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Alberto Péssimo Regina Guimarães Saguenail
MÉNAGE
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Nascer órfão
Uma montanha de abraços nos separa do vale de lágrimas uma montanha de medos aguça e acera as nossas mágoas o rochedo que empurramos de início era pedra no sapato e cresceu connosco em avalanche inversa Quem na sua tenra infância recebeu amor em demasia quando a fome era confundida com a sede de ternura quando o seio vertia o sono com o leite sabe que nunca mais será tão amado
Quem perdeu a idade do ouro terá de contentar-se com dourados adulações em lugar de afagos lisonjas na vez de beijos só conservando a sua primazia à custa de esmagar o outro desconhecendo-o, desprezando-o ou comprando-o
Quem na sua tenra infância não recebeu amor suficiente quando esgotados os sopapos o seio era mal menor para evitar incomodar a vizinhança com os berros ou sobrepor a gritaria à televisão sabe que nenhum amor doravante poderá amenizá-lo, indemnizá-lo
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Quem passou pela idade do bronze cansou-se do bronzeado concebe o amor como uma fraqueza e só pensa em ser compensado recusa qualquer responsabilidade desafiando e desconfiando desconhecendo ou desprezando ou mesmo desancando
A única aprendizagem deveria ser colocar-se no lugar do outro – aquilo a que Baudelaire chama imaginação e Descartes generosidade (a única paixão que suporta o excesso) – literalmente desposá-lo mentalmente incorporá-lo amá-lo pela sua diferença As mães só amam pela parecença pela duplicação de si projectando no bebé o amor que lhes faltou sagrando-o, divinizando-o e assim mutilando-o reduzindo o seu reino ao regaço votando o mundo à indiferença
Quem não quer sair de si é incapaz de amar quem quer passar primeiro condena-se a ficar só se Orfeu tivesse seguido atrás não teria sido obrigado a virar-se a quem se ama antes de mais só resta fechar os olhos 3
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Naître orphelin Une montagne d’étreintes nous sépare de la vallée de larmes une montagne de craintes aiguise et escarpe nos alarmes le rocher que nous poussons a commencé caillou dans la chaussure et a grandi avec nous en avalanche inverse Qui dans sa petite enfance a reçu trop d’amour quand on confondait sa faim avec une soif de tendresse quand le sein versait le sommeil avec le lait sait que plus jamais il ne sera autant aimé Qui a perdu l’âge d’or devra se contenter de dorures adulations en guise de caresses flatteries en substitut de baisers ne conservant sa primauté qu’en écrasant autrui en l’ignorant, le méprisant ou en l’achetant Qui dans sa petite enfance n’a pas reçu assez d’amour quand ayant épuisé les taloches le sein n’était qu’un pis-aller pour l’empêcher de brailler gêner les voisins, couvrir la télé sait qu’aucun amour désormais ne pourra l’ameniser, l’indemniser 4
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Qui est passé par l’âge d’airain en a conservé l’éreintement conçoit l’amour comme une faiblesse ne pense qu’à être compensé récuse toute responsabilité se défiant, se méfiant d’autrui en l’ignorant, le méprisant ou en le cognant Il ne devrait exister d’autre apprentissage que de se mettre à la place d’autrui – ce que Baudelaire nomme imagination et Descartes générosité (la seule passion qui supporte l’excès) – littéralement l’épouser mentalement l’incorporer l’aimer pour sa différence Les mères n’aiment que pour la ressemblance pour la duplication de soi projetant sur le bébé l’amour qui leur a manqué le sacrant, le déifiant et ce faisant le mutilant réduisant son royaume au giron vouant le monde à l’indifférence Qui ne sait sortir de soi est incapable d’aimer qui veut passer en premier se condamne à rester seul si Orphée avait suivi derrière il n’aurait pas eu à se retourner qui s’aime d’abord n’a plus qu’à fermer les yeux 5
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Fada do sono perpétuo
Ninguém está certo ao fechar os olhos de alguma vez voltar a abri-los é por isso que amiúde as crianças choram quando soa a hora de ir para a cama o espírito para sossegar inventou um estratagema: cada um quando adormece recebe uma caixa de Pandora o sonho apresenta-se como uma prenda embrulhada cheia de fitas É preciso começar por desatar o nó do laço abrir o papel da embalagem antes de levantar a tampa ora trata-se de um pacote com muitas camadas: dentro da primeira há outra caixa também ela embrulhada e bem atada e nessa uma outra ainda mais pequena e por aí fora a cada caixa aberta o sonhador deixa escapar gritando, exclamando-se, suspirando ou silenciosamente um sentimento ou antes um ressentimento frustração, despeito, decepção cólera, raiva, fúria indignação, ronha, ira e desespero em suma todos os males 8
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para os quais estamos mal servidos de palavras até ao derradeiro escrínio minúsculo que tem um fecho complicado sem ferrolho nem chave debalde tentamos forçá-lo e portanto acordamos esperançados tanto quanto arrependidos e com um motivo logo esquecido de receio e desejo confundidos de chegar ao fim e descobrir finalmente na próxima noite no próximo sono o ínfimo, o íntimo segredo
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Mort fée Nul n’est vraiment certain en fermant les yeux de jamais les rouvrir c’est pourquoi souvent les enfants pleurent quand sonne l’heure d’aller au lit l’esprit pour se rassurer a inventé un stratagème: chacun reçoit quand il s’endort une boîte de Pandore le rêve se présente comme un gros paquet-cadeau tout enrubanné Il faut d’abord défaire le nœud ouvrir le papier d’emballage avant de soulever le couvercle 10
