O DESPEITO DE SER PORTUGUÊS Eis um filme para ser recebido como a absurda ficção dum trauma. Há nas imagens de NON algo que persiste em doer, algo que resiste, sete dias depois da primeira visão (da visão virgem?), ao acto de recapitular ideias, ordenar impressões. Manoel de Oliveira dedicou aos seus netos esta obra apregoadamente humanista; mas dela fica-nos o travo da iguaria barroca e envenenada. Todos, julgo eu, lá topam o despeito de ser português que tão rotineiramente maquilhamos de orgulhosa certeza do insucesso — é a nossa maneira de contornar o NON que Deus (?) nos berra. E como também me calhou andar na odiosa escola do antigo regime (digo odiosa e não me esqueço), é com alguma emoção que saúdo no NON o esvaziar de certos mitos (maiores, menores) fundindo-os na personalização da chaga chamada sebastianismo. A VÃ GLÓRIA DE MANDAR é um cortejo hábil e confuso, um desfile desencontrado de lutos, mesmos e outros, e o tema do filme parece ser a morte que coroa essa batalha inelutavelmente perdida. António Nobre, nosso conterrâneo, desvairado entre o exílio e o reino, não andou longe de semelhantes aflições. Na derradeira cena que se desenrola na enfermaria do hospital, o olho apavorado de um ferido (tal câmara, tal múmia) vigia a passagem de um corpo a cadáver. Nesse sentido, o sebastianismo à Oliveira obedece ao mecanismo da transferência: é o ajuste de contas do alferes Cabrita com a História enquanto relato de morte e com a morte «em pessoa» através da História. «Encoberto» como a verdade inacessível que afinal ninguém deseja conhecer. «Desejado», isto é, temido e conjurado como Sebastião que «graças a Deus» não volta. Aliás o NON torna-se eloquente mediante a proposta constante de simetrias abusivas (muitas delas passam pelo derramar do sangue, laço obscuro, sinal de inclusão e de exclusão) e sobretudo mediante o exercício duma autoridade selectiva que, longe de ilustrar a História, a amordaça. Como entender de outro modo o paradoxo do nostálgico império ibérico: ao luto duradoiro de D. João II e do povo pelo filho e pelo sonho associa-se o ponto final de Alcácer Quibir que, a bem dizer, abriu as portas à mais real oportunidade de união peninsular. Como compreender ainda que a máquina do mundo, recompensa do descobridor, seja escamoteada no episódio da ilha dos Amores e sugestivamente substituída pela ideia mais chã de pito? Como interpretar a relação entre o título evocativo do velho do Restelo e a grande epopeia da espera (filmada como tal) que começa com Alcácer Quibir? Viriato defendeu uma nação que não existia — o risco que Oliveira serenamente corre é exaltar uma nação que existe não existindo, ou seja uma ética nacional do NON-SER para viver de cabeça levantada. Porque, se a verdade é inacessível, a dádiva, segundo se depreende do filme, é por demais abstracta. Sebastião regressa intacto de um útero de nevoeiro, a espada, que suas mãos brancas apertam num espasmo, jorra sangue (da terra-mãe violada?); mas o alferes Cabrita morre por ter olhado o inimigo (até então «oculto») nos olhos. Partindo de um processo simplicíssimo e ousado de narração, o realizador demonstra que os vivos são-no menos do que os mortos, colocando assim no edifício discursivo uma pedra de toque universal: qual o valor afectivo da historicização do passado? Todavia, a tentação de falar para a humanidade, utilizando recursos vulgarmente conotados com o épico, nem sempre trabalha a favor do filme: o estandarte do anónimo decepado e a colorida mancha de Sarracenos são somente folclóricos se comparados com as duas armaduras moribundas de Dória e Cintra a caírem nos braços um do outro, ou com o grito literalmente visceral do preto, abafado, após um instante de silêncio, pelo ruído da «vã» metralha. São bastantes os momentos do filme em que o autor hesita entre várias soluções plásticas, entre o seu saber-fazer e o irrisório sistema de som-e-fúria que lembra os tiques da superprodução. Em contrapartida o desenho dos diálogos, esse sim genuíno instrumento de distanciação à boa maneira de Oliveira, pareceu-me precário de forma, embora parta de uma opção interessante (um discurso professoral num filme anti-didáctico) e recorra com humor às mudanças inesperadas de registo. A «voltinha» donde o alferes Cabrita não volta surge quase como urna chave retórica do filme. Quero acreditar que NON é um filme NON-patriótico quando nele vejo que a pátria se perde em si própria e, por minha parte, aceito perder-me na dádiva vital e indizível de Manoel de Oliveira. R. G.