não consegue dissimular (note-se que Malle tinha encarado a hipótese do suicídio do protagonista) — é a dolorosa tomada de consciência dum impossível regresso ao passado que o cineasta tematiza sistematicamente; a impossibilidade do retorno deve-se sempre à descoberta da artificialidade dos valores que regiam a pseudo-harmonia inicial. Todos os filmes de Malle são um pouco concebidos como parábolas com dois níveis de leitura — LACOMBE LUCIEN começava com a seguinte citação: «Aqueles que esquecem o passado estão condenados a revivê-lo» que se aplicava tanto à problemática histórica (a tentação do fascismo como fruto duma falta de consciência política é subtilmente abordada neste filme que desencadeou, aliás, uma campanha de calúnias orquestrada pelo meio intelectual de esquerda em França) como à fábula intra-diegética na qual o protagonista regressava ao seio da terra que quisera deixar mas sem poder gozar plenamente esse retorno ao espaço natal dadas as circunstâncias particulares em que a «reconciliação» ocorre — Lucien está apaixonado pela judia cujo pai mandara prender e é perseguido pelos resistentes a cuja rede desejara pertencer. O verdadeiro drama desta obra maior de Malle reside no abandono necessário das raízes culturais — o fascismo era um simples indicador da gravidade das consequências e não o objecto do discurso; para o grotesco «passeio no campo» do recente M1LOU EN MAI, os burgueses também levam as espingardas. Simetricamente, MILOU EN MAI não propõe uma análise de Maio de 68, mas sim da reacção de pânico que os acontecimentos provocaram longe de Paris, motivada pela deformação mitificada — pelos burgueses como pelos estudantes — via mass-media da sua essência contestatária. A casa de campo, transformada em refúgio da família, não mudou, mas já lá não reina a harmonia porque as boas consciências estão perturbadas. O verniz da civilização estala, as máscaras caem e os homens revelam-se não como lobos maus mas como ratos. Todavia, no fim da fábula, o verdadeiro valor atacado por Malle — a «raiz» do problema — aparece claramente posto em causa: a questão da herança durante a qual os valores de uso são renegados em favor dos valores de troca material. O júbilo que os actores patenteiam no desempenho destas personagens negativas permite contornar o exagero caricatural. Pena seria que o filme passasse desapercebido — perdoem-nos o eufemismo posto que não está sequer para estrear no Porto. Depois do polémico LACOMBE LUCIEN, com este trabalho Malle completa o retrato mais feroz e mais justo da «França profunda». S.