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or c’est un colis gigogne: il y a une autre boîte à l’intérieur tout aussi empaquetée et ficelée et dans celle-là une autre plus petite et ainsi de suite à chaque boîte ouverte le rêveur laisse échapper en cri, exclamation, soupir ou silencieusement un sentiment ou plutôt un ressentiment frustration, dépit, déception colère, courroux, fureur irritation, fâcherie, aigreur indignation, rogne, rage et désespoir bref tous les maux pour lesquels on manque de mots jusqu’au dernier écrin minuscule qui porte un fermoir compliqué sans serrure ni clé que l’on s’efforce en vain de forcer si bien qu’on s’éveille avec autant d’espoir que de regret et un motif vite oublié de crainte et de désir mêlés à la faveur de la prochaine nuit à l’occasion du prochain sommeil de parvenir à la fin et découvrir enfin l’infime, l’intime secret
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Regressado (sob forma de silogismo) (premissas) (maior) É o uso que define as coisas lhes dá forma e consistência a prática constrói o ser (menor) Toda a repetição é ontologicamente imperfeita o quotidiano muda constantemente só o espírito humano é rotineiro por se recusar a participar no concurso das circunstâncias (conclusões) As viagens não formam ninguém o viajante julga mudar mas só o cenário varia ele só se altera por contraste mantendo-se contudo idêntico e estranho pelo que na hora do regresso apenas ele não se alterou enquanto o lugar donde partiu não parou de se modificar dia após dia de se transformar imperceptivelmente de tal modo que o filho pródigo se torna estrangeiro na sua terra por não ter acompanhado as metamorfoses
Ulisses partiu Itaquense e embora tenha ficado igual a si mesmo voltou Grego e vindicativo cego perante os sonhos dos seus compatriotas que Penélope incansavelmente desfazia mal os havia tecido
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A realidade é feita de tentações passageiras impacientes que deixamos escapar pois obrigar-nos-iam a mudar a perder as nossas referências a reduzir os nossos redutos a reperdermo-nos sem a certeza de nos reencontrarmos
ego é um substantivo comum uma convenção, uma hipótese, uma figura de retórica que se fixa, se petrifica, se solidifica se torna jaula
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Revenant (sous forme de syllogisme)
(prémisses) (majeure) C’est l’usage qui définit les choses leur donne forme et consistance la pratique construit l’être
(mineure) Toute répétition est ontologiquement imparfaite le quotidien change constamment seul l’esprit humain est routinier refusant de participer au concours des circonstances 14
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(conclusions) Les voyages ne forment personne le voyageur croit changer alors que seul le décor varie lui ne s’altère que par contraste tout en restant identique et étranger si bien qu’au retour lui seul n’a pas changé tandis que le lieu d’où il est parti n’a cessé jour après jour de se modifier d’imperceptiblement se transformer en sorte que le fils prodigue est désormais un étranger faute d’avoir accompagné ces métamorphoses Ulysse parti Ithaquois bien que resté égal à lui-même est revenu Grec et vindicatif aveugle aux rêves de ses compatriotes que Pénélope s’empressait de défaire dès qu’elle les avait tissés La réalité est faite de tentations passantes impatientes que nous laissons échapper car elles nous forceraient de changer de perdre nos repères d’abandonner nos repaires de nous reperdre sans certitude de nous retrouver
ego est un nom commun une convention, une hypothèse, une figure de rhétorique s’il se fixe, se pétrifie, se solidifie il devient cage 15
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O cão traiçoeiro
Quem éramos nós diante da realidade, essa realidade que agora sei deitada aos pés de Nadja, como um cão traiçoeiro? André Breton, Nadja
Ela esfuma as esperanças mais fundamentadas opondo-lhes uma versão infundada feroz e voraz pois em caso nenhum quer ser previsível Ela desaloja as certezas mais lógicas nem que tenha de passar por demente capciosa caprichosa pois em caso nenhum quer ser razoável
Ela é grão nas engrenagens mais estáveis desmantela desmonta mina e elimina pois em caso nenhum quer ser durável
Ela espalha a graça como semeia a dúvida ou o vento nunca responde a pedidos nem útil nem fútil ignorando o mal e a malícia pois em caso nenhum quer ser séria
Aquém do divino mas para além de toda a adivinhação ela não se submete a nenhuma condição – nem concessão nem rendição – e sobretudo – em caso nenhum – humana 16
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Ela tem o teu rosto e também o da Medusa ou de um anjo sem contudo ser mutante não podemos tê-la nem sequer vê-la e sobre ela projectamos a pobreza da nossa imaginação
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Le chien fourbe
Qui étions-nous devant la réalité, cette réalité que je sais maintenant couchée aux pieds de Nadja, comme un chien fourbe? André Breton, Nadja Elle fait fondre les espoirs les plus fondés leur offre un démenti cinglant sanglant car elle ne se veut en aucun cas prévisible 18
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Elle déloge les certitudes les plus logiques quitte à passer pour démente captieuse capricieuse car elle ne se veut en aucun cas raisonnable Elle ensable les mécaniques les plus stables les met en pièces les démonte les mine les élimine car elle ne se veut en aucun cas durable Elle répand la grâce comme elle sème le doute ou le vent ne répond jamais à la demande ni utile ni futile ignorant le mal comme la malice car elle ne se veut en aucun cas sérieuse En-deçà du divin mais au-delà de toute divination elle ne se soumet à aucune condition ‒ ni concession ni reddition ‒ et surtout pas ‒ en aucun cas ‒ humaine Elle a aussi bien ton visage que celui de Méduse ou d’un ange sans pourtant être changeante nous ne pouvons l’avoir ni même la voir et projetons sur elle la pauvreté de notre imagination 19
