Onde pára o cinema português

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ONDE PÁRA O CINEMA PORTUGUÊS As condições de produção do cinema português — financiamento de estado quase exclusivamente — são sem dívida responsáveis pelo seu desenvolvimento a passo de caracol, visto que, de há uma meia dúzia de anos a esta parte, nenhum cineasta de envergadura se revelou na nova geração de realizadores. Se o cinema português continua a ser apreciado no estrangeiro — mantendo-se de uma qualidade notável acerca da qual podemos afirmar que 20% da produção se situa na vanguarda da pesquisa formal e discursiva do cinema europeu — é graças (não falando da importante contribuição do Manoel de Oliveira) aos cineastas da nova vaga dos «anos Gulbenkian» — Paulo Rocha, ou mesmo António-Pedro Vasconcelos e Fernando Lopes — ou a cineastas aparecidos a seguir à «revolução dos cravos» — Jorge Silva Melo, João César Monteiro e João Botelho. É difícil distinguir na geração seguinte grandes cineastas na medida em que a maioria dos novos autores se ficou pelo primeiro filme — alguns prometedores mas limitados, aliás mais ao nível das ambições do que dos meios. Por isso somos levados a considerar uma geração e não individualidades, correndo o risco de reduzir tal personalidade a características secundárias do grupo e de caracterizar esta geração em função dos traços mais salientes de certos realizadores. O panorama que a seguir bosquejamos, o qual, esperamos, não pecará por demasiada simplificação, pretende exprimir um ponto de vista crítico, porque nos parece que o presente atolamento do cinema português se deve, em última análise, ao conforto inerente a qualquer produção estatal — i.e. a fundo perdido, sem obrigação de envolvimento, nem necessidade de discurso por parte do cineasta. 1. O FECHO A geração anterior caracterizava-se obviamente pela cinefilia — que é sempre bulímica e tão comprometida quanto ecléctica —, geração de amigos que discutiam filmes estrangeiros — dado que a cinematografia nacional atravessou, no pós-guerra, um período de excepcional nulidade — e o futuro do cinema, tomando por modelo as correntes renovadoras na Europa, todas determinadas pela redução de meios financeiros — neo-realismo italiano, nova vaga francesa, etc. Geração de «críticos» que passaram à realização como a dos Cahiers em Paris. Geração também de «provincianos» que partiram à conquista da capital, com toda a combatividade que essa situação à «Rastignac» implica. A nova geração é, por comparação, uma geração lisboeta — consciente apenas dos seus próprios privilégios —, escolar — formada no Conservatório. Uma geração de «colegas» e já não de amigos, para quem o cinema surgiu de imediato como uma carreira — uma boa parte deles foram «convidados» para realizar um episódio televisivo (série Fados) ou para dar aulas na Escola Superior de Cinema antes de terem realizado a primeira longa-metragem. Geração cujas referências se esgotam numa nova vaga estafada e no modelo narrativo americano — o único que aparentemente sobreviveu. Por último, uma geração formada numa paisagem audiovisual dominada pela publicidade e num quadro de cultura em inflação dominada pela moda. Geração fechada posto que por si só constitui o «meio cinematográfico» — dentro do qual os laços de «classe» são reforçados pelos do casamento —, herdeira numa época em que o desenvolvimento do audiovisual abre perspectivas de carreira, forçada a gerir uma crise de produção sem ter de impor novos valores. 2. A MARGEM A análise dos filmes evidencia características comuns a vários cineastas. Há alguns anos, ao fazer uma primeira abordagem do trabalho desta nova geração, António Roma Torres — «Os verdes anos oitenta» in A Grande Ilusão nº 6 — indicava que a afirmação dos novos cineastas não passava «por um discurso de autor». Com efeito, constata-se uma grande timidez tanto formal (modelo do filme de acção: Brian De Palma copiado em DUMA VEZ POR TODAS de Joaquim Leitão, Francis Ford Coppola em NUVEM de Ana Luísa Guimarães; ou audácias praticadas há 25 anos pela nova vaga: pintura dos cenários com cores fortes e sem meios-tons em FILHA DA MÃE de João Canijo seguindo o modelo de Godard no tempo de PEDRO O LOUCO e MADE IN USA; vaivém da narração em voz off e travellings de espelho a espelho segundo o padrão dos primeiros RobbeGrillet em O SOM DA TERRA A TREMER de Rita Azevedo Gomes, etc.) como temática


