Os meteoros

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OS METEOROS Personagens: Os deuses-clowns TOT MERK Os humanos GLÓRIA GINO FAUSTO (MARIA) LOLA Duas imensas escadarias, que por vezes se entrecruzam, correspondendo a dois planos de representação. No primeiro, mais elevado, as divindades, infinitamente belas, esbeltas e trôpegas, estão permanentemente em estado de perda de equilíbrio. No segundo, mais próximo do chão, os homens, sempre empertigados como se alguém os pudesse castigar por desleixo, mantêm entre si uma distância que os obriga a inventar sucessivos simulacros de intimidade. Cena 1 TOT tremendo como varas verdes Já não sangrava. Quase não há-de sangrar. Ti-no-ni. Ti-no-ni. MERK tropeçando num degrau Tão leve, tão leve. E que pontaria! Pã-põ.Pã -põ. TOT Pequena ave de rapina. Nasceu ensinada, esta ave. Uma ave depenada tomba do céu. Tot e Merk não se deixam comover. MERK como se tivesse acabado de aprender a palavra Sina? Siiina. TOT sonhador Sim. Eles gostavam disso. Quando a terra lhes fugisse debaixo dos pés. Sina. Senão... MERK Lembra-se da mulher que punha vírgulas nos textos? Completamente borracha e não quer tropeçar. Senão sim. TOT sorrindo como uma velha de oitenta anos Chegava o Fausto. Passará a mão pelo cabelo. Tinha cara de quem vomitou. Por pudor, não fuma aquele cigarro.Um polícia puxa-lhe pela manga do casaco. Perdeu o pio. Assinará um, dois, três papéis. Siiina. Embrulham o corpo. O Fausto não conseguirá chorar. Perfeito. Estava pronto para ser consolado. MERK E os outros?


TOT Estavam a caminho. Encontram-se à porta do hospital. Tomarão café. De pé. MERK Entretanto a noite cai. Será uma longa noite. Esta. TOT Perfeito. MERK Nada é. Tudo muda. Mudamente tudo se mudará. Mas eles não sabem. TOT Perfeito. Pim-pam-pum. Maria morta. MERK Adivinhaste? TOT Perderá o emprego? MERK Frio. TOT O médico amputou-lhe a mama esquerda? MERK Morno. TOT Apaixona-se por uma aluna de treze anos? MERK Morno. TOT Olhou para o espelho e achou que não podia continuar? MERK Não. Olha longamente para as águas correntes. Sentia que era feita da mesma massa. TOT Aborto natural. Grande ideia, Merk... MERK Escalda. Escalda. TOT Limpo. Perfeitinho. Cada bola mata um. Maria morta. MERK Enquanto Fausto dobrado com dores de barriga, Glória ocultando o sorriso. Um dente encavalitado no lábio superior. TOT Esqueceu o caminho de casa. Perder-se-á nas ruas. O molho de chaves tilinta na cabeça. Um rafeiro escanzelado ladrou-lhe. Não lhe largará os tornozelos. Cheiro a morte, pensa. MERK Ela não dorme. Por cima do roupeiro, uma sombra nova. A seu lado, setenta quilos de carne amiga. Na rua, o silêncio fervia. TOT Tenho ordens muito precisas. Nevoeiro. Chuva fina. Uma chuva de feijões. Tot e Merk tapam os ouvidos.


MERK Não. Uma noite clara. O sentimento de que o mundo continuará o seu alegre curso. Uma noite amável, como se o Verão não pudesse acabar. TOT Mas... MERK Sim? TOT Ninguém melhor que o meu senhor sabia de suas criaturas. MERK Criaturas várias vezes criadas. Crianças de muitos genitores, gerados na tormenta. Tripas e mais tripas. TOT O senhor mais antigo assobia ao meu ouvido... MERK O meu era como um pescador: na ponta da linha, a razão de seu estado esperneando, esperneando... TOT Certo. Calhou certo. Cada um puxando a brasa para a sua certeza e dava certo. MERK Maria morta. E menos não cabia a cada um. Maria morta. A pequena mentira mais forte que a grande verdade. O meu senhor puxava pela linha e a louca razão esperneará. Dela o nosso estado se alimenta. Tragam-ma morta. TOT Mais morta ainda? MERK Ti-no-ni. Ti-no-ni. Ti-no-ni. Ni. Ni. Ni. Chuva de bonés vermelhos. TOT Menos então. Tadinha. Cena 2 FAUSTO Obrigado. Por tudo. GINO Tudo? FAUSTO Isto. GINO Ora. Os amigos... FAUSTO Eu sei. GINO Portanto.


FAUSTO Sim. GINO A qualquer hora. FAUSTO Acho que vou dormir a uma pensão. GINO Lá em casa.. Cai uma almofada. FAUSTO Não. GINO O sofá. A empregada... FAUSTO O armário ficava sempre aberto. Uma superstição. E agora... GLÓRIA As roupas. O pior são as roupas. Ela era magra que nem um espeto. Devias oferecer as roupas a um orfanato. Servem a uma catraia de treze anos. FAUSTO Não sei. Acho que a Maria vai voltar. Isto é um pesadelo. Até o cheiro dela desapareceu. GLÓRIA Estamos na era da máquina de lavar. As pessoas distinguem-se pelo perfume do amaciador. Pausa. Alfazema de hospital. Pêssego careca. Rosa caca. FAUSTO Mas eu li algures que o perfume só se revela quando... se aparecer misturado com o suor. Deve ser por isso. GINO Ló, vamos deixar o Fausto descansar. FAUSTO Ela só gostava daqueles perfumes de bébé. Chegava a dar-me náuseas. GINO Ló, o Fausto precisa de dormir. GLÓRIA Não confundas o sono do Fausto com a tua vontade de dormir. Fogo! Volta para casa. Vai para a cama. Sozinho. Dá coices nas almofadas à vontade. Eu trouxe o meu carro. FAUSTO Era amada. Os alunos adoravam-na. Diferentes todos os anos. Era amada. A Mariquita. Nunca ia ao cabeleireiro. Tinha um quilómetro de cabelo. Nunca ia ao dentista. Tinha dentes de tigre. Tinha unhas, tinha cinco dedos. Tão perfeitinhos. GLÓRIA Mas andava pálida. Ultimamente... FAUSTO Ficava-lhe bem, a palidez. GLÓRIA Era muito discreta. Demasiado discreta. Até custa a acreditar que tenha caído duma ponte abaixo. Embora...