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Despacho O tempo corre à velocidade da luz inútil correr foste ultrapassado de antemão inútil partir a tempo a corrida já começara antes de nasceres e de seres lançado ao mundo aliás a terra não pára de girar a imobilidade é já demasiada velocidade não evitarás a colisão com o futuro
Os teus pêlos crescem mais depressa que os pensamentos representam a tua parte cadavérica em vida é a decomposição que engendra e alimenta o vivo a profusão vegetal à superfície é proporcional à massa em putrefacção subjacente podes fazer uma escada para fazer entrar o amante amarrá-lo com cabelo, encarcerá-lo, dinamitá-lo
O presente mal tem tempo para dissolver o passado esmigalhá-lo para o impedir de atravancar o lugar rasurá-lo ainda que tenha de ser reescrito o apagamento porém nunca é total uma pessoa esbarra contra as arestas limadas uma pessoa choca contra as paredes há muito derrubadas uma pessoa some pelos buracos aparentemente tapados
Os átomos do tempo estão em constante movimento e atravessam o espaço em todos os sentidos as montanhas galopam árvores e as estátuas dançam só nos parecem imóveis as setas que seguem a mesma curva que nós antes de dispersarem ou de dispararem sobre o nosso peito, os nossos olhos, o nosso coração
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A idade e as metamorfoses são tão rápidas que passam despercebidos no dia a dia tanto mais que cada coisa é também o seu contrário o céu também é uma vala e também um mar a diferença é ínfima entre o nada e o universo um cabelo bastaria para seres estrela um sorriso bastaria para a lua te beij
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Dépêche Le temps s’écoule à la vitesse de la lumière inutile de courir tu es d’avance distancé inutile de vouloir partir à point la course était commencée bien avant que tu naisses que tu sois jeté au monde d’ailleurs la terre ne cesse de tourner l’immobilité est déjà trop grande vitesse tu n’éviteras pas la collision avec l’avenir 22
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Tes poils poussent plus vite que tes pensées ils sont ta part cadavérique en vie c’est la décomposition qui engendre et nourrit le vivant la profusion végétale en surface est proportionnelle à la masse en putréfaction sous-jacente tu peux en faire une échelle pour introduire ton amant et d’une mèche le ligoter l’emprisonner le dynamiter Le présent a tout juste le temps de dissoudre le passé l’émietter pour l’empêcher d’encombrer le recouvrir quitte à devoir le réécrire l’effacement pourtant n’est jamais complet on se heurte encore aux angles arrondis on se cogne à des murs depuis longtemps rasés on disparaît dans des trous apparemment bouchés Les atomes du temps sont en mouvement constant et traversent l’espace dans tous les sens les montagnes galopent arbres et statues dansent seuls nous paraissent immobiles les traits qui suivent la même courbe que nous avant de se disperser ou de fondre droit sur notre poitrine nos yeux notre cœur L’âge et les métamorphoses sont si rapides qu’ils passent inaperçus au jour le jour d’autant que chaque chose est aussi son contraire le ciel est aussi un trou et aussi une mer la différence est infime entre le néant et l’univers il s’en faut d’un cheveu que tu ne sois une étoile il s’en faut d’un sourire que ne t’embrasse la lune 23
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Casus belli A exclusividade tem como corolário a exclusão não há eleitos se não houver excluídos esquecemos que o íman afasta tanto quanto atrai e que um amante achado significa dez que se perderam
O amor reclama uma atenção sem tréguas colorindo e abrasando o gesto mais banal excessivo e egocêntrico, quer-se para lá da moral nem que seja com ciúmes e suspeitas, violência ou cobardia
No tempo em que eu não amava ninguém sonhava com uma comunidade onde tudo seria partilhado os corpos e os bens, as tarefas e os projectos com uma humanidade sem condição, um jardim sem expulsão O amor que me deste ultrapassava o imaginável abrindo a cada passo novos territórios negando o impossível ou forçando-o a recuar fazendo crescer florestas onde o seu cavalo passa
A pretensão de ser único e a propriedade privaram-me das minhas ilusões de universal fraternidade sem ressentimento nem cinismo, sem sonho de riqueza traí os meus ideais ou pelo menos acomodei-me
O amor resistiu às tentações, às infidelidades inexpugnável mas isolado, fecundo mas irreprodutível é a nossa jóia escondida, o nosso núcleo de urânio enriquecido a nossa fonte sem saudade da juventude perdida
Ergui muralhas de livros, filmes e discos que só consulto escavando frechas as tuas palavras bastam para me dar novas do mundo que em mim prossegue as suas guerras intestinas 24
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O amor traça em redor um círculo intransponível quem bebeu seu filtro não mais perde a embriaguez e a cegueira, a dádiva intransmissível, o precioso segredo sob a lepra revelado nos lábios do lazarento
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Casus belli L’exclusivité a pour corollaire l’exclusion il n’y a d’élus que s’il y a des exclus on oublie que l’aimant repousse autant qu’il attire et qu’un amant trouvé signifie dix de perdus L’amour réclame une attention sans relâche colorant et enfiévrant le geste le plus banal excessif et égocentrique, il se veut au-delà de la morale quitte à s’assumer jaloux, méfiant, violent ou lâche 26
