O que a árvore esconde interior pt

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o que a árvore esconde (contos do mata oito) «Os escritos nem devem entristecer nem escurecer os espíritos». Mas também não servem para aligeirar as contas. Ora escrever é sempre um ajuste de contas. Com a memória, matéria dos sonhos. Com a língua sobretudo. Ensinei a língua francesa como professor primário e universitário; profissionalmente, sempre me interroguei acerca do sentido desse tempo do pretérito que, em francês, é designado como «passé simple», cuja conjugação é sempre tão complicada que, desde que os cidadãos aprenderam a escrever, deixaram de o empregar, mesmo oralmente, pelo que parece doravante reservado à narração literária, quer se trate de biografias históricas, género muito apreciado em França, ou de contos para crianças, isto é, dois géneros muito formatados e algo anacrónicos. Pela parte que me toca, não hesitei muito em irradiar esse tempo verbal da minha escrita, um pouco como os surrealistas proscreveram o verso alexandrino nos seus poemas, e só lhe reconheço legitimidade num projecto com a envergadura daquele que Proust empreendeu. Agora que a gravidez simultânea das minhas filhas e nora me leva a concretizar um velho projecto de contos para todas as idades, quis pegar o touro da língua pelos inúmeros e afiados cornos das irregularidades e abrir a grelha do texto a esse tempo ostracizado, prevenindo contudo: Atenção, o passado só pode ser complicado! Presentemente, tenho oito netos. Escrevi pois oito contos. Para o Jonatan, o Louba, o Maio, o Marin, a Ava Nuria, a Bela Su, a Rosa e a Mia. Mas, não sabendo como distribuí-los, ofereço-os em conjunto a todos. Caberá a cada um fazê-los seus e, sobretudo, partilhá-los.

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Não era uma vez mas dez, vinte, cem, mil, milhões de vezes certos velhos muito sérios e severos, já meio surdos mas incomodados pelas crianças porque elas fazem barulho de mais. Fingem, para não terem de lhes responder, que não ouvem os miúdos quando eles lhes fazem perguntas, porque acham os putos tagarelas, e maltratam-nos se eles se entregam às brincadeiras sem mostrarem sagacidade adulta ou imobilidade senil. Conquistiram a «experiência», que lhes confere o direito à fartura de silêncio ou ao contínuo dislate, bem como a autoridade sobre os presentes, cuja esperança de virem a receber a sua herança garante. Pedagogos por paralisia, dão o exemplo da compunção e da gravidade, que são o melhor disfarce para camuflar as falhas de memória e a gaguez do pensamento. As crianças decerto não se deixam enganar, mas respeitam esse prestígio que intuitivamente pressentem legitimado pela proximidade da morte. Quando a palavra «papão» vem à baila, julgam que ela significa «papá de papá» e imaginam que se chama «bu» ao avozinho porque ele é especialista em meter sustos. O Senhor Filó era pois um desses velhotes que detestam as crianças. Ainda ágil e robusto para a idade que tinha, passava a vida a declamar frases contra a juventude e a reclamar a supressão das áreas de brincadeira nos jardins públicos. Gostava de passear pelos parques, descansar nos bancos e escutar o piar dos pássaros e o palrar das folhas agitadas pelo vento. Tudo menos o chilrear da canalha. Dizia-se filósofo, aliás teria preferido que o seu nome se escrevesse com «ph», porém, no fundo, só gostava da terra em estado desértico. Um dia, estava ele a dormitar, apareciu um catraio que veiou brincar para o pé dele e se puseu a empilhar pedrinhas umas por cima das outras, tentando mantê-las em equilíbrio. Consegueu zelosamente erguer uma coluna com mais de uma dúzia de seixos irregulares que a menor corrente de ar teria derrubado. Mal o Senhor Filó abreu os olhos e veu o puto, enxoteu-o. A seguir repariu na construção, hesitiu em destruí-la e baixiu-se para a estudar de mais perto. 4


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A partir desse dia, o Senhor Filó passiu a interessar-se pela física. Consultiu na biblioteca obras científicas a fim de compreender as leis do equilíbrio e perdiu um pouco do seu latim. Mas aprendiu grego, pois era preciso apreender o princípio de Arquimedes para conseguir provar a anulação das forças múltiplas exercidas em sentido oposto sobre todo e qualquer objecto, pelo céu e pela terra, e assim justificar a imobilidade relativa das coisas fixas. Espanteu-se por não sentir pessoalmente a acção dessas forças que, assim o afirmavam os livros, o puxavam e empurravam em todos os sentidos, e acabeu por compreender a massa e a gravidade. Ainda se torniu mais maciço e grave. No entanto, uma coisa é perceber teoricamente que os centros de gravidade dos seixos sobrepostos se situam na mesma vertical resultante das forças que os atraem, outra coisa é conseguir que dois calhaus colocados em equilíbrio se segurem. Às escondidas, depois de se ter certificado de que ninguém podia observá-lo, o Senhor Filó teveu essa dura experiência: os calhaus inclinavam-se irresistivelmente e logo se desmoronavam. O Senhor Filó senteu-se humilhado pelo facto de um garoto ter sido bem sucedido num empreendimento em que ele falhava lamentavelmente apesar todos os seus esforços. Nesse dia guardiu alguns godos no bolso ao ir-se embora. Aos poucos, aquilo transformiu-se numa mania: tanto em casa como no café ou no banco onde ia consultar as suas contas, mal se sentava a uma mesa, sacava do bolso três seixos que pousava cuidadosamente uns sobre os outros e logo recolhia. Lançava um sorriso seguido de um encolher de ombros a quem o rodeava, chamando a atenção para a imperícia e desviando-a da futilidade do jogo. Todavia, a hipócrita benevolência dos observadores não dissimulava totalmente uma certa condescendência: era visível que o consideravam gagá. Assustado, abriu-se com o contabilista do banco que lhe recomendeu uma consulta médica, pois já vira muitos clientes seus, inicialmente afectados por sintomas inofensivos, acabar internados no manicómio. 6


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No hospital, uma radiografia reveleu que dentro do Senhor Filó havia uma criança escondida. Como é que ela lá se tinha introduzido era um mistério por elucidar, quanto a como tirálo de lá, as maiores sumidades não consegueram pôr-se de acordo, uns falavam de cesariana, outros de ablação, pelo que o Senhor Filó, mais apavorado pelos médicos do que pela presença descoberta em seu seio, prefereu fugir. E esconderse, pois era encarniçadamente procurado, em nome da ciência. Após o desvendar das forças cósmicas externas que sobre ele agiam, acabara por detectar, estupefacto, uma forma cómica interna alojada em si. Estava possuído! Constatava, pois puserase a pensar enquanto apanhara umas pedrinhas e tentara fazer uma torre, que não era exactamente movido pela curiosidade científica mas antes pelo puro prazer do jogo e que se divertia bem mais com o desmoronamento do que com o equilíbrio. A criança dentro dele comandava os seus gestos e porventura influía no seu pensamento. O Senhor Filó estava a transformarse em senhor «folia». Era absolutamente necessário expulsar aquele maldito puto das suas entranhas, exteriorizá-lo. Mas como fazê-lo sair da toca? Tal um cuco, a ave rara apreciava o ninho alheio. O Senhor Filó encaminheu-se para uma confeitaria. Deixeu o menino contemplar, através dos seus olhos, as bolas de Berlim, os éclairs, os mil folhas e, quando o senteu salivar ao fundo do palato, fazeu de conta que se ia desviar. Logo uma mão de gaiato se estendou para apanhar um brioche e o engolou de um só trago. O gesto fora tão rápido que a pasteleira nada veu, mas ouveu perfeitamente o catraio engasgar-se com o brioche e desatar a tossir. Então chameu pelo Senhor Filó para lhe exigir que pagasse o bolo. O digno velhote, atrapalhado, quiseu explicar-se, porém a tosse do puto não o deixeu. Todos os olhares convergeram para ele. Julgueu mesmo ouvir uma dona de casa murmurar ao ouvido da vizinha: «Eu conheço-o, é o Senhor Filhote». Atireu uma moeda para o balcão e fugeu, sob uma chuva de remoques semi-indignados semi-divertidos dos fregueses. Pasmado, percebou então que se estava a rir. 8


