O jogo só vale se for gratuito

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O JOGO SÓ VALE SE FOR GRATUITO I. AS REGRAS DO JOGO Após a sua obra-prima DIMANCHE, que, ao descrever uma lenta petrificação do mundo onde o humano se perde no meio duma natureza fossilizante, podia ser lida como um testamento, E. Bernhardt realiza uma última curta-metragem: ÉCHEC. Trata-se de um filme de animação em que, a partir de uma partida de xadrez (échecs) inicial, os movimentos são retomados em sentido contrário desde o último — a jogada fatal antes da morte — e todas as alternativas são encaradas, cada qual desembocando infalivelmente no mesmo resultado desastroso até à jogada inicial: numa cadência vertiginosa, as partidas caminham aceleradamente para o cheque-mate da «derrota» («échec») que o singular do título anunciava: a partida estava antecipadamente perdida, todas as tentativas de impedir o desenlace final deviam ser examinadas, mas por puro descargo de consciência, apenas para verificar a inevitabilidade da derrota. Como escapar ao determinismo de um jogo cujas regras mais não fazem do que preconizar a nossa perda — princípio da roleta vietnamita? O jogo não passa evidentemente de uma metáfora do destino, do acaso, e pode ser alargado aos campos do jogo social, do jogo do amor, etc. Haverá verdadeiramente escolha? A liberdade será somente uma ilusão? Borges analisou tanto o desaparecimento conceptual do jogo — em «A lotaria na Babilónia» onde a extensão da lotaria conduz certos «heresiarcas» a pôr em dúvida a sua existência ; mas o «infinito jogo dos acasos» permanece — como a hipótese de o modificar: na bibliografia imaginária de Pierre Ménard encontra-se «um artigo técnico sobre a possibilidade de enriquecer o jogo de xadrez eliminando um dos peões da torre. Ménard propõe, recomenda, discute e acaba por rejeitar essa inovação». Um lance de dados nunca abolirá o acaso mas a multiplicação de lances, ao fazer intervir a lei dos grandes números, tornará vã qualquer ideia de alternativa, reduzirá ao princípio de equivalência os efeitos do acaso, conservando apenas a repetição maníaca do gesto que faz rolar os dados como quem esbarra nos limites da sua própria condição. O último filme de Resnais surge como uma variação sobre essa irrisória ilusão de livre-arbítrio que o jogo reduz a nada. Trata-se de 12 hipóteses de vida distribuídas por 6 personagens principais — que formam potencialmente 9 casais — sendo cada um suposto fazer pelo menos uma escolha das 11 que Resnais propõe. A estrutura do filme pode ser representada sob forma de árvore à qual se sobrepõem as opções de construção e desconstrução de pares. Todavia, constata-se que as opções só conduzem efectivamente a falhanços: o sucesso social implica, em cada aventura, qualquer que seja o protagonista, um «sem» que corresponde à renúncia no plano sentimental. Por outro lado, todos os caminhos vão dar a Roma e todas as sequências finais (n° 4, 5, 7, 8, 11 e 12 em SMOKING, n° 4, 5, 8, 9, 11 e 12 em NO SMOKING) decorrem no cenário da igreja/cemitério. Se os enterros (de Toby e do pai de Lionel) que pontuam o primeiro filme são aparentemente compensados pelas festividades (baptizado que serve de fecho a


SMOKING, missa da meia-noite e casamento em NO SMOKING), a aceleração do regresso do cenário, inerente à estrutura do filme, reforça a ideia de equivalência de todos os movimentos, profundamente marcados pelo insucesso, social, ou pelo menos, sentimental.

Assim a aparente infinidade das possibilidades — convém contudo realçar que certos casais potenciais não se formam e que todos os casais que infringem as barreiras hierárquicas sociais acabam por se separar, etc. — reduz-se a uma amostragem de falhanços equivalentes na sua essência. A ostentação do jogo acentua a previsibilidade do resultado — que apenas vem confirmar, por uma outra via, o condicionamento descrito em MON ONCLE D'AMERIQUE. No entanto, a estrutura tem de ser reconstituída porque o filme aparentemente multiplica as alternativas — «ou então» («ou bien») — para as reduzir de maneira subreptícia a um único cenário que cristaliza todas as ilusões humanas, ritmando o percurso da vida, do baptismo ao funeral.


II. O JOGO PELO JOGO Se no fundo se revela impossível não perder neste jogo da vida em que os lutos são mais numerosos do que as epifanias, resta o prazer gratuito do jogo. Com base num esquema complicado em que, de oito peças distintas com 16 desenlaces diferentes na obra de Alan Ayckbourn «Intimate exchanges», Resnais tirou este jogo de recuos no tempo no qual as divergências acabam por convergir, o cineasta multiplicou as regras e os obstáculos: cenários de estuque cuja vivacidade assenta apenas num trabalho de variação de luz, dois actores caracterizados de forma a poderem representar cada qual um mínimo de quatro personagens, o que obriga a uma difícil gincana onde se cruzam entradas e saídas de campo — seria interessante averiguar que prioridades orientaram o plano de rodagem, se por exemplo os actores tiveram de mudar de papel todos os dias ou se puderam explorar cada personagem em continuidade... Nas suas «Meditações metafísicas», Descartes prova a superioridade da razão em relação aos sentidos, do abstracto em relação ao concreto, do intelecto em relação à imagem, através do exemplo do chiliogono: ninguém consegue conceber uma representação visual dum polígono de mil lados; ninguém o distingue do myriogono de dez mil lados — figuras teoricamente concebíveis mas visualmente inimagináveis; só a razão pode evidenciar a diferença entre as duas figuras e a relação de 1 para 10 que as distingue. Ora Resnais inverte este primado: as duas figuras são equivalentes enquanto polígonos e só a ínfima diferença de ângulo, mais ou menos confundível com um arco de círculo, terá um sentido porque será visualmente perceptível. Godard dissera o mesmo doutro modo: «O importante é a nuance». SMOKING/NO SMOKING é uma aposta no imaginário cujo interesse decorre não tanto de uma estrutura que aniquila o sentido de cada hipótese em si, nem mesmo das proezas formais que a isso se vêm juntar, mas sobretudo da exacerbação dramática de cada uma das sequências, da louca reclusão na «cabana» à burlesca cena das sobremesas ou do terreno de golfe. Com efeito, dado que Resnais joga sistematicamente na decepção — a situação desencadeada dá uma reviravolta completa «cinco anos mais tarde» —, é o absurdo excesso das situações intermediárias que ganha relevo antes de as vermos reduzidas ao mesmo denominador pela cena final da igreja. Do teatro de boulevard — as visitas, do jardineiro ou do amigo — transita-se para uma situação de tensão, pelo facto de a infracção encarada ser impossível — o jardineiro apaixonado pela patroa, a criada que decide estudar, o amigo fiel que não se atreve a trair, o professor que foge com a criada — e depois para uma cena de desencontros em cataclismo, tão absurda quanto grotesca. Embora o infinito se revele limitado, é à exploração desses limites que o cineasta, em última análise, nos convida: mais do que um trabalho de montagem de um mecano ou de um puzzle, ele oferece-nos uma tentativa de desengrenar sistematicamente os mecanismos. Quando Alice se torna rainha só lhe resta acordar: é o percurso que faz sentido, não a meta. S.


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