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Du temps que je n’aimais personne je rêvais d’une communauté où tout serait partagé les corps et les biens, les tâches et les projets d’une humanité sans condition, d’un jardin sans expulsion L’amour que tu m’as voué dépassait l’imaginable ouvrant à chaque pas de nouveaux territoires niant l’impossible ou l’obligeant à reculer faisant repousser des forêts où son cheval passait La prétention d’être unique et la propriété m’ont privé de mes illusions d’universelle fraternité sans ressentiment ni cynisme, sans rêve de richesse j’ai fini par sinon trahir ranger mes idéaux L’amour a résisté aux tentations, aux infidélités inexpugnable mais isolé, fécond mais irreproductible il est notre joyau enfoui, notre noyau d’uranium enrichi notre fontaine sans regret de jouvence enfuie J’ai érigé des murailles de livres, films et disques que je ne consulte qu’en perçant des meurtrières tes mots suffisent à me donner des nouvelles du monde qui poursuit en moi ses guerres intestines L’amour trace un cercle infranchissable à notre entour qui l’a bu philtre en conserve l’ivresse et la cécité, le don intransmissible, le précieux secret révélé sous la lèpre sur les lèvres du ladre 27
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(este é o primeiro poema que Saguenail escreveu directamente em português)
MORITURUS Depois da escala humana na minha próxima viagem quero embarcar numa nave especial para percorrer o espesso da meia-noite em todos os sentidos tornar-me um ponto sem dimensão um buraco negro um poço desertado pela verdade entregar a alma a parte animal triste após o coito deprimida após o parto 28
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amedrontada antes da partida numa corrida sem chegada numa ida sem regresso numa queda sem fim numa luta sem trégua sem regra nem princípio sem justificação nem meio viver por não conseguir dormir até uma onda de cósmico cumprimento me limpar de toda a pez e de toda a memória voar enfim sem pena cair sem arrependimento fechando o ciclo à chave
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MORITURUS
Après l’escale humaine – l’échelle humaine – à mon prochain voyage je veux embarquer dans un vaisseau spécial pour suivre la traîne épaisse de minuit dans tous les sens devenir un point sans dimension un trou noir un puits déserté par la vérité rendre l’âme la part animée – la part animale – triste après la coucherie déprimée après l’accouchement 30
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paralysée avant le départ en une course sans arrivée un aller sans retour une chute sans fin une lutte sans trêve sans règle ni principe sans justification ni moyen vivre faute de parvenir à dormir jusqu’à ce qu’une onde de longueur cosmique me nettoie de toute la poix et de toute la mémoire que je vole sans plume sans peine à purger et choie sans repentir fermant le cycle à clé
Saguenail, verão 2017
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chitas
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Chita tecido de algodão barato e de pouca qualidade, com estampas de cores fortes, geralmente florais, e tramas simples. As estamparia é feita sobre morim. Uma estampa característica de chita sobre outro suporte que não seja morim não é chita. As características principais são: cores primárias e secundárias em massas chapadas que cobrem totalmente a trama, tons vivos, grafite delineando os desenhos, e predominância de uma cor. As cores intensas servem, não só para embelezar o tecido, mas também para disfarçar suas irregularidades, taisv como eventuais aberturas e imperfeições. O nome «chita» vem do sânscrito chintz e surgiu na Índia medieval.
fera também conhecida como lobo-tigre ou onça-africana (Acinonyx jubatus), é um animal da família dos felídeos ainda que de comportamento atípico. É a única espécie vivente do gênero Acinonyx. Tem como habitat a savana (África, Arábia e Sudoeste da Ásia). Fisicamente, a chita é parecida com o leopardo. As almofadas das patas da chita têm ranhuras que lhes permitem mover-se melhor em alta velocidade. A longa cauda serve-lhe para lhe dar estabilidade nas curvas. Cada chita pode ser identificada pelo padrão exclusivo de anéis da cauda. Tem cabeça pequena e aerodinâmica e possui uma coluna incrivelmente flexível. É um predador que prefere estratégias simples – caçar por perseguição – em vez de tácticas como a caça por emboscada ou em grupo, mas pode caçar em dupla. Atinge velocidades de 115 km/h por curtos períodos, sendo o mais rápido de todos os animais terrestres. 33
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VARIAÇÕES SEM TEMA VERSO O SERVO DO VICE-REI Ninguém virá ao encontro marcado porque o encontro foi marcado com ninguém e por ninguém adiado sine die. Tudo o resto todo o resto de mim de mundo fica onde está e está onde fica sem tautologias.
AS CONTAS DE ELECTRICIDADE Prometeu roubou o fogo tudo bem mas quem paga as contas do sagrado desde então? 34
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POSTURA Dura mais uma terna impostura do que as várias verdade que lhe serviram de causa. Recordando o modo como as coisas afinal não se passarão descobrem-se as lacunas que os factos sempre colmataram. Pois é esse o destino dos factos desde sempre e desde quando lutando contra os argumentos e até contra os acontecimentos.
IRREFUTÁVEL A nota era dominante depois de ter sido surda. O som era injurioso depois de ter sido meigo. O sorriso era fraco depois de ter sido franco. A palavra era dissimulada de ter sido intimamente pública. 35
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PESCA À LINHA O leitor não morde o isco das intenções. O leitor não lava as mãos antes e depois de ler. O leitor não calcula onde põe os pés quando muda bruscamente de página. O leitor não faz cerimónias quando abandona o livro a meio. O leitor não pede perdão quando se esquece de que o tempo está a aquecer mas o seu corpo a arrefecer para além do razoável. O leitor não perdoa nem morre da cura.
DISSERAM-ME OS FAUNOS longas conversas de fama e proveito o corpo queixa-se da hora e a língua do medo procurei no baralho algum trunfo da carne batoteira mas saiu-me a carta do esqueleto 36
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MANUAL DE INSEGURANÇA VIÁRIA Esvaziar os bolsos na primeira ocasião. Partir à última da hora incorrecta e expressivamente. Preferir as intenções às atenções. Dizer em todo o caso mas pensar em caso contrário. Expelir fumo pelos olhos sem outra explicação.