(experiências intimistas ligadas à adolescência ou à pré--puberdade — UMA RAPARIGA NO VERÃO de Vítor Gonçalves, TRÊS MENOS EU de João Canijo, UMA PEDRA NO BOLSO de Joaquim Pinto, O SANGUE de Pedro Costa...). Curiosamente, o espaço dramático privilegiado para este último grupo de filmes parece ser a casa isolada, ou até o tempo de folga (as férias); em su ma, nestas fitas, o íntimo não é vivido dolorosamente por estar em oposição com o mundo exterior ou por se confrontar com uma vida «corrente», antes surge divorciado da vida activa: o novo cinema encena uma margem. Todavia, a acção de alguns filmes desenrola-se em Lisboa; aí, os citadinos da capital reduzem-se aos polícias e aos malandros — mesmo na cena de café de FILHA DA MÃE — i.e. a cidade é assimilada ao cenário convencional das séries made in USA por um cinema que pretende abertamente imitar o modelo americano; tenta-se compensar a inverosimilhança através de uma multiplicação dos dados «realistas» locais — «retornados» e recordações das colónias em AO FIM DA NOITE de Joaquim Leitão, inquéritos sobre os marginais em NUVEM; a falta de lucidez e de distanciação evidencia um abismo, se compararmos estas fitas mesmo à infeliz CRÓNICA DOS BONS MALANDROS de Fernando Lopes da qual AO FIM DA NOITE retoma elementos estruturais — o «Frágil» substituiu o «Bar do Japonês» (esta filiação mereceria aliás uma análise mais aprofundada: enquanto que a geração anterior sabia que, de uma maneira ou doutra, tinha de «reinventar» o cinema, a geração de 80 reciclou o sistema de citações em voga a partir da «nova vaga» e não hesita em citar os «pais»; assim o princípio do episódio dos Fados, assinado por Joaquim Leitão, é quase a repetição da primeira cena de MATAR SAUDADES, o carro na ravina de O LUGAR DO MORTO reaparece em A IDADE MAIOR de Teresa Villaverde; acrescente-se que a citação já não exprime uma referência a um momento-chave na história do cinema mas uma filiação dentro do pequeno circuito fechado lisboeta). Ou seja, mesmo nesses filmes, a ambição do discurso mantém-se aquém do real filmado que surge esvaziado de qualquer sentido extra-diegético. O único filme recente que parece apresentar um embrião de projecto discursivo e estético é, na nossa opinião, A IDADE MAIOR de Teresa Villaverde, embora falhe ao nível do resultado — i. e. não consiga estar à altura das ambições que demonstra — mas por outras razões: a realidade da Beira interior é demasiado exterior tanto aos actores — incapazes de corporizar as personagens como já acontecia em MATAR SAUDADES — como à realizadora, e perde toda a consistência passando a possuir apenas um valor simbólico. No decorrer do filme, sentimos nitidamente o desaparecimento do ponto de vista inicial — o da criança —, desaparecimento esse que implica a dissolução da coerência global da narrativa. 3. GEST1ONÁRIOS E TECNOCRATAS O problema fundamental do novo cinema português é um problema de visão. A limitação dos filmes recentes advém acima de tudo da escassez de ambições que demonstram e o lado simpático das primeiras obras de Vítor Gonçalves, de João Canijo ou de Joaquim Pinto, decorria em parte da consciência nelas patente dessa pobreza de mensagem. Em contrapartida, a faceta imperdoável desta colheita de filmes, para não falarmos de geração de cineastas, reside na sua própria conformação; as fitas sucedem-se com os mesmos defeitos, a mesma inconsistência. A falta de concorrência e a ausência de uma verdadeira abordagem crítica faz com que estes filmes fracos se transformem em padrão do cinema nacional. A inépcia de certos produtos da geração anterior levou a que os seus autores caíssem no esquecimento (de Sá Caetano a Ricardo Costa, a lista seria fastidiosa), mas a nova geração subiu à «área» do poder — Joaquim Pinto e Ana Luísa Guimarães são produtores — sem que os lugares-chave que ocupam sejam ameaçados pelo insucesso ou pela mediocridade dos filmes produzidos. Alguns conseguiram realizar o segundo filme: ora é notório que VERTIGEM de Leandro Ferreira é um «remake» de CONTACTOS, ONDE BATE O SOL de Joaquim Pinto um «remake» de UMA PEDRA NO BOLSO, AO FIM DA NOITE de Joaquim Leitão um «remake» de DUMA VEZ POR TODAS. Ou melhor, são filmes diferentes que tratam o mesmo tema, como se os primeiros filmes, insatisfatórios na sua ingenuidade, nas suas hesitações narrativas, ou até nas suas imperfeições técnicas, constituíssem um modelo arquetípico que os autores tentam melhorar. Os segundos filmes são efectivamente mais bem «construídos», defendidos por uma imagem mais «clean», mas a estandardização do produto conforme as normas