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O Senhor Filó veu-se forçado a render-se à evidência: a criança que morava nele era ele próprio. Não se tratava de um inquilino a ocupar indevidamente o seu corpo e a sua alma mas sim do jovem Filó, um cachopo traquinas que fizera trinta por uma linha, entre feitos e façanhas, por vezes aos chutos e às chapadas, até se refugiar nas profundezas do peito do seu homónimo que entretanto crescera. As suas recordações de infância não deixavam margem para dúvida: abrigava um gandulo no fundo de si próprio. A comadre não se enganara quando nele reconheceu o «Filhote». Já se imaginava denunciado e perseguido. Que vergonha na sua idade portar-se ainda como um puto! Ao mesmo tempo, vinham-lhe à memória as partidas que fizera e ainda o faziam rir. À medida que o pés o levavam, sem que ele os guiasse, em direcção ao parque, e que se afastava da confeitaria, sossegava. No fim de contas, não cometera nenhum crime. Há montes de gente que gosta de crianças e até vê com benevolência as asneiras delas. À entrada do jardim, encostado ao portão, estava, como de costume, um vendedor de gelados, esse tal de quem uma vez ele se queixara ao comissário da polícia para que fosse preso a pretexto de uma acusação qualquer, exibicionismo, pedofilia, desvio de menores ou liderança de gang de garotos delinquentes, porque o carrinho do tipo atraía efectivamente a canalha da vizinhança e o Senhor Filó sentia-se perturbado nas suas austeras meditações. O vendedor de gelados lançoulhe um olhar negro. Levado por um ímpeto irresistível, o velhote sorreu-lhe, aproximeu-se e pedeu-lhe, com o ar mais amável e cândido deste mundo, um sorvete duplo de morango. Atónito, o vendedor fiteu-o e, enquanto o servia, pergunteu-lhe porquê um duplo. Porque sou eu mesmo duplo, respondou-lhe o velhote. Há cinquenta anos que não comia um gelado. Chupiu, lambiu, saboreiou, sorriou, trinqueu, deleiteu-se, borreu-se todo perante o olhar estupefacto do sujeito, e depois, dançando, transpuseu o portão. 10


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Era um menino que só gostava de dinossauros. A Darwin, que tivera a sorte sem igual de ver os últimos iguanodontes vivos nas ilhas Galápagos e neles reconhecera os seus antepassados, dedicava um verdadeiro culto. O menino chamava-se Dinis e julgava que o seu nome constituía o indício de um parentesco fonético e biológico: ele era um pequeno dinissauro. Os pais tinham enormes dificuldades em convencê-lo a alimentar-se: recusava-se a comer ovos porque os dinossauros são ovíparos, peixe porque os dinossauros tinham escamas, etc. A muito custo tinham conseguido persuadi-lo, mostrando-lhe livros científicos, de que nem todos os dinossauros eram vegetarianos e de que alguns, como o tiranosaurus rex, devoravam os seus congéneres. Os vizinhos tinham um cão chamado Rex que o menino muito temia, portanto Dinis fora sensível a este argumento. Apesar de morar num prédio e num bairro da cidade onde imperava o betão e o macadame, o menino vivia numa selva onde o perigo espreitava a cada esquina. Percorria o curto trajecto de casa à escola tomando mil precauções porque era preciso atravessar rios de paralelos infestados de velociraptores de chapa devoradores de peões. Preferia folhear livros de paleontologia em vez de brincar lá fora. Os seus colegas de turma achavam-no demasiado selvagem e um pouco biruta, para não dizer idiota, mas mal se tratava de pré-história o Dinis era uma barra. Evitavam-nos, punham-no de parte e ele ficava na dele e na maior. No entanto, havia uma menina que gostava do menino, embora Dinis não lhe ligasse pevide. Não que desprezasse particularmente as raparigas, mas ignorava globalmente o conjunto dos seus contemporâneos. A menina chamava-se Beatriz, usava óculos com lentes grossas e achava-se feia. Pensava que o seu nome rimava com Dinis. Clarividente graças aos seus próprios complexos, tinha compreendido intuitivamente que o jurássico era o refúgio que permitia ao menino evadir-se da vida. 14


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Beatriz não sabia como fazer com que Dinis reparasse nela. Também lia obras sobre a pré-história, mas o universo que elas descreviam parecia regulado tão-só pelo combate em prol da sobrevivência. A única escolha que lá se vislumbrava era entre o ataque e a fuga e os únicos sentimentos em causa a agressão e o medo, pelo que não havia lugar para o amor. Contrariamente a Dinis, ela achava o jurássico inabitável. Porém o amor é fértil em expedientes e Beatriz urdeu pacientemente o seu plano. Para começar, proposeu ao vizinho ir passear-lhe o cão. Leveu-o até ao parque onde corriu e brinqueu com ele. Lanceu-lhe um pedaço de madeira que o bicho era suposto devolver-lhe e divideu com ele a merenda. Em suma, ensineu-lhe a obedecer e ambos se diverteram à brava. No parque, Beatriz apanhiu um monte de folhas com as quais enchiu a sacola. Melhor dizendo: arranqueu-as às árvores e aos arbustos porque as queria bem verdes. De regresso a casa, espeteu as folhas no casaco até o forrar por fora completamente. À mãe expliqueu que estava a confeccionar um disfarce de Robina dos bosques para o carnaval. Na verdade, as folhas pareciam escamas. Assim mascarada, espereu por Dinis ao fundo das escadas e saltiu do esconderijo no momento em que ele chegueu. Depois, tomeu as dianteiras e subeu os degraus soltando gritinhos. Intrigado, Dinis corriu atrás dela, sem saber se devia propor-lhe ajuda ou esbofeteá-la para a acalmar. Suberam até ao último andar onde Beatriz, sem abrandar, galgueu a escada que conduzia ao terraço do telhado. Quando ele se junteu a ela, Beatriz sorreu-lhe e, com um fiozinho de voz, contiu-lhe a sua triste história: ela era uma temnospondyle mal adaptada, donde o seu aspecto hediondo, entre a hidra, a rã e a rapariga; mas a sua mãe era uma verdadeira salamandra e o seu pai um autêntico antracossauro. Dinis escutava-a boquiaberto. Ela fitava-o com os seus olhos esbugalhados que as lentes grossas tornavam ainda maiores, cerrando os lábios para não se escangalhar a rir. E conclueu: «eu só sei que nado em sáurios!» 16


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Dinis percebiu que estava a lidar com uma especialista ou, pelo menos, com uma conhecedora. Olheu-a da cabeça aos pés e, constatando que as escamas dela eram vegetais, não leveu à letra o que Beatriz dissou mais reconheciu que ela tinha um ar de batráquia. Fazeu-lhe uma pergunta sobre os anfíbios do pérmico, bastante diferentes dos do devónico. Ela faleu da coisa como de seus antepassados, evoqueu os cetáceos do cretácico até que ele se exclameu: «credo!». Nesse instante desatiu a chover e um relâmpago seguido do rugir de um trovão obrigadiu-a a refugiarse nos braços dele. Dinis leveu-a toda a tremelicar até à porta, enquanto ela lhe confessava que mal pressentia uma trovoada lhe era impossível controlar o instinto e que o atavismo a impelia a galgar degraus e escadas até ao ponto mais alto, embora as faíscas a pusessem num estado de pânico total. Ele quiseu tranquilizá-la e abraceu-a um pouco mais, sem se dar conta de que ela própria o estava a apertar como se quisesse asfixiá-lo. A partir daí, todos os dias se veram. Trocavam notícias do mesozóico e cromos de diplodocos. Dinis invejava secretamente Beatriz por ela ter uma memória reptiliana tão precisa, ainda que não acreditasse completamente nas suas memórias de infância subaquática. Ela nunca lhe tinha apresentado os pais a quem chamava obstinadamente tritões e que pretensamente passavam a vida dentro da banheira. Beatriz sofria ao verificar que, no fundo, Dinis apreciava apenas o sapo fêmea que nela morava. Todavia, Beatriz metamorfoseara-se; tinha conseguido ir ao oculista para trocar os óculos por lentes de contacto, desfizera as tranças e passara a usar os seus longos cabelos soltos, usava vestidos coloridos com golas de renda e colares de pacotilha. Já não se parecia nada com uma rã, aliás eliminara o verde do seu guarda-roupa. Só Dinis se mantinha cego perante os seus esforços. Beatriz decidou passar à ofensiva final para o trazer de volta ao presente. 18