PELA MANHÃ Reparar que o bafo dos grandes bichos vem lamber os nossos vidros e depois as nossas mãos. 37
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FOCINHO FOI SONHO ta gueule qu’elle me dit, ta gueule et je me demandais de quelle gueule ça causait et pour quelle cause ça gueulait
TOO LEITE e bebendo dum só trago a primeira imagem matinal nasço e logo me desvaneço sem sair do estado líquido sem voltar ao estado de graça
de súbito a minha língua estrangeira-se e fica pronta a ser falada por bichos de outra espécie plantas andarilhas de fraca clorofila peregrinos em miniatura e sobretudo olhares de longa cintilação e obturação lenta
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STREET ART Corri para a rua e gritei para ver se o incêndio me obedecia. Mas a rua virou-se como uma luva e atacou-me de tal jeito que me vi obrigada engoli-la. «És dura de comer e chorar por mais.» comentei. A rua foi crescendo e chorando cá dentro tal uma música de andaime que não larga os fígados. Fez sucessivas obras em mim. Fez-me esquecer a razão do pânico a oportunidade da fuga o desacato do desejo. Resta-me a vaga impressão de ter sido ultrapassada pelos sentimentos pelos sofrimentos. Resta-me a visão do banco de jardim sempre pintado de fresco o sono que lá não se dormiu o beijo que lá não se deu ou recebeu.
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A LONJURA Cada telhado me separa do céu. Cada telhado me separa do horizonte. Cada casa me parece torre de Babel. Cada casa me parece um prelúdio de ruína. Tapo os ouvidos mas ouço a voz dos olhos agora mais convincente.
TRISTEZA PRÉ-HISTÓRICA como se estivesse de castigo desde sempre como se ficasse de costas para sempre como se ficasse fora de mim e de causa como se estivesse fora de alcance e de perigo porém esperando um vento capaz de me empurrar até outro ponto de vista 41
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MOIRAMA vem pela mão da luz mas deseja ficar ao pé da sombra vem a passo de caranguejo rasgando o passado no sentido da noite para o dia do solo para o sol da silva para o silvo de muro para muro pois os meus dedos remendam com perfeita costura antes do rasgão que deveria ser ou ter sido inesperado por definição vem e vê por essa ordem ou por outra surpreende-te uma só vez com essas criaturas disfarçadas de primavera que correm até morrer mansamente nos nossos braços e também com os vendedores de bom tempo escondidos atrás das falsas moitas – quiosques, caixas de correio, estátuas e vasos monumentais – anunciando o degelo a palavra degelo com vozes de cumprir muitas promessas às quais de antemão já se faltou vem e vê pela tua ordem e jamais pela minha
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COM RODAS para o caminhante que desiste meio caminho passa a ser caminho inteiro para o paralítico que acredita meio caminho passa a ser a verdade em marcha no melhor caminho cai a mancha a mancha de sol e a mancha de sombra Pança e Quixote cambiando e descambando e o lume murchando nos machos em chamas onde o escuro já não puxa nem empurra
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DDT Num sonho difícil – isto é: difícil de sonhar – eu procurava o motivo de uma nova inquietação. Em lugar dele descobria que as crianças têm razão quando têm medo dos palhaços. É o ar de palhaço que faz de Donald Trump um ser assustador à primeira e à segunda vista. Desse sonho difícil talvez não seja eu própria a acordar. Imagino ainda sonhando que tu despertas rodeado de mulheres estremunhadas e de pássaros guerreiros chilreando para cobrir o barulho das armas. Imagino-te acordado com nuvens no papo e brilhos teatrais na poupa. E depois tirando a máscara atrás da qual outra máscara atrás da qual outra máscara e por aí fora
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ONCE UPON A SPACE com uma frase em idioma centrífugo cuja cauda o chão atravessa o salão num só fôlego arfando sedas velhas em jovem pulmão a sua simples passagem evoca uma multidão de visitantes boquiabertos que deambulam no palácio e se quedam por fim frente à moleza petrificada de um polvo de faiança a bela e gigantesca devoradora de livros espia encostada a um esquisso de coluna essa ninfa de água pouca chamar-se-ia regra geral lá fora palavras secando ao sol peças de roupa roubada
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REZA um pouco mais de tacto um pouco mais de olfacto e o meu reino enfim trocado por terras virgens de facto beleza já semeada pelas mãos do pensamento onde outrora outras mãos julgavam colher sustento um pouco deste horror de haver colheita pouco menos que paisagem devastada um pouco como a porta arrombada doravante será porta sempre aberta um pouco e pouco mais nos bastaria para ficarmos em boa companhia escolhendo o humor negro do sagrado e o rumor de tanta pedra liquefeita
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TIRAR O CAVALINHO DA CHUVA A conversa começa porque eu não tenho troco mas, de pergunta em exclamação, espraia-se até ao espanto. Afinal, no mundo artificialmente iluminado pela razão, ainda haveria lugar pelos extermínios sem fim. Tu que te calas conversando diz-me quem me ouve ou pelo menos quem nos vê agora que todas as estradas se cruzam no meu olho como se eu as tivesse percorrido à tua procura. Passam alegres caravanas e animais escanzelados e eu tenho entre cinco e dez anos transportada de janela em janela. Aperta-se-me o peito quando imagino que todos vêem o que não vejo inclusive os mais velhos e mais mortos. Divido então as estradas pelos desejos de ser tida entre mais tarde e nunca: estradas de luz universal estradas de sombra verde estradas no lombo animal estradas da dança das sebes. Ó mão que vens comer onde falta o alimento retira os dedos da minha nuca retira as garras dos meus rins e fala-me a língua dos aflitos buscando o corpo dentro do corpo e já agora fora dele também. 48
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DESINÊNCIAS Desde quando coleccionas cordas sensíveis e calcanhares de Aquiles? Desde quando todo o teu desejo é dar o flanco e o braço a torcer? Desde quando caminhas com as mãos no chão deixando o azul do azul corroer-te os pés? À tua volta vive-se de pequenas tristezas e de pequenas maldades ‒ porque não eu e pouco depois tu em mim? Olha, não te diz a consciência com a voz aguda do seu demónio que pela largura do manto se calcula o santo?
