O PASSEIO DOS TRISTES Depois do grande vazio dos anos 50, parece relativamente fácil estabelecer urna periodização em função do aparecimento de novas gerações de cineastas — com Manoel de Oliveira a servir de ponte entre todas as vanguardas: da nova vaga e dos «anos Gulbenkian» — Paulo Rocha, António Reis e Fernando Lopes — passando pelo pós-25 de Abril — João César Monteiro, João Botelho e Jorge Silva Melo — até à nova geração que surge no decorrer dos anos 80 e da qual Teresa Vilaverde é um dos nomes que se impõem. Neste contexto, José Avaro Morais faz parte desses autores cuja obra tem passado demasiado despercebida. Com efeito, as próprias condições de financiamento (estatal) do cinema português aparentemente favorecem a regularização da produção de um autor, a partir do momento em que é reconhecido; todos os autores com este percurso puderam, numa primeira fase, encarar a hipótese efectiva de realizar um filme de quatro em quatro anos. A inviabilidade de um sistema deste tipo (em que o estado financia mas não contribui com um centavo que seja do seu orçamento) começou a manifestar-se claramente há alguns anos a esta parte, e o cinema de autor, milagrosamente preservado em Portugal, encontra-se doravante mais ameaçado que noutros países: Paulo Rocha vê os seus projectos rejeitados, todos os cineastas-autores se vêem mais ou menos obrigados a contentar-se com trabalhos de encomenda — e a apresentar-nos subprodutos de cariz televisivo. José Álvaro Morais, devido à sua longa aventura com a produção de O BOBO perdeu, por assim dizer, o comboio da institucionalização do cinema português. Todavia, ZÉFIRO, documentário de encomenda para Lisboa-94, apresentase como um discurso ambicioso e como um filme assumidamente de autor — o que não fora o caso de nenhuma das fitas de encomenda que outros colegas de profissão aceitaram rodar para poderem continuar a trabalhar. Além disso, a despeito dos limites do género — documentário paisagístico — ZÉFIRO situa-se numa linha de continuidade em relação a O BOBO e permite descrever certas características da arte de José Álvaro Morais que, a par dum notável sentido do enquadramento, individualizam o seu contributo original. Tanto em O BOBO como em ZÉFIRO, estamos perante o princípio das narrativas paralelas: duas ficções entrelaçadas — a encenação da peça adaptada de Alexandre Herculano e as relações conjugais entre Francisco e Rita ameaçadas pelo tráfico duvidoso de João em O BOBO; a fuga do assassino e o comentário do «narrador» em ZÉFIRO — que poderiam cada uma constituir o tema dum filme autónomo mas cujo sentido se modifica graças ao paralelismo estabelecido; a estes duplos fios condutores vêm juntar-se outros episódios, aparentemente menores, que acompanham as ficções centrais: a rodagem do filme de Rita em O BOBO, a cavalgada da moira em ZÉFIRO. O sentido das ficções emerge aos poucos, dialecticamente dos seus pontos comuns e dos pontuais contrapontos que o cineasta introduz na obra. Assim, O BOBO está centrado em torno do motivo da traição — porém, como a «traição» dos cavaleiros portugueses e de D. Bibas é, profundamente, fidelidade a valores superiores, a
traição de João torna-se, por contacto, algo incerta (a própria polícia não consegue percebê-la) e põe em causa o ideal revolucionário inicial —, ZÉFIRO constrói-se em torno da fuga, do assassino, mas também dos mouros empurrados para fora do território português e mesmo dos marinheiros. José Álvaro Morais tece as suas tramas ordenando a montagem até ao plano em que os elementos dos dois filmes se encontram simultaneamente em campo — João a fotografar os ensaios de O BOBO, o assassino e a moira a fugir cada qual na extremidade duma panorâmica. O BOBO, que problematiza uma crise ultrapassada após um sacrifício — o de Dulce, Garcia e Egas na peça; o de João na ficção extrateatral —, constitui o melhor (e um dos únicos) filme sobre a ressaca do pós-25 de Abril. O desfasamento entre os valores que presidem à fundação do reino e as da actual «democracia» portuguesa induz-se da diferença entre o comportamento privado de Francisco — que procura não ver o que se passa à volta dele — e a sua personagem dramática, do próprio vazio que o paralelismo entre João e Egas produz... No âmago do diferendo entre Francisca e Rita, está a escolha entre partir — justificação egoísta, secundária e retrospectiva da traição de João — e ficar — simbolizada pela corrida de Rita no «filme dentro do filme» em frente ao padrão dos Descobrimentos para ir chorar no ombro do pai (reconciliação com o habitus burguês). Este mesmo dilema encontra-se presente em ZÉFIRO — traduzido mais uma vez pela omnipresença dos marinheiros que estabelecem um elo de continuidade formal, a par da referência cavaleiresca entre os dois filmes. No entanto, o discurso mudou: o esvaziamento dos valores míticos da fundação do reino, que, de forma ambígua, a encenação do drama de Alexandre Herculano representava, foi substituído por uma afirmação dos valores de adaptação — judeus-árabes que se tornam cristãos — face ao frio rigor nórdico. A ambiguidade é anunciada desde o princípio visto que, embora o filme descreva um percurso geográfico que conduz ao Sul e ao mar, o assassínio que desencadeia esse percurso revela-se duvidoso: a situação aliás repete-se e o crime não se cumpre; o narrador, no fim do seu périplo histórico toma o lugar da testemunha inicial (Corto Maltese) e não hesita em intervir. No fim de contas, não há nem assassínio — nem porventura traição no BOBO — mas sim engano, confusão de identidade, de pólo (Sul ou Norte), de santo fundador (Vicente ou António). No coração da trama que José Álvaro de Morais urdiu, encontramos um nó cego e impossível de desatar que é a própria identidade do português que não partiu. Cineasta marginalizado, fortemente ligado a imagens fantasmáticas, como o país marginalizado em relação à Europa e saudosista de mitos que não correspondem à sua condição, José Álvaro Morais compreendeu que o sentido do épico decorre duma interpretação formal do real, assumindo o anacronismo curioso dum cinema épico — tal uma cavaleira moira na planície alentejana. S.