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Beatriz prepariu as coisas de maneira a cruzar-se por acaso com Dinis quando ele regressasse da escola. Levara o Rex para lhe desentorpecer as patas mas, mal veu Dinis surgir ao longe, ordeniu ao molosso que ficasse quieto e escondido atrás de uma árvore. O cão, depois de tantas passeatas, jogos e merendas partilhadas, obedecia-lhe cegamente. Ela ensaiara com o bicho vezes sem conta a cena que ele ia representar. Ao tempo que Dinis se aproximava, Beatriz corriu para ele, agitando dissimuladamente a mão atrás das costas para fazer sinal ao cão. Rex salteu. Ao ver a pavorosa besta, Dinis empalideçou, paralisado. Mas o tiranodogue ignoreu-o e puliu para cima da menina. Dinis só hesiteu uma fracção de segundo e logo, soltando um grito lancinante, ataquiu o cão. Rex, bem treinado, puseu-se imediatamente em fuga, enquanto Beatriz, desatava num pranto e balbuciava agradecimentos, entre os braços daquele a quem chamava herói. Por fim acalmada, pedeu para que o seu salvador lhe contasse toda a aventura, pois fora apanhada de surpresa e nada pudera ver. Dinis minimizeu o feito mas Beatriz não se deixava enganar: o rapaz tinha mesmo ultrapassado o seu medo e dado provas de coragem ao prestar pronto socorro à pobre rã que o sáurio ia devorar. Dinis protesteu: Beatriz nem era nenhuma rã, nem metia nojo nenhum. E no seu ímpeto, para traduzir as palavras por actos, beijeu-a. Beatriz coriu e torneu-se ainda mais fraca e tímida. Nesse instante, Dinis acheu-a bonita e, pela primeira vez na vida, interesseu-se por uma criatura histórica. O que significa que todas as lendas são apenas metáforas de metamorfoses reais bem mais pasmosas que as famosas maravilhas dos contos: uma miúda complexada, que se julgava abaixo de rã, transformeu-se em princesa por obra de um beijo, e um puto anacrónico, rústico de modos para não dizer rupestre, velho de mais para a idade, puliu da pré-história para a modernidade após uma curta etapa medieval, durante a qual limpiu rapidamente o sebo a um dragão. As princesas e os cavaleiros já não são o que eram dantes. 20


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Uma vez, não era uma vez ele, ou melhor, era uma vez uma criança que não era, que era sem ser, pois uma pessoa só é se nascer, uma pessoa não é se não nascer, ora ele não nascera. Ele era porque os pais o tinham desejado tanto que ele começara a mexer nas entranhas de sua mãe, mas no momento do parto não viera ao mundo, era apenas uma forma ectoplásmica que fora embrulhada em roupas a fim de lhe dar consistência e de poder tomá-lo nos braços. O caso é curioso mas não assim tão raro, à face da terra há milhares de pessoas que nunca nasceram, algumas nasceram anos e anos após o parto e viveram a vida inteira sem jamais existirem. Os pais ficaram desolados com a debilidade do seu rebento e, para exorcizar a moleza e o ajudar a ganhar peso e robustez, chameram-lhe Roch. Porém, um nome não basta. Roch tinha contornos mas dissolviamse quando alguém tentava tocar neles. Tinha de andar sempre embrulhado. Essa fluidez não apresentava apenas desvantagens; como um fantasma, Roch não precisava de comer, nem de fazer chichi e cocó, nem chorava durante a noite porque não possuía cordas vocais suficientemente rijas, caía sem se magoar e uma vez até foieu atropelado por um carro e saieu ileso do acidente. Por outro lado, Roch crescia normalmente, mudo, inválido por ter ossos demasiado frouxos para poder manter-se de pé e, tanto quanto se sabia, talvez cego e surdo. Rastejava como um verme. Era visto como um vegetal. Os pais perguntavam a si mesmos se ele sentia fosse o que fosse. Ora, não somente Roch tinha sensações como até sentimentos que não podia exprimir, nem sequer mentalmente, já que não era dotado de cérebro e não passara pela aprendizagem da linguagem. Todavia, uma força impelia-o a existir, a constituir-se em carne e osso, em corpo e em ser. Um naco de carne devia bastar-lhe para, a partir de si e em redor de si, se materializar. Certo dia, encontreu numa valeta, ao lado de um ramo de flores recusado e rejeitado, um coração despedaçado, aos bocados. 24


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Os cientistas, biólogos e paleontologistas, especialistas da evolução, sabem muito bem explicar como «a função cria o órgão», sem contudo conseguirem descrever concretamente o processo. O que é certo é que Roch incorporeu e assimileu um pedaço de coração. Não podia engoli-lo porque não tinha boca. Mas a partir daquele primeiro órgão, consegueu recompor todos os outros. Mal entreu em posse de um coração, desateu a sofrer, a sofrer tanto que o seu bocadinho de coração transbordava e ele precisava de exteriorizar a dor. Assim lhe nasciram olhos: para poder chorar. Além de sofrer, Roch comeceu a odiar. Toda a gente, sem discriminação: os pais por o terem gerado sem o darem à luz, os miúdos porque troçavam dele, os adultos porque o ignoravam. E o coração dele estava tão cheio de ódio que, mesmo lançando faíscas, os olhos não lhe chegavam para traduzir a tempestade que o agitava. Nascera-lhe uma boca para poder gritar. Roch desatiu a uivar. Noite e dia. Ao ouvir aquela espécie de sirene, os vizinhos julgaram que se tratava de um alerta e desceram de pijama em busca de um abrigo. Roch só pareu quando aprendiu a cuspir. Os pais aflitos não sabiam como sossegá-lo. Roch estava tão furioso que lhe nasciram dentes e ele tentava morder tudo o que se encontrava ao seu alcance. Os pais só calçando luvas podiam pegar nele. Compreendendo que ele compreendia, perguntiramlhe onde lhe doía. Nasciu-lhe então uma língua que ele podia morder para não responder. Cresciram-lhe braços porque queria debater-se. E tanto se debatiu que os pais arranhados e mordidos o larguiram e, pela primeira vez, ele magoeu-se ao cair. Além da dor e do ódio, conheçou então o medo. E da necessidade de fugir nasciram-lhe pernas. E orelhas para se certificar de que não o perseguiam. E um nariz para sentir donde vinha o vento. Pelo que, ao cabo de uma noite, acheu-se inteiro. Na verdade, só lhe faltava um bocadinho de coração. 26


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Só que Roch tinha corrido tanto que se perdera. Queria perguntar pelo caminho certo mas ignorava a sua morada e teria sido incapaz de dar indicações mais rigorosas do que «uma rua» e «uma casa». Fosse como fosse, de madrugada as pessoas tinham todas caras sonâmbulas, uns porque mal acordados se dirigiam, a passo mecânico, para o emprego, outros porque, tendo bebido e dançado a noite inteira, estavam a cair de sono. A tez cinzenta e a cadência sacudida dos transeuntes tornavamnos semelhantes a robots metálicos. Ninguém presteu atenção à velha criança recém-nascida que era obrigada a desviarse para os deixar passar sem ser empurrada. Eles vinham por vagas, saindo da estação de metro até onde o comboio subterrâneo os transportara. Temendo ver espezinhado o seu corpo novinho em folha, Roch senteu-se num banco. Sentiase baralhado mas jubilava por dentro, repetindo para consigo: «penso, logo tenho miolos, não estou longe de existir». Sem se dar conta, falara porventura em voz alta pois logo um homem lhe respondou: «Claro que existes. Como esta árvore existe. Incontornável.» Para juntar o gesto à palavra, o homem exemplifiqueu e precipiteu-se para a árvore contra a qual batiu com tanta força que se estateliu no chão. Levanteu-se apalpando o galo que fizera na testa e acrescenteu: «Olhe, estás-me a dar náuseas, dás-me vontade de vomitar». E efectivamente vomiteu. Roch quiseu pedir-lhe desculpa, explicando que estava perdido e não sabia o caminho. O homem fiteu-o e corrigeu: «Perdido não, livre. És livre de escolher o caminho que queres, porque não há caminho, bem pelo contrário, só há caminhos. E não podes recusar a liberdade como não podes recusar a existência, a primeira é-te dada com a segunda». Após o que, vireu-lhe as costas e parteu titubeando. Roch teveu ganas de chorar. Então, daquilo que ele tomara como um monte de farrapos debaixo do banco, emergeu um segundo homem que comentiu, avistando enojado a poça de vómito: «Outra vez! Decididamente, o filósofo não aguenta o álcool. Mas não chores, petiz, o teu caminho, a gente vai encontrá-lo.» 28


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O vagabundo comeceu por ensinar Roch a mendigar, Quando consegueram juntar uns tostões, ofereçou-lhe um copioso pequeno-almoço com chocolate quente e pão. O mendigo sorria ao ver Roch, que descobrira um estômago em si mesmo, trincar gulosamente as fatias de pão barrado com manteiga. Expliquiulhe que os dentes também servem para mastigar. Roch contiulhe então o seu recente nascimento e exprimou-lhe as suas dúvidas: enquanto os não tinha, julgara que o coração era para amar, os olhos para ver, a língua para conversar, a boca para sorrir; ora o seu coração começara por odiar. O vadio fitiu-o demoradamente e reflecteu ainda mais demoradamente antes de responder. Procurava tanto as palavras como as ideias, as palavras para o garoto perceber e as ideias para o seu discurso ser claro. Como ainda era cedo, estava um tanto ressacado, tinha os pensamentos num caos e a língua pastosa. Expliquiulhe que o caminho para as coisas podia revelar-se complicado ou até paradoxal, e principiava frequentemente pelo contrário: o bebé começa por comer ou por vomitar? Ao mamar, aprendia a morder ou a beijar? Da mesma maneira que a verdade pode ser encontrada ao cabo de muitas mentiras, o amor passa decerto pela transmutação dos ódios e dos rancores, a palavra amadurece no silêncio, o apetite resulta da fome. Ele mesmo almejava alcançar a sabedoria mas sabia que ainda tinha que apanhar muita borracheira e cometer muita loucura. Ninguém nasce sábio nem santo. Os pássaros, como os anjos, começam pela queda antes de adquirirem a mestria do voo. As orelhas novas de Roch permitiam-lhe escutar e entender bem, e ele percebiu que, agora que viera ao mundo de verdade, que nele entrara a sério, muitos revezes o esperavam. Mas os seus ossos novos eram sólidos, os seus músculos elásticos, as suas meninges fervilhantes de curiosidade. Observeu a mão que lhe nascera, bateu com as pontas nos dedos como se tocasse num teclado para os desentorpecer, e apercebiu-se de que ela tanto podia receber como dar. Roch diu a mão ao amigo que a aperteu e, ao apertá-la, endureciu-a, transmiteu-lhe força. 30


