OS FIOS INVISÍVEIS A despeito da desigualdade duma produção excepcionalmente bulímica, Fassbinder nunca realizou nem filmes de encomenda nem filmes de «divertimento» (a noção de «entertainment» subentende a ideia de uma encomenda implícita do público que se procura satisfazer). O «problema» formulado ou representado era o único dado que justificava e condicionava a representação. A dificuldade de contacto com os outros — sempre de atracção sexual, de desejo, que pode ser assumido sem ser satisfeito mas que, a maioria das vezes, fica por assumir apesar de satisfeito —, central em toda a obra de Fassbinder, exclui a evidência do prazer na qual assenta tradicionalmente o espectáculo — não é indiferente que o realizador tenha baptizado o seu centro dramático «antiteatro». Em relação ao discurso, a representação materializava a dificuldade da encarnação; em relação ao espectáculo teatral, o cinema permitiu-lhe, por um lado, integrar a imagem do corpo num espaço de vida urbana — alguns lugares, a rua, o café, são constantes na quase totalidade da sua obra —, por outro, cercar pelo enquadramento não o corpo problemático — muito poucos grandes planos no conjunto da sua obra —, mas a distância entre dois corpos que determina o comportamento de cada um. O lugar da câmara nos filmes de Fassbinder não é justificado por um «ponto de vista» mas pela reunião numa mesma imagem dos dois corpos em presença. As posições respectivas materializam uma relação de forças que não coincide exactamente com a relação de desejo. Fassbinder explorou todas as formas possíveis de representar esses fios invisíveis à tomada de vista, da profundidade de campo — O DIREITO DO MAIS FORTE À LIBERDADE, A SEGUNDA DIMENSÃO, A SAUDADE DE VERONIKA VOSS — ao segundo plano desfocado — A MULHER DO CHEFE DA ESTAÇÃO, QUERELLE—, do desenquadramento e do alargamento progressivo do campo no eixo — SACO DE GATOS — ao jogo dos movimentos de câmara para enclausurar as personagens — AS LÁGRIMAS AMARGAS DE PETRA VON KANT. Contudo, a variedade formal corresponde à incansável denúncia duma única causa: a frustração institucional (histórica, social, etc.) do desejo. Dentro duma estética realista, Fassbinder conseguiu exprimir no cinema uma problemática do corpo — problemática aliás muito debatida desde Reich e da sua divulgação — que, pela racionalização, o discurso verbal simplifica: a presença dos actores, cuja distância face à câmara traduz bem essa impossibilidade de contacto que exacerba e simultaneamente frustra o desejo — de tal modo que Fassbinder chegou a ser tentado pela estética hollywoodiana a dada altura da sua carreira (LILI MARLEEN) —, problemática essa que transcende a estilização formal. E esta contradição interna que Fassbinder nunca procurou contornar é o garante da sua sinceridade. S.