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O «ENCORE» O tempo da cópia corria no sentido contrário dos ponteiros do relógio. Mas bruscamente o mostrador ganhou pernas e os cabelos pegaram fogo procurando avidamente as vias da variação e a razão maior da fuga. A música cuspia no vazio entre as pedras e mais do que nunca a ideia da construção fazia sentido não boca de quem agradecia ter ficado até ao fim. No tempo da cópia a conversa vira conversão e a mão é feita para largar o que agarrava.
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ESTRANGULAMENTO Escrevo na primeira pessoa sobre a primeira pessoa que encontro dentro ou fora de mim sem suspeitar que pode ser a última ora trocista ora destroçada. Escrevo para a primeira pessoa que me olha quando abro a porta para uma manhã tão morna que despe e veste ao mesmo tempo. Escrevo como a primeira pessoa capaz de reconhecer que sou escrava das palavras no momento em que delas me liberto e as torno fluentes.
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CAMAROTE Do camarote donde assisto ao antes e ao depois do espectáculo avisto um ser de carne e vidro um ser de barro e osso um ser de carne e aço um ser de pão e osso. Cai o pano sobre uma paixão de escada. E acto contínuo o teatro desmorona-se deixando-me a procurar sobrevivência no meio dos escombros.
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CONVITE Se um gentil gigante me convidar a com ele partilhar o seu berço em hora de nascer o dia será que devo agigantar-me ou tornar-me definitivamente anã?
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POESIA CONCRETA A taberna do galego A loja do chinês A late night shop A vade retrosaria O armazém de tecidos O quiosque da esquina O pronto-a-vestir unissexo A florista do cemitério A garagem de bate-chapa A farmácia de serviço O cinema de bairro O correio centraliço O stand popós de luxo A mercearia finaça A sopa dos pobres A oficina de carpintaria O mediador de seguros O escritório de conthabilidade O chapitô dos saltimbancos A bomba de gasolina A bicicleta do amolador O salão de cabeleireiro africano O fecho para obras O sapateiro remendão A biblioteca ambulante A
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FÉ agora só posso acreditar numa história interminável inteiramente segredada ao meu ouvido.
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DESCONHECIMENTO Durante uma noite inteira e depois durante noites e noites consecutivas a minha cabeça é atravessada por fantasmas de comboios por mulheres em chamas espalhando as brasas do futuro por feiticeiras lutando contra o poder do feitiço. Nas ruas da minha cidade quase todas as portas conhecidas levaram sumiço: só restam as casas de chinelos as casas em pontas as casas com pés doridos as casas sangrando pelos pés. Durante uma noite inteira recebo notícias que prometem ser regulares e boas quando eu só tinha ouvido e queda para o mau agoiro e o puro pressentimento. A seguir vêm as palavras sem nexo que prometem ser infinitas e breves quando eu tenho o coração repleto de tristes princípios e finais felizes.
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FILIAÇÃO único filho buscando irmãos pródigo filho inventando culpas acaso de filho coleccionando razões fantasma de filho ocupando quartos desejo de filho enchendo barriga de histórias abandono de filho esvaziando praças vermelhas música de filho riscando a repetição da noite silêncio de filho naufragando à vista
LES CHANTS EN MAL D’AURORE a quem fazes neste fora de horas perguntas incómodas cuja resposta se transmite de mulher para mulher como alguns perfumes e penteados e quase todos os medos de agradar e desagradar? sabes que está mas não onde por isso marcas encontro no ponto mais próximo do final da recta e do fim dos tempos. eu em ti ou tu em mim teria terias ainda assim corrido até ao primeiro crepúsculo para não faltar ao prometido 58
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TEARS é coisa de crianças e velhos molhar os pés quando o mar é grande tão fria a água e o coração uma vaga distante espraiando-se na constância se devagar para o mar não acordar esta porta se abrir me abrir para um mundo de novo alagado mas alargado como roupa velha algum frio virá lamber-me os pés lembrando-me idades e semelhanças e também o esquecimento que faz delas o que são quando já não
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MEMÓRIAS DO MURO O muro portanto. Ontem só lá via o modo como as pedras se encostam mas se mantêm peças únicas dentro da parede enquanto hoje só consigo palpitar diante da robustez da barricada monolítica como um pensamento doente em perda de fluência e fluidez. Dantes o meu olhar fazia explodir pequenas flores fazia correr lágrimas de orvalho no musgo eléctrico enquanto agora toda a imagem se funde em argamassa e nessa cor parda das coisas que se preparam para fugir e morrer. Outrora o muro estava no fundo do quintal e eu corria para ele como um corcel suado disposto a transpor o obstáculo houvesse ou não plateia e palmas enquanto neste instante o muro me está diante do nariz a ponto de eu duvidar não fazer parte dele e ele de mim em mim desde sempre.
