O ALÉM À VISTA A estreia de Amor Eterno coincidiu em França com um período de acesa polémica em torno da problemática da eutanásia, do suicídio e da morte doce. Aproveitando com ironia esta rampa de lançamento Resnais desvia totalmente a temática da morte dos seus limites pragmáticos. O cineasta recusa-se a contornar a questão como habitualmente acontece com os discursos sobre o alívio da dor física ou espiritual. Trata-se de descortinar a esperança que o homem deposita na morte. Para tal Resnais serve-se duma ficção que não pretende brilhar pela verosimilhança mas antes interrogar através duma abordagem sem rodeios. As personagens são atiradas para a prefiguração da morte ao serem apanhadas pela experiência bizarra vivida por Simon, experiência a priori impartilhável. Judith, Jerôme, Elisabeth e Simon são dados como portadores de uma história mas não são «aproveitados» do ponto de vista psicológico. Nem sequer a morbidez essencial ou acidental dos segundos. A escolha dum casal protestante como contraponto do ateísmo professado pelo casal de investigadores obedece ao critério de despojamento acima mencionado: à crença em Deus está atrelada uma teoria sobre a morte, um conhecimento activo dos textos sagrados e uma prática pastoral. A rede da ficção não apanha os protagonistas por acaso. Resnais não recua perante a necessidade de devolver corpo a uma imagem da morte. Pela boca de Simon relembra-nos uma ficção do além parente da iconografia de Bosch — um além povoado de almas, inundado de luz. Oferece-nos, porém, uma segunda imagem obsessiva (52 vezes repetida): uma orquestração de queda suspensa, algo evocadora da neve sobre fundo de noite. Esta última, dádiva para uso colectivo. Para não falar do mito de Orfeu e Euridice (subjacente à ideia de acompanhar o amante para além da morte), da imagem de corrente (passagem para a outra margem) da alusão ao rio (cruzeiro no Missouri)... Resnais avança uma proposta de religião humana, em que a fé circula de ser para ser. Esta religião fornece tantas respostas como qualquer outra, inclusive à interrogação sobre o além. Com algumas vantagens até, pois Jerôme, estudioso e crente, duvida. A própria construção do filme corrobora a necessidade de escala humana. O número reduzido de cenários que parecem destinados unicamente a pré-enquadrar a cor dos personagens que neles se posicionam com realeza é a este título exemplar. O amor é elevado a critério absoluto. Seria lícito aliás perguntar se é a morte que põe à prova o amor ou se é o amor que põe à prova a morte. Assim a esperança na morte pode no mínimo reorganizar a vida e talvez reconciliar o homem com a própria morte. A invenção da morte é tão útil como as chaves simbólicas da vida. O que pode fazer do cinema uma arma terrível. R. G. e S. Será que o discurso cinematográfico não tem direito à gravidade? O tradutor-legendador, achando com certeza que os diálogos aumentavam o peso do filme, não hesitou em desviá-los, tal como fizeram antes os situacionistas, metendo um toque (?) de burlesco na poça metafísica do filme («acho que não irei mais à basílica» em vez de «não sei se o mangericão vai chegar»). Não podíamos deixar de tirar o chapéu a esse sabotador — que outrora escrevia os discursos do presidente Tomás?...