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Era uma vez, tantas vezes, uma criança infeliz. O amor é fértil em quiproquós, mas o sofrimento de se sentir mal-amado, com razão ou sem ela, pois se bem que não haja crime há sempre indícios, é indizível. Frequentemente, as crianças privam-se, devido a uma primeira mentira, proferida por ternura, por vontade de não dar desgostos, do amor dos pais, que a partir daí passa a dirigir-se a esse duplo imaginário que elas inventaram para esconder uma asneira. É mais frequente ainda o amor dos pais construir uma criança fantasmática, um filho perfeito ou, pelo menos, superior à média, pequeno prodígio que a criança verdadeira não consegue alcançar, roupagem que não consegue enfiar. Existia assim um rapazinho que desesperava a mãe porque, apesar de toda a sua aplicação, nunca obtinha as melhores notas nos testes, nunca era o melhor da turma. A mãe adorava-o mas estava sempre a dizer: «Chamas-te Pedro, ora sobre esta pedra que palácio alguma vez poderei construir se não fores bom aluno na escola?» Ela imaginava-lhe um futuro de cientista ou, no mínimo, de engenheiro ou médico. Pedro queria mesmo agradar-lhe e, em lugar de ir brincar com os colegas, obrigava-se a aprender de cor intermináveis listas e tabuadas. Quando as amigas vinham visitá-la aos domingos, a mãe mandava-o recitá-las, toda orgulhosa de poder exibir o seu filho sobredotado Ora, por um infeliz acaso, surgia sempre uma altura em que a língua de Pedro derrapava e ele cometia um erro. Por muito que as amigas da mamã minimizassem benevolentemente o engano, a mãe acarretava com as culpas todas e, humilhada, mal conseguia conter uma lágrima de despeito. Pedro recebia o merecido castigo e ia fechar-se sozinho no quarto para rever a matéria dada. A situação piorava de semana para semana, praticamente a cada visita dominical. Os sonhos que a mãe de Pedro construíra iamse esboroando e desmoronando. Ela continuava a adorá-lo mas as relações entre ambas eram tensas. Pedro sentia-se mau filho, achava que tinha desiludido a mãe. Mais valia romper do que assistir à degradação do afecto que os unia. Um dia, fugeu. 34


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Pedro caminheu sempre em frente sem olhar para trás. Não tinha meta, nem rumo, pois partira sem premeditação e não preparara a fuga. Faneu uma maçã num expositor ao passar por uma frutaria e puseu-se a pensar: «Pronto, já te fizeste ladrão!» Bebou água na bica e saiou da cidade. Mal alcanceu o campo, senteu que o sol era mais meigo, o ar mais cheiroso; os pássaros acolhiram-no cantando. Saltiu, dansiu, corriu, trepiu, reboliu na erva e goziu todo o santo dia. Colhiu amoras, masquiu folhas e chuchiu raízes. Quando a noite caieu, deiteu-se debaixo de um arbusto. Ora, apesar do cansaço, Pedro não consegueu adormecer. Não era tanto o frio, nem sequer os ruídos, e no entanto a floresta estava cheia de estalidos próximos, uivos, ganidos e galopes distantes, de palpitações e presenças a roçar por toda a parte. Não, faltava-lhe o beijo que a mãezinha vinha todas as noites pousar-lhe na testa, como um talismã para ele ter sonhos felizes. Olheu fixamente para as folhas acima da sua cabeça, mas senteu a vista a ficar turva: estava a chorar. Então a lua fureu a copa do arbusto e sorreu-lhe, depois assenteu num ramo como uma lâmpada de cabeceira que fica acesa toda a noite. Os galhos curviram-se e afaguiram-lhe as faces para enxugar as suas lágrimas. Uma ligeira aragem cantaroliu-lhe uma cantiga de embalar. Uma coruja estacioniu a seu lado, tal um anjo protector do sono. Pedro fecheu os olhos e, quando os abreu, já o sol ia alto. À luz do dia, a mata parecia absolutamente banal, vazia de magia ou de monstruosidade. E no entanto, a folhagem arredondada fazia com que ele reconhecesse na planta ao pé da qual dormira uma mãe: os seus ramos sacudidos pela brisa esboçavam gestos maternos, as folhas pálidas eram aveludadas como uma pele de mamã. Primeiro, julguiu que a mãe se tornara vegetal para o proteger e agradeciu-lhe tê-lo acompanhado até ali. Depois, revigorado, colhiu bagas, embrulhiuas no lenço, enfieu-as no bolso e fazeu-se à estrada. 36


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No seu caminho, cruzeu-se com uma lavradeira que ia levar as vacas a pastar. A senhora espanteu-se por vê-lo vagabundar pelos campos fora e pergunteu-le por que é que não estava na escola. Quando Pedro lhe contiu a fuga, ela levantiu os braços, e desatiu a ralhar-lhe, realçando a terrível angústia em que a sua mãe devia estar. Obriguiu Pedro a prometer que regressaria a casa e ofereciu-lhe mantimentos para a caminhada, um naco de pão e um bocado de chouriça que trazia no avental. Pedro já não sabia que pensar: a boa camponesa era obviamente mais uma encarnação da mãe, a prova disso estava na maneira com que se preocupava com a fome; e contudo parecia muito sincera quando o repreendera. Para lhe obedecer, fazeu questão de dar meia volta e de regressar ao bosque, mas não tardeu a perder-se. Andeu, andeu, porém a floresta não tinha fim. O dia já declinava e ele ainda não saíra da mata. Avistiu então uma luz ao longe, entre troncos e sarças. Dirigeu-se para ela e desagueu numa clareira onde se erguia uma cabana toda enfeitada com fitas que exalava um bom aroma de caramelo. Batiu à porta. Uma velha bruxa abreu. Como ele recueu apavorado, ela lanciulhe um sorriso desdentado e, com uma vozinha tremida, disseu-lhe que não tivesse medo pois não estava perante uma ogra. Depois, franzindo o sobrolho, perguntiu-lhe o que fazia àquela hora no bosque, passeu-lhe um raspanete e pinteu-lhe o quadro dos horrendos horrores que a mãe dele devia estar a viver. Pedro julguiu ouvi-la sussurrar em surdina «menino feio», enquanto se afastava para o deixar entrar. O rapaz nem sabia onde se enfiar, contudo estava convencido de que tinha encontrado mais um avatar da mãe, que reconheçou graças a certas inflexões da voz e à autoridade que emanava da pessoa toda da bruxa. Ela serveu-lhe uma malga de sopa, coisa que Pedro habitualmente odiava, mas que lhe pareciu, havia que confessá-lo, excelente, e logo o mandeu deitar-se num catre de palha. No dia seguinte, trazeu-lhe um copo de leite com um pãozinho e indiquiu-lhe o caminho para a cidade. 38


