Os mestres da terra

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OS MESTRES DA TERRA No mais recente filme de Kurosawa — MADADAIO — o Japão é realmente apresentado como terra de mestres e discípulos. E tanto a relação de hierarquia como o primado da ordem parecem dados de tal modo interiorizados que o divertimento e a transgressão (a desenvoltura traquina dos ex-alunos que se auto-convidam para a mesa do mestre e a cena gaga da recepção ao ladrão) se lêem como inconsequentes marotices de criança. Só a guerra — reino do caos — pode perturbar o ancestral conforto feito de certezas positivas (i.e. o respeito e admiração pelos sábios e pelos anciãos, a subalternização inquestionada das mulheres, etc.) que corresponde a uma implícita paz social e ideológica. É raro o frequentador do circuito comercial — as salas onde normalmente se exibe o cinema mainstream e episodicamente algumas obras periféricas e/ou independentes de produção não-americana — ser confrontado com um objecto tão desconcertante. O Japão é decerto o sítio mais exótico do planeta, regido por um apego nostálgico às mais conservadoras concepções de família e autoridade. O que levanta a questão de como encarar o filme de Kurosawa: abordá-lo com a distância suficiente para reprimir uma primeira — epidérmica — reacção de rejeição ou recebê-lo com afectividade parcial e céptica tal como olharíamos para um filme de Almodóvar ou Allen. Na cena inicial, as personagens masculinas são-nos pintadas em bloco: um sisudo e competente professor dá a sua aula de despedida perante uma turma uníssona de jovens admiradores. São esses mesmos alunos que, marcados pela influência do mestre, o acompanharão, protegerão e homenagearão, organizados em séquito, até à última hora que coincide com a derradeira cena do filme. Os últimos momentos explicitam aliás o leitmotiv «Madadaio» (título do filme na versão francesa) que evoca um jogo de escondidas com a morte. Brincadeira que reflecte o tom geral, infantil e grave, deste trabalho de Kurosawa. O ascendente do mestre reformado sobre os alunos configura um quadro de dependência filial. Porém, por um efeito de ricochete, da constante presença dos discípulos na vida do velho senhor decorre naturalmente uma impressão de equivalente dependência da figura tutelar em relação aos seus pupilos adultos. Os múltiplos retratos de conjunto que ao longo do filme nos são propostos — visitas, conversas, celebrações — constituem outros tantos biombos atrás dos quais o ancião se esconde da morte até ao instante de rendição serena e espontânea que ocorre no seguimento de mais um jantar de cerimónia ou seja após a demonstração culminante do sincero reconhecimento de toda uma geração que perpetuará a sua memória e porventura os seus ensinamentos. O problema de descobrir aquilo que nos prende vida, saber aquilo que nos mantém ocultos aos olhos da morte parece pois encontrar resposta nesta inalterabilidade dos laços de dependência. De resto, uma das longas sequências do filme gira à volta dum gato de estimação que se perde e se procura colectiva e desesperadamente como se se tratasse inequivocamente de uma questão de vida ou de morte. Estamos perante uma ilustração e uma defesa empenhada dos modos de relação que supostamente equilibram as sociedades tradicionais — o homem, preso e seguro numa rede hierarquizada de obrigações morais, numa malha cerrada de bons sentimentos, pode desafiar os ultrajes do tempo social e físico. As últimas estreias de Kurosawa revelam que o cineasta tem vindo a realizar uma obra muito livre ao nível conceptual (graças talvez ao binómio idade/reconhecimento...) em que cada filme pode ser entendido como testamento. A intimidade, a confidência, o ensaio, a pulverização das estruturas narrativas, a exposição por fragmentos, a referência à tradição pictórica, são ingredientes habitualmente banidos do cinema de produção normalizada, pelo menos quando empregues em doses consideradas «sem conta nem medida». Permitir-nos-emos concluir que Kurosawa busca formas «novas» a fim de melhor professar o retorno a uma antiga harmonia? E, se a morte for o polícia de que todo o ladrão de vida tenta fugir, será pertinente considerar que o seu espectro, na ausência de Deus, se impõe como derradeiro guardião da humana felicidade? R. G.


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