O princípio homeopático – o mal para o bem

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O PRINCÍPIO HOMEOPÁTICO (O MAL PARA O BEM) Existem na história do cinema alguns pares realizador-actriz célebres — Sternberg-Dietrich, FelliniMasina, Godard-Karina, Cassavetes-Rowlands, etc. É possível constatar um deslizar na obra destes realizadores cujos filmes acabam por encenar a história da relação com a actriz sob uma forma sublimada mas reconhecível apesar de tudo. O par Rossellini-Bergman não escapa à regra; muito pelo contrário, esta relação foi encenada desde o primeiro filme. Talvez a inspiração salte menos à vista pelo facto de a personagem masculina ocupar sempre um lugar menor no filme e desempenhar um papel secundário na ficção, «ultrapassado» como é por toda a atmosfera física e cultural em que a actriz se move. Por outro lado, LA PAURA surge como um filme-charneira na obra de Rossellini: fita de ruptura, não só com Bergman, mas com o cinema de ficção convencional. Paradoxalmente, antes de passar aos filmes «didácticos», Rossellini realiza o seu filme mais «clássico», ao nível da intriga, e mais intemporal. Ao mesmo tempo, o filme desmonta definitivamente a forma ficcional — nesta perspectiva, articula-se em dois tempos completamente distintos. A partir da personagem do marido, uma das raríssimas personagens totalmente negativas da história do cinema — e da obra de Rossellini —, é-nos decerto possível despir a mensagem de Rossellini e o seu método. Toda a primeira parte apresenta a culpa — à luz dos critérios da moral burguesa — e a culpabilidade da mulher. Este sentimento é encarnado pela chantagista que lhe faz pagar a culpa. Mas a verdadeira culpa é a mentira constante a que a mulher está condenada perante o marido, mentira da qual ela própria é juiz e pela qual se auto-condena. De repente, o espectador descobre, antes da própria heroína, que o marido domina o jogo de manipulação: resta tão somente a culpa original, a mentira foi provocada pelo marido auto-eleito juiz e carrasco. Ao revelar a mola da intriga, o filme demarca-se da ficção e desenvolve-se no plano da demonstração: tanto a culpa como o castigo não passavam duma ilusão da mulher, de facto manietada — a mensagem não anda longe da de Bergman em O OVO DA SERPENTE, mas a estratégia é radicalmente diferente, logo, o sentido profundo. Mas o desfasamento temporal entre o conhecimento da verdade pelo espectador e pela personagem permite desmantelar o funcionamento da ficção: ao acompanhar a heroína nos seus sentimentos, era o espectador que estava a ser manipulado. Quando a heroína por sua vez descobre o papel do marido, livra-se do marido e da culpabilidade. Por seu lado, o espectador teve tempo para se libertar também — da adesão à ficção vivida pela heroína a qualquer espécie de ficção cinematográfica. Este segundo grau — a distanciação — opera-se graças ao estatuto nitidamente simbólico da personagem do marido, demiurgo escondido durante o primeiro andamento, tal como o realizador do filme. Esta personagem, o que pretende? O que é que faz? Mata, simbolicamente, a mulher e restitui-lhe, objectivamente, a liberdade. Para que o espectador efectuasse o mesmo percurso, era necessário que a personagem do marido fosse inteiramente negativa, integralmente rejeitada. É ainda com fins pedagógicos que Rossellini se atreve a forjar um duplo de si próprio de tal calibre. A operação é conduzida quase cientificamente: envenenam-se os ratos e depois injecta-se-lhes o soro que os devolverá à vida; trata-se apenas de medir com rigor o tempo de reacção. O falhanço da personagem, como o falhanço do casamento de Rossellini, constitui o sucesso do realizador que aceita encarregar-se dos pecados da ficção. A mensagem de Rossellini aparece claramente enunciada na cena das crianças: o castigo imposto pelo pai é sentido como injusto porque desproporcional em relação à culpa, ou antes porque a menina já sofria com o peso da culpa que, no fim de contas, se reduz a nada: a carabina estava escondida a dois passos dali. A liberdade, inclusive a de confessar a verdade, é incompatível com a humilhação. A mulher que carregou com a culpabilidade e com o desejo de confessar tudo ao marido, durante a primeira parte, consegue libertar-se a partir do momento em que se apercebe de que a sua confissão deixou de ser livre. O penoso desvio que Rossellini escolheu para restituir a liberdade a Bergman e ao espectador é sem dúvida maquiavélica, mas Rossellini não acredita na infalibilidade da experiência «científica»: o rato morre, a mulher reage e foge da gaiola.


O filme intitula-se O MEDO. Através deste sentimento abstracto designa-se tudo o que pode paralisar o homem, enjaulá-lo. Ao fim e ao cabo, é o medo que move o marido, que o fecha no seu próprio complot, que o não deixa enfrentar a sua história. Ora, o medo é uma ficção da qual Rossellini desmonta o mecanismo. É na altura em que o espectador descobre a ficção — a duplicidade do marido — que o medo se pode apoderar dele. Este filme, mais ainda do que ALEMANHA ANO ZERO, atinge um expoente de dureza de tal ordem, que a salvação da mulher no desenlace parece irreal. Rossellini aponta um caminho ao espectador mas deixa-lhe a tarefa de talvez o percorrer. S.


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