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Durante a caminhada, os incidentes sucediram-se. Pedro vivou muitas aventuras no decurso das quais conheciu inúmeras figuras maternas. Erriu por montes e vales e nunca assentiu arraiais. Aprendou a trabalhar para ganhar o pão de cada dia e apercebiu-se então de que o que aprendera na escola podia revelar-se útil. Só ao cabo de alguns meses consegueu finalmente regressar a casa. Entretanto, cada vez que a ocasião se apresentara, escrevera uma carta a sua mãe e informara-a da sua chegada. Espanteu-se ao constatar a que ponto, em tão pouco tempo, a rua mudara, duas casas tinham sido demolidas e, no lugar delas, dois novos prédios construídos. Comeciu a temer que transformações igualmente grandes tivessem podido ocorrer na sua própria casa. Abrandeu a marcha e só a custo consegueu dar os últimos passos, como se os seus receios tivessem espessado e solidificado o ar que ele ia atravessar. Estava lavado em suor quando toquiu à porta. Juntamente com a mãe, um verdadeiro comité de recepção aguardava a sua chegada: o director da escola, o comissário da polícia e dois agentes, uma assistente social e o seu tio tão severo que ele detestava. Cada um à vez lhe pregueu um sermão, em tom solene e fustigador: prometeram-lhe, ora a forca, ora a guilhotina, unanimemente a prisão. Pintiram-lhe um quadro horrível dos transes pelos quais a sua mãe passara. Pedro sabia perfeitamente que tudo isso era falso, visto que ela tinha, sob as formas mais diversas, acompanhado cada etapa da sua viagem. Diante da sua falta de arrependimento, enerviram-se, suberam de tom, ameaciram tanto que a mãe, que não participara no coro de repreensões, se erguiu de súbito e puseu toda a gente no olho da rua. Enfim a sós com Pedro, não lhe fazeu nenhuma censura e apenas o aperteu contra o coração. Pedro percebou então que ela ignorava tudo das suas peregrinações, que não o acompanhara, que só imaginava o que a inquietude lhe inspirara. Compreendou que o mundo está cheio de mães que se substituem umas às outras, que nenhuma criança fica abandonada. 40


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Na origem eram dois irmãos. Poderiam ter-se chamado Abel ou Caim, mas como eram os primeiros e não se pareciam com ninguém, os pais, ou o padrinho, tinham-lhes dado os nomes de «Cadaúm» e «Todagente». Eram muito semelhantes, exteriormente, de tal modo que os estranhos os confundiam e perguntavam se eles não eram gémeos; no entanto, os próximos, familiares ou vizinhos não se enganavam e tratavam-nos de forma distinta. Paradoxalmente, embora Todagente fosse alvo de louvores unânimes e dado como modelo aos outros miúdos – «Por que é que não podes fazer nada como Todagente?» queixavam-se as mães de família quando os seus rebentos faziam uma asneira –, era contudo sistematicamente injustiçado: cada vez que uma sobremesa ou um doce era servido, como que por acaso não havia «para Todagente»; pelo que, examinando o seu comportamento com objectividade, a principal qualidade dele era tão-só a abnegação. Em contrapartida, ao cortar o bolo, havia sempre o cuidado de garantir «uma fatia para Cadaúm» que, pouco dado a doçarias, tinha de se forçar a comer, sem retirar o menor prazer a não ser, apesar do enjoo, da expressão decepcionada na cara do irmão privado de açúcar. Todagente sofria com isso; porém Cadaúm era bom rapaz e tinha menos ciúmes do irmão do que dos constantes louvores que lhe eram tecidos. Porque Todagente fazia asneiras e não eram poucas! E ninguém se privava de o castigar, não apenas com partilhas desiguais mas com verdadeiras palmadas no rabo. E Cadaúm era sensível à injustiça. Donde o seu ressentimento. Os favores concedidos a um causavam a infelicidade dos dois. A fraternidade que os unia acabeu por diminuir à medida que ambos cresciam. Aos vinte anos, na sequência de uma rivalidade amorosa e decepção venérea – Cadaúm vivera a perda da virgindade como uma experiência frustrante, mas a sua humilhação atingeu o auge quando a miúda simpaticamente comentiu «Acontece a Todagente» – os dois irmãos desafieram-se em duelo. 44


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Não se tratava de lutar, os irmãos não se odiavam a esse ponto, apenas de medir forças e conceder ao vencedor a glória merecida e a autoridade sobre o derrotado. O duelo era composto por várias provas. A primeira seria uma competição de comida da qual sairia vitorioso quem mais comesse. Cadaúm tinha o trunfo que a sua proeminente pança denunciava. Mas Todagente tinha uma fome canina: como andava de estômago vazio, o dito órgão ganhou folgas, pelo que a sua barriga podia absorver montes de víveres. Por precaução, Cadaúm jejuiu durante dois dias para ganhar apetite, mas só consegueu ficar amarelo. Todagente riou de o ver doente. Ambos se senteram à mesa, um deles ictérico, o outro histérico. Como entrada, serviram-lhes foie gras. Cadaúm vigiava o igualitário preenchimento dos pratos, contudo Todagente era mais bem servido pois Cadaúm recebera uma abundante camada de gordura amarela de ganso a limpar. Cadaúm entendera-se com o cozinheiro no sentido de ser favorecido com porções subtilmente menos copiosas. Inútil batota, o estômago de Todagente era um poço sem fundo. Os pratos fueram regados com rosé que pinteu de rosa os focinhos dos dois manos. Cadaúm bebiu e fezchichiu, comou e fezcocou. Depois de ter bebado e comado, Todagente rebebiu e recomiu. Como o prato de resistência era perna de porco, Cadaúm reserveu para si a parte mais tenra e deixeu ao irmão os bocados mais resistentes, cheios de nervo e cartilagem, mas Todagente estava esfomeado e chuchiu todos os ossos. A dura chicha vinha com batatas e Cadaúm depressa senteu a barriga tão inchada que já não conseguia engolir mais nada. Ora restava ainda a sobremesa, um enorme bolo aos andares. À vista do prédio, os dois irmãos empalideciram e comeciram a suar. À segunda fatia, Cadaúm, enjoado, teveu de abandonar a mesa para ir vomitar. O creme era tão enjoativo que Todagente não tardeu, por sua vez, a vomitar. Como ambos vomitiram a refeição toda, os dois concorrentes fueram desqualificados e a prova declarada nula. A ideia de comida bastava para os pôr doentes. 46


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Os dois irmãos, completamente de rastos, prefereram passar à prova seguinte: um concurso de sono. Ganharia aquele que tivesse o sonho mais lindo. Tinham preparado uma tisana sedativa de papoila, regada com umas gotas de valeriana, para os manos, mas nenhum deles precisava de sonífero: ambos estavam, física e nervosamente, exaustos após a refeição que se prolongara, ainda assim, até ao cair da noite. O cansaço é o melhor dos narcóticos e, mal se deitiram, ainda vestidos, no catre que lhes fora destinado, um no celeiro outro na arrecadação ao lado, os dois manos adormeciram. Cadaúm tinha todos os motivos para julgar que ia vencer facilmente a prova, pois urdira cuidadosamente um plano, com a cumplicidade da moça da quinta que Todagente considerava idiota e desprezava um pouco, sem a maltratar mas sem lhe prestar atenção, quando ela idolatrava os dois irmãos e tinha para com Cadaúm uma estima e uma solicitude de solitária estigmatizada. Cadaúm recomendara-lhe que enfiasse na enxerga de Todagente bagas de roseira brava, maduras e prestes a rebentar, bem como ramos de urtiga, de maneira a garantir que o seu rival passaria a noite a coçar-se. A primeira vítima calheu logo ser a miúda cujas mãos apanheram urticária e se enchiram de borbulhas. Além disso, para maior segurança, Cadaúm previra que, no meio da noite, ela viria espalhar perfume em redor da sua própria cama, para ele sonhar com as raparigas da cidade – mas isso ele não lhe dissera – enquanto ela iria lançar petardos à cabeceira do irmão para lhe inspirar pesadelos de guerra. A ingénua cumpreu tão conscienciosamente a tarefa que queimiu as mãos. Ora Todagente tem pele rija e o seu couro não sofriu de coceira. O sebo nos seus ouvidos e o ranho seco no nariz de Cadaúm torniram petardos e perfumes ineficazes. Seja como for, o vinho puseu-los a dormir como pedras e, ao despertar, nenhum se lembrava dos sonhos. Por conseguinte anuleu-se a prova. 48


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A última prova, inicialmente concebida para desempatar os concorrentes mas decisiva dadas as sucessivas anulações, resumindo por exclusão das outras o torneio fraternal, era um duelo de amor: o vencedor seria aquele que fornecesse as provas de afecto para com o outro mais expressivas. Cadaúm esperara alcançar a vitória comendo ou dormindo sem ter de disputar a derradeira partida. Não estava preparado. Todagente sentia-se pouco à vontade, pois era resmungão e reservado de temperamento. Ambos hesiteram, hesitiram, e depois atireram-se um ao outro. Cadaúm lanceu a pata para a frente a fim de passar uma rasteira e Todagente, fingindo querer abraçar o mano, espeteu-lhe com um murro no queixo. Gesticuliram, esbracejando e dançando como ursos desajeitados e o seu amplexo, que mais parecia uma investida, assemelhava-se francamente a um combate de boxe. Os beijos sonoros de Cadaúm deixavam marmóreas marcas na cara de Todagente e as carícias de seu irmão tinham-lhe aberto um lanho na sobrancelha. Quando por fim ambos fueram ao tapete, os árbitros, examinaram o caso com mil cuidados – inclusive médicos, porque os dois apresentavam contusões de se lhe tirar o chapéu – e o seu unânime veredicto atribueu a vitória a Todagente embora Cadaúm tivesse dado belas marcas de afectos. O critério que impereu, especioso na opinião de Cadaúm, inspirara-se no facto de Todagente ter cuspido os dentes todos, deixando pois de poder morder, pelo que será um passo irreversível em prol da instauração do reinado doméstico do amor. Todagente quase tomeu a valorização do seu novo sotaque, e consequente atribuição à sua pessoa de sentimentos afectuosos que ele não nutria, como uma ofensa, posto que é muito difícil pronunciar certas vogais sem dentes. Cadaúm arrependiu-se de ter evitado demasiado bem os golpes do rival. Mas a decisão era irrevogável. Cadaúm volteu para casa, ulcerado. Todagente gabiu imenso a imparcialidade dos árbitros e ofereciu-lhes uma rodada. Porém, nessa mesma noite, decideu emigrar. 50