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fazem gala em fazer gala agora que turvo os espelhos alheios e quebro as águas em mil estilhaços não posso procurar as palavras que se procuram porque outras diferentes impertinentes me sobem à cabeça como um vinho traiçoeiro da sua casta frente a um prato demasiado cheio o poder sempre preferiu o crime único e o castigo exemplar da vítima aos outros modelos de auto-estima agora que corro todos os riscos num só traço e dou todos os erros à sombra de uma única frase posso ser imperdoável e não perdoada
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Ela faz-se pequena e plana até ser apenas da espessura de uma carta já sem a ilusão de ser lida tida ou achada mas ainda assim deixada debaixo da porta. Uma página biliosa e bolorenta chamuscada nas bordas sebenta e repleta de sinais gráficos que não chegam a formar palavras. Ela observa a forma literária das folhas a posição sintáctica dos ramos a densidade fonética das ervas o espaço que a afasta ou abeira dos sinais de vida que a árvore lhe envia. Pergunta a si mesma se a fotossíntese esgota a sua luz interior feita da combustão de frases de visões ao longe desde sempre desfocadas de fomes míopes em final de noviciado de surdez tragicamente selectiva de silêncios sentados num barril de pólvora de carícias passadas a papel químico de provas de suborno ao romper do dia de quedas minutadas em abismos de bolso de fontes sonoras no pulmão do deserto de chamas barricadas na biblioteca. Ela fez-se planura pequenez observação. Dizem-lhe que se faz tarde. Que ardem as metáforas. E já não curam.
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PHOTOMATON felizmente para ninguém fui ou sou senhora e paguei com moeda fora de circulação este meu defeito indesculpável por isso estive sempre em dívida e aquilo que eu devia era escandalosamente cada vez mais até ao ponto de não poder ser saldado repara como é redondo o rosto reflectido na poça de sangue que o coração derramou e a criação já espalhou mas não sou eu dirás tu pois sou tão-só o não estar à face do que não fui neste teu tempo de guerra pouca no pronto dizer neste meu tempo de paz
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DIKTAPHONE asfixiada como peixe fora de água esta é a minha palavra trazida das vagas do alto mar para a sala comum e concreta onde a vontade de morrer se senta frente a frente com o desejo de matar seta crivada em ideia indecisa de seta de mim dirás razoavelmente perto de me seres verdade que sou como a fruta tocada ‒ a menor queda o mais pequeno beliscão tornam-se focos donde alastram marcas da vil podridão e auréolas da santidade a máquina disse DIZ e eu não paro desde então
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forever old que posso agora a não ser este não poder tão forte que me força a descrever o que é vizinho da morte mas incapaz de morrer? nesta nossa longa história cabem muitas já contadas cabem casos por contar cabem todos os que escapam ao desplante de narrar perguntam as velhas aves às crias da pradaria se as patas com que nasceram e as almas em crescimento estão bem assentes no chão perguntam as velhas aves que o vento empurra até nós como usamos as rajadas perguntam as velhas aves fugidas à tempestade como usamos os trovões perguntam as velhas aves perseguindo a primavera como se perdem estações 66
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nesta nossa longa histĂłria cabem todas as perguntas e ainda algumas penumbras que me deixam descansar e nunca estar descansada
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Perder-me antes de te perder Perder-te antes de me perder É essa a fotografia quase erótica do calendário de parede É essa a frase quase enigmática do arauto sem notícias É essa a calamidade imitando outras calamidades É essa a calma que cai do céu além do céu e se espelha sobre as águas e se espalha sobre a terra É essa a imprevisão e o grau de mágoa com que encaramos sempre de antemão a sucessão dos presentes
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PERSA A PERSIANA nós que nos correspondemos longe de destinos e destinatários fixos sabemos das verdades e das mentiras do eco como os pastores nas encostas e como eles gostaríamos de partilhar comidas íngremes e duras pão e queijo de quebrar dentes nós que dividiremos a dúvida pelas aldeias e nos desculparemos com falta de escola com falta de escala nós que esperaremos pela vez que não vem para tomarmos a palavra que não temos frente aos cães e aos companheiros de armas nós verdades de encosta nós pastores de ecos nós cedendo o lugar do rigor nós procurando a palavra exacta reconhecemos que é mágico o poder de encaixe pois devolve o tamanho às coisas e o nome aos mendigos que o poder mágico se assemelha ao da música que assiste e persiste até conseguir carpir as mágoas de sua invenção sem que nós olhemos para trás
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reconhecemos as imagens colhidas e encolhidas pelo caminho mais longo mas também todas as outras que o desejo não agarra e as mãos deixam cair tremendo... nós que nos correspondemos cometemos o mesmo erro até que ele nos corrija
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PRÉ E PRÓ eis-me cabisbaixando à terra diz aquela a quem chamam vendedora a metro do tecido feito de palavras alheias eis-me distinguindo entre as linhas quase paralelas e as linhas mais que paralelas eis-me aprendendo a falar a língua de uma só pessoa que é língua de uma pessoa só eis-me corando de vergonha pela minha voz embargada pela minha obra embargada eis-me menos que paisagem menos que espada menos que gume
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Descolar os pés do chão Descolar os olhos da visão Descolar o tempo da sucessão Descolar o exílio do lugar Colar palavras às tentativas Colar pausas às tentações Colar silêncios aos atentados Sabendo que o diabo não precisa de advogados.
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A DECÊNCIA DAS ALMAS À MEDIDA Quando quiseste desfolhar o álbum das recordações talvez nem tuas alguém arrancara as fotografias e se servira das páginas para colar receitas de cozinha e secar flores díspares escandalosamente perfumadas Cabisbaixa saíste de casa pela sombra da sombra e foste até ao lugar de passagem ao lugar do teu passado onde as casas se dobram para nos deixar passar Era um dia longo de dar nomes de árvores às ruas e de chamar as árvores pelos nomes Era um dia de langores em que o pó das infâncias por contar ou inventar quase fazia desaparecer transeuntes e pessoas e sorrisos a despropósito Era um dia de maus rapazes reunidos numa só pessoa e o tempo tinha como única função forjar-lhe desculpas e inventar a própria beleza como forma de desculpa 76
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O TABU DO DESMAZELO E ALEGRIAS NOS ANTÍPODAS Aqui é o lugar onde ninguém nos vê ninguém nos ouve. Ultrapassados os diferendos as cicatrizes que pareciam autónomas começaram a abrir-se e todos pensaram que elas bocejavam isto é nenhum dos desinteressados quis acreditar que dali podia jorrar sangue. Donde dali aqui. Daqui para ali. Com cá sem lá. Com. Sem.