«europeias» não remedeia em nada o mal visceral — já que esse mal lhes vem das tripas — dos primeiros filmes, a saber a pobreza da mensagem — i. e. a ausência de relação profunda entre o projecto e o mundo do realizador, ainda que esse mundo seja ficcional e em parte coincidente com o do cinema —, e traduz-se, no melhor dos casos, por uma perda de frescura. A normalização técnica — que se exige da imagem como se exige da fruta — não é suficiente para validar um cinema que, por se sentir ameaçado, deveria mostrar-se mais ambicioso. O recurso sistemático ao lugar-comum sugere claramente que o próprio «modelo» americano foi reduzido, segundo a boutade de Godard, aos seus clichés. Ora, basta ver qualquer série policial — já não falando de filmes — para constatar que a sua força reside, não tanto na coerência do argumento, mas antes na consistência das personagens e que a «continuidade» não se resolve com a visualização sistemática das entradas e saídas de campo das figuras, mas pelo contrário através da eliminação, no âmbito do filme de acção, dos momentos mortos... Acrescentemos que os novos realizadores portugueses não parecem dar-se conta de que as tradições nacionais continuam a pesar inconscientemente sobre o tipo de encenação que praticam — quanto mais não seja porque um filme é sempre fruto da colaboração de vários técnicos que poucos cineastas controlam cabalmente. A superficialidade das opções estéticas faz com que o modelo do filme de acção adoptado por Joaquim Leitão, Leandro Ferreira ou Ana Luísa Guimarães se revele em contradição absoluta com o lugar atribuído à câmara como clássica boca de cena; a diversificação dos ângulos não chega para erradicar o estatismo narrativo que o ponto de vista da câmara engendra — pois a contradição entre o modelo e a realidade nacional eclode a todos os níveis, inclusive ao da tomada de vista e da iluminação dado que o negro, por exemplo, ainda mete medo a alguns dos nossos directores da fotografia. Assim, a nova geração apresenta filmes que não sentimos sustentados por projectos cinematográficos — a vontade de obter uma qualidade-padrão não justifica de modo nenhum o investimento que a produção nacional representa. Se lutamos pelo reconhecimento do valor cultural do cinema, é porque acreditamos que este media é capaz de criar para o público uma imagem da sociedade em que vivemos, das suas realidades, dos seus fantasmas, das suas angústias ou das suas ambições. Enquanto houver filmes rodados em Portugal, os cenários, os actores, bem como todos aqueles que se movem por detrás da câmara, moldam essa imagem. Ao fechar-se numa margem em que cada elemento pretende negar a sua própria realidade — Maria de Medeiros nunca observou os gestos da servidão... a cada passo esvazia o fascinante papel que lhe cabia em A IDADE MAIOR; para Ana Luísa Guimarães a delinquência é um tema e o anjo mau da candura um simples look... por isso o único traço comum entre a NUVEM e um filme policial estará no facto de todas as emoções obedecerem à polícia do bom gosto; Joaquim Leitão está para Céline como o porteiro dum bar para o porteiro do inferno... no FIM DA NOITE vemos sobretudo as pequenas vaidades de um jovem cineasta a arder na fogueira vistosa de um orçamento que dava para reformar todos os polícias da cena final — o novo cinema português condena-se a não desempenhar a sua função cultural. A menos que, num país onde nenhuma crise social grave parece querer explodir, os realizadores tenham feito seu o optimismo jubilante dos nossos governantes e se tenham instalado definitivamente no vazio dum discurso inspirado pelo nacional-porreirismo e pelo famoso método Coué: «Tudo na maior». S.


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