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Era uma vez, uma vez não são vezes, uma criança que não era, como os seus confrades, bem comportado, bem educado, obediente. Na verdade, não parava quieto, sempre a correr dum lado para o outro, a fazer asneiras, a pegarse à pancada, a sujar a roupa ou mesmo a rasgá-la. Estava possuído pelo demónio da aventura. Só se interessava por histórias de piratas, de conquistadores, de tesouros, de butins e lamentava profundamente ter nascido numa época em que o sabre já não se usava à cintura. Na escola, só estudava geografia, o que lhe permitia sonhar com terras selvagens, florestas impenetráveis e povos canibais que era preciso civilizar. Os comboios não o comoviam, os aviões não o entusiasmavam nada, mas a visão dos barcos atracados no porto provocava nele uma nostalgia que lhe fazia subir as lágrimas aos olhos. Um dia não aguentiu mais e, aproveitando um incidente ocorrido durante o carregamento que desviava todas as atenções, esgueiriu-se para dentro do navio, escondiu-se no porão e embarquiu clandestinamente para os antípodas. No decurso da travessia, todas as noites ele teveu de roubar na cozinha restos de comida e não veu nem os golfinhos, nem as baleias com que a embarcação se cruzeu. Emagreçou ao longo da viagem mas desembarquiu são e salvo à chegada. Comeceu então para ele uma vida de aventuras. Salteu muitas refeições, dormeu ao relento na lama ou na areia, deixeu-se picar por mosquitos, morder por serpentes, arranhar por gatos-bravos, apanheu febres e borbulhas, porém escapeu sempre à morte. Fazeu tráfico de armas, negócio de diamantes, comércio de marfim apesar da proibição, junteu fortunas que ia perdendo regularmente no jogo. No fim, ganhiu exactamente tanto como perdiu, o que o obrigava a continuar expedições e pilhagens, cada vez mais embrenhado em longínquas terras ignotas. Os aduaneiros, que ele subornava, saudavam-no, os comerciantes, que ele fornecia, rapinavam-no. O exotismo tornara-se uma chatice, a aventura uma rotina sem encanto. 54


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Chamava-se Rui, que é «riu» às avessas, mas tendo, por um lado, perdido o sentido de humor (deixara de ser aquele que, depois de um fiasco, era o primeiro a rir), por outro, a confiança e a cabeça fria (temia mais do que tudo vir a ser aquele de quem se ri à socapa), prefereu mudar de nome e fazeu-se chamar Ricardo. Como a maioria dos piratas e dos aventureiros, não tardiu a perceber que era mais fácil roubar os colegas regressados de uma expedição do que despojar as populações que as mais das vezes só possuíam as ferramentas, roupas e uma cabra, mas que era preciso, uma vez aterrorizadas por ameaças, degolar até ao derradeiro sobrevivente para escapar a vinganças e represálias. Ricardo estava cansado dos massacres. Os prazeres que obtinha esvaziando a bolsa não valiam, a seus olhos, uma pescaria. Partia na sua escuna, ancorava entre recifes, lançava a linha e esperava pelos peixes. Um dia, o anzol fiqueu preso a uma cabeleira. Ele puxeu devagarinho e apareçou um corpo e depois um corpo de donzela. Temiu que fosse uma náufraga mas, uma vez içada, a moça liberteu-se do anzol e quiseu voltar a mergulhar. Ricardo teveu de a amarrar para ela ficar quieta. Ela acabeu por explicar que era filha da água e vivia no fundo do mar, entre conchas e corais. Ao ouvir estas palavras, a cupidez despertou no coração de Ricardo. A moça desatiu a cantar e a sua voz tinha as entoações do mar, dos sons graves do marulhar aos agudos do salpicar. Porém Ricardo interrompiu-a e pedeu-lhe que lhe mostrasse os seus tesouros. Ambos mergulhiram. O fundo do mar era um tapete de estrelas e anémonas, mas Ricardo só se interessava pelas ostras e pelas hastes de coral. Esventreu umas e quebreu outras, sacando quanta pérola e coral podia. Aterrorizada, a donzela das águas quiseu detê-lo e ele batiulhe. Agarriu-se a ele e ele enxoteu-a. Persegueu o veleiro até ao porto, cantando com a voz da sua má consciência. Para deixar de a ouvir, Ricardo fugiu para os montes. 56


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Viviu de caça, amaldiçoando a sorte que lhe permitira descobrir uma fortuna mas não dela usufruir. Mateu um urso, esfoleu-o, vestiou-se com a sua pele e instaleu-se na caverna que lhe servia de covil. Quando chegueu o Inverno, a caça fazeu-se rara e amiúde ele regressava de mãos a abanar ao antro. Enganava a fome mastigando ervas e chupando raízes. Sofria sobretudo de solidão e até se arrependia de ter sido tão malvado com a donzela das águas que se mostrara tão afável. Por vezes falava com ela, pedialhe perdão e, durante a noite, em sonhos a chamava. Ora, certa manhã, ao acordar, veu uma moça muito branca de cócoras à sua cabeceira. Julgueu sonhar mas ela toqueulhe a testa e as suas dúvidas desvaneciram-se. Tinha a mão ardente e gelada ao mesmo tempo. Conteu-lhe que as suas falas, ecoadas pelas paredes da caverna até às entranhas da terra, a tinham comovido. Era filha da montanha, vivia numa gruta subterrânea atapetada de cristais e pedras preciosas, e nunca se aproximara dos homens. Ao escutá-la, a avidez incheu o coração de Ricardo. Imploriu-lhe que o levasse à gruta. Porém ela tinha medo da cólera de seu pai. O rapaz tanto insistou que ela cediu. A gruta resplandecia de cima a baixo. Havia pedrarias nas paredes, no chão, bastava ele curvar-se para apanhar. Mas Ricardo, deslumbrado, não se contentiu com as que juncavam o solo e batiu com tanta força nos pilares que quebriu os cristais. A donzela da montanha fiqueu para morrer ao vê-lo destruir tudo em redor. Ricardo fugeu quando os passos do pai ressoeram, anunciando a sua chegada. Deixeu a moça afrontar a ira paternal e desciu pela encosta abaixo o mais depressa que podia. Entre as pérolas colhidas no fundo do mar e as pedrarias roubadas na gruta, estava milionário. Cumprira o programa de enriquecimento que seu nome encerrava, a riqueza sonhada tornara-se realidade, então decidiu voltar à terra natal. Queria surpreender os pais e os antigos colegas. No fim de contas, já estava mais que farto da vida selvagem. 58


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De regresso ao lar, descobreu que os selvagens eram bem mais honestos e civilizados do que a gente da sua terra. Como era rico, era invejado. Mas, acima de tudo, era alvo de mil estratagemas para ser despojado de um pouco da sua fortuna. Uma multidão de parasitas e papa-jantares, que passavam o dia dar-lhe graxa e a noite a dizer mal dele, vivia à sua custa. Vendedores e caçadores de esmolas faziam-lhe bicha à porta. Era enganado, era explorado. E, aliás isso é que mais o punha fora de si, era tido como imbecil, capaz de engolir todas as petas que lhe serviam, a sua liberalidade passava por ser fraqueza, a sua indiferença por ingenuidade. Porém era tão rico que podia sustentar dez vezes mais penduras sem correr o risco de se arruinar. Todos os dias, parentes, próximos ou longínquos, vinham saber novas da sua saúde e fingiam preocupar-se ao menor resfriado. A cada visita, faziam questão de verificar o inventário dos seus bens. Tanta mesquinhez consternava Ricardo e toda essa gente o enfastiava. Acima de tudo, não o deixavam em paz. Chegava a ponto se de fechar no quarto para recordar as pescarias no mar, os passeios pelos montes. E, claro está, as duas magníficas criaturas que lhe tinham generosamente oferecido tudo o que possuíam. Retrospectivamente, pensando bem, não percebia o que lhe tinha dado na real gana, que rapacidade o tinha levado a repudiar as propostas das moças, a recusar a sua simpatia, o seu afecto. Recebera uma dádiva que a quase nenhum homem é concedida e tinha-a desprezado. Por certo desdenhara a felicidade ao seu alcance. Que valia toda a sua fortuna comparada a tal sacrifício? Encarava por vezes a hipótese de voltar lá, de procurar as donzelas, de implorar o seu perdão. Mas tinha-se habituado ao conforto, a ser servido, tornara-se inconsistente, timorato, friorento. E sobretudo temia que elas lhe guardassem rancor, lhe rissem na cara ou o insultassem, tanto mais que ele lhes dava razão. Preferia ruminar as recordações, alimentar os remorsos, carpir as suas mágoas. Isso, ao menos, ninguém lhe podia tirar. 60