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COMPÊNDIO DE SINTAXE SUBORDINADA INTEGRANTE
Eu sei que as ideias se esvaziam de sexo. Eu creio que levantar paredes me rebaixou. Eu quero que desdém e dança se completem. Eu desconfio que deus vai deturpando as verdades. Eu suponho que a voz pernoita em pequenas ilhas. Eu prometo que a cabeça se encosta a um peito ofegante. Eu esqueço que daqui se parte mas aqui mais ainda se regressa.
ORAÇÃO ADVERSATIVA Eu conheço mas também não. Eu concluo todavia estou perdida. Eu aprecio porém ando arrependida. Eu concordo contudo isso dói muito. Eu entendo no entanto até me enterro. Eu animo não obstante faltar-me alento. Eu desejo ainda assim vejo mal ao longe. 78
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PROPOSIÇÃO COPULATIVA Eu faço figas e como figos. Eu tanto me canso como me encanto. Eu espero tanto quanto me espio e me espalho. Eu não me imagino e também não sou imaginada. Eu não só visto a nudez como avisto desnudamento. Eu nunca faço bem o bem, além disso faço mal o mal. Eu não fodo como quem foge nem fujo como quem fode.
INSUBORDINADA FINAL Limpam-se as armas para que a morte não seja natural. Limpam-se os olhos para que a morte não seja sobrenatural. Limpam-se as casas para que a morte não seja contra natura. Limpam-se os dados para que a morte não seja contra-cultural.
ORAÇÃO NOCTURNA Dormem nus os braços nus mas não dadas as mãos Dormem as pernas loucas mas não as orelhas moucas. Dormem as mamas velhas mas não as velhas manias. Dormem as duras nádegas mas não as doutas náuseas. Dormem as músicas mágicas mas não as magias frásicas. Dormem as musas amuadas mas não os mundos mudados. É sempre tarde quando o sono foge. É sempre cedo quando o sono arde. 79
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Regina Guimarães, verão de 2017
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ÍNDICE
Nascer órfão.......................................................................................................2 Naître orphelin.................................................................................................4 Fada do sono perpétuo..................................................................................8 Mort fée.............................................................................................................10 Regressado.......................................................................................................12 Revenant...........................................................................................................14 O cão traiçoeiro..............................................................................................16 Le chien fourbe..............................................................................................18 Despacho..........................................................................................................20 Dépêche.............................................................................................................22 Casus belli........................................................................................................24 Casus belli........................................................................................................26 Moriturus.........................................................................................................28 Moriturus.........................................................................................................30 CHITAS...............................................................................................................33 VARIAÇÕES SEM TEMA..............................................................................34 O SERVO DO VICE-REI.................................................................................34 AS CONTAS DE ELECTRICIDADE............................................................34 POSTURA..........................................................................................................35 IRREFUTÁVEL.................................................................................................35 PESCA À LINHA..............................................................................................36 DISSERAMME OS FAUNOS........................................................................36 MANUAL DE SEGURANÇA VIÁRIA.........................................................37 PELA MANHÃ..................................................................................................37 FOCINHO FOI SONHO..................................................................................38 TOO LEITE........................................................................................................38 STREET ART....................................................................................................39 A LONJURA.......................................................................................................41 TRISTEZA PRÉ-HISTÓRICA......................................................................41 MOIRAMA.........................................................................................................42 COM RODAS.....................................................................................................44 DDT.....................................................................................................................45 ONCE UPON A SPACE..................................................................................46 REZA...................................................................................................................47 82
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TIRAR O CAVALINHO DA CHUVA...........................................................48 DESINÊNCIAS.................................................................................................50 O «ENCORE»....................................................................................................51 ESTRANGULAMENTO.................................................................................52 CAMAROTE......................................................................................................53 CONVITE...........................................................................................................54 POESIA CONCRETA......................................................................................55 FÉ.........................................................................................................................56 DECONHECIMENTO.....................................................................................57 FILIAÇÃO..........................................................................................................58 LES CHANTS EN MAL D’AURORE...........................................................58 TEARS................................................................................................................59 MEMÓRIAS DO MURO.................................................................................61 fazer gala em fazer gala..............................................................................62 … Ela fez-se pequena e plana…...............................................................63 PHOTOMATON...............................................................................................64 DIKTAPHONE..................................................................................................65 forever old........................................................................................................66 … Perder-me antes de te perder…..........................................................69 PERSA A PERSIANA......................................................................................70 PRÉ E PRÓ........................................................................................................73 … Descolar o pés do chão….......................................................................74 A DECÊNCIA DAS ALMAS À MEDIDA....................................................76 O TABU DO DESMAZELO E ALEGRIAS NOS ANTÍPODAS.............77 O COMPÊNDIO DE SINTAXE.....................................................................78 SUBORDINADA INTEGRANTE.................................................................78 ORAÇÃO ADVERSATIVA.............................................................................78 PROPOSIÇÃO COPULATIVA......................................................................79 INSUBORDINADA FINAL...........................................................................79 ORAÇÃO NOCTURNA...................................................................................79
Este é o livro-rasto de um conjunto de livros de artista realizados por Alberto Péssimo, em parceria com Saguenail e Regina Guimarães 83