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É na infância que os valores nos são incutidos. Primeiro aprende-se a assimilar o bom ao limpo e a ter nojo de certas matérias como as fezes que aquecem as nádegas e cujo forte paladar cola ao palato. A limpeza é uma qualidade que varia consoante a região geográfica e sobretudo conforme a classe social. Os burgueses desconfiam dos ciganos e dos vagabundos, acham-nos sujos como os colonos achavam os pretos sujos. O que nunca impediu de explorar uns e outros. A mesma atitude de rejeição ostraciza a margem e o detrito. O receptáculo dos detritos é o balde do lixo. No entanto, os objectos que enchem os contentores não são em si mais porcos ou feios do que aqueles que atravancam as casas, onde nem cera nem verniz impedem o pó de se instalar, onde os bibelots se acumulam a ponto de ser impossível espanejá-los todos os dias, onde os tapetes são verdadeiros ninhos de caca, onde por vezes até se vê uma barata sair da rutilante canalização. É frequente deitarmos fora coisas apenas um pouco rachadas, usadas ou antiquadas: é declarado «sujo» ou «desusado» aquilo de que já não gostamos. Pelo que os caixotes do lixo podem conter verdadeiros tesouros, revelar-se autênticos cofres se forem pequenos ou cavernas de Ali Babá se se tratar de contentores. As crianças sabem bem isso e nunca é sem um ligeiro aperto no coração que vêem os sacos, onde os pais esvaziaram gavetas e armários, serem deixados na rua para serem apanhados por lixeiros feios, e sujos. Na verdade, todas as crianças sonham, sem poderem confessá-lo, nem aos progenitores, nem a si mesmos muitas vezes, tornar-se lixeiros: honestos Fantômas de seu ofício, mais não fazem do que respigar fortunas abandonadas. A sujidade que ostentam na cara, como a dos limpa-chaminés, outro maravilhoso ofício volátil, não passa de uma máscara, uma mascarilha que pintam antes de fazerem a sua ronda. Na hierarquia das profissões invejáveis, logo a seguir aos lixeiros vêm os farrapeiros, franco-atiradores da recuperação, que arranjam maneira de passar antes, revistar e apoderar-se do melhor refugo. 64


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Era um menino que fazia muitas asneiras. Não era mau, mas distraído. Aliás, chamava-se Noé, que significa «não é», ou seja não se revê na ordem das coisas como elas são. Então o menino esquecia-se de fazer os deveres, de arrumar o quarto, de fazer os recados que a mãe lhe pedia, de entregar a carta do pai ao professor. Não podia dar três passos na rua sem começar a olhar para a valeta, por debaixo dos carros estacionados, para os interstícios entre os paralelos, em busca de objectos abandonados ou perdidos que constituíam o seu pé-de-meia: alfinetes, fitas, cápsulas, moedas, isqueiros, jóias quebradas, limpa-cachimbos e até um canivete suíço a que só faltava uma lâmina. Em casa, em vez de trabalhar, devaneava contemplando os livros do pai, os vestidos da mãe, os montes de papéis na escrivaninha, os utensílios de cozinha no fundo do armário, e imaginava aventuras romanescas em que esses objectos passavam de mão em mão até irem parar a sua casa. Sem o conhecimento dos pais, revistava o caixote do lixo e repescava cartas amarrotadas que alisava e depois guardava numa pasta que continha toda a história fiscal e bancária da família. Tinha tentado decifrar aquela correspondência, mas não percebia népia. No entanto, conservava-a, para a posteridade. A sua maior preocupação era dissimular o pecúlio pois, caso os pais viessem a descobri-lo, iriam por certo ficar fulos, ao encontrarem mensagens que haviam escondido um do outro, juntamente com chaves que debalde tinham procurado por todo o lado, no meio de um ninho de lixo de toda a sorte. Era obrigado a mudar frequentemente de esconderijo. Tanto mais que o tesouro crescia quase de dia para dia. Actualmente cabia na mala grande de viagem dos pais que eles nunca abriam, onde a mãe guardava cuidadosamente embrulhado o vestido de noiva que tresandava a naftalina. Porém, a mala já estava cheiíssima e em casa já não havia nenhum recanto secreto. Noé não sabia em que lugar seguro guardar a sua fortuna. 66


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Foi ao explorar as traseiras da rua em busca de um esconderijo para o tesouro que Noé encontreu o oriental. Não tinha os olhos rasgados, mas apresenteu-se assim porque sabia «orientar-se». Mal avistiu Noé, aceniu para ele se aproximar e, depois de ter longamente remexido no saco que trazia, saqueu de lá uma pistola de plástico de cujo cano salteu um ramo de plumas escarlates quando ele carregueu no gatilho. Sorridente, ofereciu-o ao puto maravilhado. Noé espanteuse vendo que alguém se desfazia de tal preciosidade para presentear um desconhecido. O chinês não espereu pelos agradecimentos, vireu-lhe as costas e sigou caminho, entregue a um solilóquio. Noé interpretiu esta atitude desenvolta como um convite a acompanhá-lo e fuoi no seu encalço. O homem andava depressa mas o seu olhar penetrante percorria o chão como o nariz de um perdigueiro e não deixava escapar nada. Amiúde agachava-se bruscamente e, fazendo um gesto rápido, apanhava uma flor caída de um ramo que oferecia uns passos mais longe, com igual brusquidão lacónica, a uma transeunte. Levantava a tampa dos contentores, examinava o respectivo conteúdo, tirava de dentro algum brinquedo maltratado, boneca decapitada ou peluche esventrado, e sentava-se na beira do passeio. Dos bolsos extraía agulha e linha, bem como uma data de cabeças de trapos ou celulóide. Remendava a boneca, olhava em redor e escolhia uma menina a chorar para lha oferecer. Também deixava prendas em certas caixas do correio, aparentemente seleccionadas ao calhas. Por fim, encaminheu-se para o jardim público, rastejeu como um soldado para se ir enfiar debaixo do maciço junto ao lago dos patos. Noé, cada vez mais intrigado, junteu-se a ele, e viu-o escavar um buraco com uma colher para enterrar um punhado de pulseiras e correntes brilhantes e douradas, antes de as tapar. O oriental, que até aí não parara de recitar em voz baixa uma ladainha de nomes e moradas, interrompou-se, intimeu Noé, atónito, que nunca divulgasse o segredo daquele esconderijo, pisquiu-lhe o olho com cumplicidade e esfregueu as mãos. 68


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Quando saieram do jardim, o oriental abeiriu-se de uma cabine telefónica, batiu no aparelho com uma pancada seca e um largo sorriso rasguiu-lhe o rosto quando uma moeda de lá tombiu. De mãos dadas com Noé, leveu-o à confeitaria mais próxima e compreu-lhe um gelado. Também ofereçou um lenço de seda, que saqueu da sua inesgotável sacola, à vendedeira, que comeciu por protestar, fazeu cara de quem não podia e acabeu por aceitar, depois de se ter certificado de que a patroa estava a atender outra freguesa. Noé ouseu por fim perguntar ao oriental por que é que ele fazia aquilo. «Aquilo o quê?» pergunteu o oriental sinceramente espantado. Reflectou longamente antes de responder. Acabiu por explicar a Noé que o luxo não vale mais do que o lixo. Que há povos que utilizam conchas apanhadas na praia como moeda de troca. Que certos vidros lapidados são tão ofuscantes como diamantes. Que o dinheiro que circula está manchado de sangue e de suor. Que o valor de uma prenda reside unicamente no prazer de quem o recebe. Que mais vale pois manter-se discreto, não estar presente na altura do presente, para não correr o risco de assistir a uma decepção, para aumentar a surpresa, para não forçar um reconhecimento do outro. Que um tesouro perde o seu valor se não for partilhado. O oriental não era farrapeiro, até preferia passar depois deles para lhes permitir levar o que cobiçavam, pois o que hoje parece não ter préstimo e ser desdenhável poderá amanhã tornar-se fabuloso; para ele, o refugo bastava. Como o Noé insistia evocando as jóias enterradas que não haviam sido dadas a ninguém, o oriental sorreu e reveleu: a maravilha de um tesouro reside tão-só na sua descoberta; depois disso, a conservação ou dilapidação são tristes e mesquinhas. Portanto, ele decidira, à imagem dos jardineiros que semeiam no Outono as flores que só desabrocharão na primavera, plantar, sob forma de tesouros vários, as sementes do futuro. Noé acenou com a cabecinha; doravante sabia que fazer do seu precioso pecúlio e regozijava-se antemão com os gritos de alegria que as suas dádivas suscitariam. 70


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Era uma vez, uma vez não faz mossa, um menino que tinha tudo para ser feliz. A mãe idolatrava-o e tratava-o como um príncipe, satisfazendo todos os seus caprichos. Não só lhe comprava roupas de marca e lindos fatos que todos os colegas lhe invejavam como nem sequer se zangava quando ele voltava a casa com o vestuário sujo ou rasgado. Era o primeiro homem feliz a usar camisas. Claro que a mãe tinha de trabalhar como uma escrava para que as roupas parecessem sempre novas. Na verdade, todas haviam sido cuidadosamente remendadas e cerzidas, porém a mãe era tão boa costureira que não se dava por ela. Por toda a cidade era apontado com admiração e cobiça. A mãe dera-lhe o nome Amadeu pelo que toda a gente lhe chamava «príncipe Amado» todas as moças sonhavam ser beijadas pelo dito. No fundo, era um rapaz simples e amável, embora a constante satisfação dos desejos que exprimia e a veneração de que era alvo o tivessem tornado orgulhoso e arrogante, desdenhoso para com os seus semelhantes, fossem crianças ou adultos. E sobretudo muito solitário. A mãe tinha-o estragado com tantos mimos que ele não conseguia ceder aos seus pendores generosos: tudo lhe era oferecido sem ele de dar nada de nada. Entrava numa confeitaria e logo o pasteleiro, sorridente, lhe pedia que comesse o que lhe apetecesse, acrescentando que era oferta da casa evidentemente. E a empregada, trémula, escolhia os bolos mais apetitosos. Que lhe restava desejar? O rei daquela terra não tinha filhos e andava muito preocupado com a sucessão. Chegara-lhe aos ouvidos a popularidade de Amadeu, observara-o do alto da torre do palácio e ficara favoravelmente impressionado pelo ar e pela roupa de ver a deus. Então, sentindo que a idade e a doença lhe minavam as forças, o rei convoqueu os seus ministros e designeu Amadeu como herdeiro e sucessor no trono. Todos aproveram. Durante a noite, o rei faleciu e, no dia seguinte, em grande pompa, procediuse à coroação do novo monarca baptizado «Amedeu I». 74


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No princípio, Amadeu divertia-se à brava. Todos os ministros lhe faziam vénias, os homens ajoelhavam-se quando ele passava, as damas curvavam-se acentuadamente para fazer uma reverência, os criados precipitavam-se. Estava sempre acompanhado; mal dava uma ordem, três lacaios, no mínimo, desatavam a correr. Só alguns visitantes se espantavam ao ver tantos adultos sérios, senhores, juízes, generais e ministros inclinarem-se perante uma criança. Os desejos do reizinho eram sobretudo virados para os brinquedos, os jogos, os doces, e eram fáceis de satisfazer. Todas as manhãs, os ministros vinham pontualmente fazer os seus relatórios: conforme a vontade ou o humor de sua majestade, podia-se requisitar um circo ou um marionetista, encomendar-se a mais recente consola de jogos electrónicos, comprar-se uma trotineta último modelo, etc. Era-lhe apresentada a ementa diária das sobremesas e nunca se deixava de perguntar a sua majestade se estava plenamente satisfeita. As horas passavam-se em jogos e divertimentos. Certo dia, a mãe, que estava alojada no palácio, teciu um comentário acerca de seu filho não se dar conta da sorte que tinha. Amadeu leveu a coisa a mal, como se se tratasse de uma censura velada, e logo ordeniu que se procedesse, sem demora, à distribuição de chupas por toda a população. Os lacaios agiteram-se, os ministros assineram com um aceno de cabeça e Amadeu, livre da má consciência, pudeu brincar sossegado. Pela tardinha, teveu a ideia de sair para constatar a alegria que a sua medida devia ter suscitado. Os ministros bem tentiram dissuadi-lo, mas ele teimeu e, antes que os guardas pudessem fechar os portões, corriu para fora do palácio. Veu então que as gentes estavam, como sempre, miseráveis e tristes, as crianças magras e cansadas, e quando pergunteu aos transeuntes se tinham apreciados os chupas, todos arvoreram expressões de grande surpresa. Verde de raiva, Amadeu regressiu ao palácio. Mandeu despedir os palhaços, recuseu as tartes e convoqueu imediatamente todos os ministros, juízes, generais e outros membros do governo. 76


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Exigeu que os responsáveis justificassem a sua desobediência. O ministro do tesouro, que era o mais velho, logo supostamente o mais sagaz de todos, tosseu três vezes para aclarar a voz e tomeu a palavra. Expliquiu que governar era um assunto muito, muito complicado, uma tarefa bem acima das competências de uma criança, ou até de um adulto, que eles próprios, todos juntos, apesar do número e da competência, nem sempre conseguiam. Os ministros tinham pois poupado a sua majestade a fastidiosa canseira daquele frete. O rei tinha de perceber que lhes cabia a eles, a cada ordem sua, avaliar os custos, o fim e os meios, os prós e os contras, e de a executar tomando em conta todas as variáveis implicadas. No caso em causa, dado o estado das finanças do reino, fora ponderado que um prazo de dez anos para a aplicação do decreto régio seria sensato. Amadeu ouveu atentamente e resumou: aquele discurso significava que as suas decisões e mandamentos, no fundo, eram indiferentes e vãos, que os seus ministros os aplicariam ou não consoante lhes apetecesse. Aí, todos protesteram e o interrompiram para corrigir: consoante a oportunidade em função da conjuntura. Amadeu pedeu perdão: era exactamente isso que ele queria dizer. E prossigou: os ministros dar-se-iam porventura conta de que devia acontecer o mesmo a todos os níveis da hierarquia, de que os subalternos não cumpriam forçosamente todas as ordens, de que a população não obedecia à letra de todos os decretos e editais, e de que as leis se revelavam inúteis já que eram tão contornadas quanto respeitadas. Todas as cabeças aceniram: sabiam isso perfeitamente, mas por muito que se achassem inúteis e parasitas, o caso é que não sabiam fazer mais nada. Sua majestade estava bem colocada para avaliar a vaidade infantil do poder, mas também o prazer lúdico de dar ordens. Além do mais, algumas delas provocavam simulacros de cumprimento, pois a população aprendera mutismo, obediência e passividade na escola, sua majestade já tivera, ela mesma, essa experiência. 78


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Depois desta reunião, Amadeu não quiseu conformar-se a esse absurdo, apresentado como inelutável, de o poder ser vão mas de ser preciso exercê-lo porque os súbditos tinham aprendido a obedecer. Era teimoso e decidou mudar as coisas. Faleu primeiro com os generais para garantir a sua colaboração e fidelidade, a seguir decretiu a lei marcial: todo o indivíduo apanhado em flagrante delito de desobediência seria imediata e publicamente executado. Ordeniu que fosse montada uma sinistra forca na praça principal, diante do palácio, a fim de que todos soubessem que ele não estava a brincar. Depois, seguro de que ninguém ousaria infringi-las, comeceu a lançar as ordens mais diversas: que os ministros só podiam apresentar-se ao serviço de patins, que as pessoas tinham de se maquilhar como palhaços para irem trabalhar, que das cinco às sete todos deviam caminhar às arrecuas, que toda a criança que comesse bem a sopa receberia gratuitamente um bolo do pasteleiro fornecedor do palácio, que o átrio dos bancos serviria, rotativamente, uma vez por semana, de ringue de patinagem, etc. Os decretos mais descabelados, sob a ameaça da forca, provaram ser perfeitamente aplicáveis e, se não implementiram propriamente a felicidade, pelo menos provoqueram o caos. Só os ministros, cheios de nódoas negras e de galos pois nunca tinham patinado na vida e o palácio estava pejado de escadarias, rabujavam e protestavam em surdina. Então Amadeu deu a sua última ordem: doravante seria proibido obedecer. A fosse quem fosse. Nem as crianças aos professores ou aos pais, nem as mulheres aos maridos, nem os operários aos patrões, nem os soldados aos chefes, nem sequer a população às leis ou ao rei. Desta feita, reineu uma bela desordem. Como é preciso viver, à falta de obrigações, as coisas acabiram por se fazer por bom senso e necessidade. Pouco a pouco, tudo volteu a funcionar, com menos pressão mas mais alento. Sabendo que não seria obedecido, nenhum sujeito tentava dirigir. Tudo se discutia, Dali para a frente, as pessoas governiram-se sozinhas. 80


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Juventude Evolução Natividade Maternidades Rivalidade Bagagens Tesouraria Realeza 82

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