GINO Até os anjos têm acidentes. FAUSTO Ela voou. Voou. Como pôde voar sem mim, a professora Mariquita? GLÓRIA Tu não dizias que a tua mulher era um poço de segredos? Aí tens. Enganou-nos a todos. GINO Estás a falar duma pessoa que morreu, Glória! GLÓRIA Pois. Nesta altura, a Maria deve gozar que nem uma preta. Lá no grande buraco negro, estáse a rir de nós. A expressão é "ir daqui para melhor", não é? FAUSTO Tu nunca gostaste da Mariquita. Cala-te. GINO A Ló não admite que um amigo se case sem a sua autorização. E também não admite que uma amiga morra sem sua devida licença. Nem que seja por acidente. É uma mulher de princípios, a Ló. Vocês os dois... GLÓRIA Eu acredito em Deus. Criador do céu, da terra e dos homens. Dono da vida e das vidas. E não admito facilmente que uma lambisgóia, casada com o homem mais meigo que Deus fez, dê cabo da vida. Dela e dele. FAUSTO Não vou atrás da Maria, descansa. Onde é que arranjava coragem? Apenas me sinto abandonado. Traído. É pior do que descobrir um amante... que ela tinha um amante. GINO para desanuviar E quem te diz que não tinha? O meu pai morreu sem saber que a mamã lhe pôs os cornos durante vinte anos. Ela amava-o, nunca o quis magoar, percebes? FAUSTO Quem dera poder ir partir as trombas a esse amante. Persegui-lo. Ameaçá-lo. Lixar-lhe a reputação. E, no fim, tornar-me amigo do cabrão. Partilhar o luto. Trocar impressões. A verdade é que amámos mal a mesma mulher. Um amante seria um rasto, uma razão. GLÓRIA Achas que a tua mulher era capaz de meter um sujeito na cama? Um tipo que lhe partisse as costelas a arfar em cima daquelas mamas de Virgem Maria? Cai uma bola pequena. Depois uma maior. Fausto estremece. GINO Estás a falar duma morta, Glória! GLÓRIA E depois? Só ela morreu, eu não morri. Para mim, ela não morreu. Para o Fausto, ela não morreu. Esse é que é o problema. A criatura salta da ponte abaixo e acha que está tudo acabado. Mas não é assim. A morte tem de ser justa. A justiça da morte mais injusta, tu consegues aceitá-la porque a pessoa foi vitimada. Enquanto que, neste caso, a pessoa vitimou. A vítima, armada em vítima, vitimou. Fogo! GINO Merda, não compreendes que uma mulher possa estar cansada de viver. Que possa estar cansada do marido e do amante e da amiga?


GLÓRIA Isso acontece a todas as pessoas, todos os dias. Os olhos quase se fecham. Os olhos deixam de ver. O coração pára de bater. Entre duas batidas, o coração não bate. Entre duas imagens, olhos não vêem. Quase se morre, a cada instante. Quase se ama, quase se mata, quase se perdoa, quase se esquece. Deixa lá, Gino, tu dormes dez horas por dia, mais as muitas em que fazes de conta que estás acordado. Tu. Tu não compreendes. FAUSTO Ela não podia atravessar este deserto. Caiu antes de cair. Uma coisa deste género. Até frente ao espelho, reparei que baixava os olhos. Estava grávida, a Mariquita. GINO A autópsia omitia esse pormenor. A autópsia não mencionava nenhum feto. FAUSTO Ela disse-me que estava grávida. Do amante, talvez. Mas que amante, porra?! GINO Ló, vamos embora. Ele precisa de estar sozinho. Tu pões toda a gente louca. GLÓRIA E se ele quiser acreditar que a Maria estava grávida? Não foste tu que falaste em amante? Quem acredita em médicos? Fogo! Os médicos mentem. Os documentos mentem. Os livros mentem. As professoras mentem. Deus não mente porque não fala. Fogo! FAUSTO Foi um acidente. Debruçou-se.Teve uma vertigem, um enjôo. Estava no terceiro mês. Era um segredo. Era um poço de segredos. A lei da vertigem é a mais forte. A lei da gravidade. A atracção dos corpos. A lei do menor esforço. A lei do corpo mais forte. Tombou. Foi empurrada. Tinha lá dentro aquele outro estorvo que puxava para baixo. GLÓRIA A Lola nunca me deu enjôos. Mulher prenha a enjoar o filho quer vomitar. GINO É excepcional, sendo rapariga. Os pilas dão sempre uma gravidez mimosa. Dizia a minha mãe que me teve a mim mais quatro irmãos. Desculpem. Foi a coisa mais séria em que consegui pensar. Um tempo. Um acidente. Um tempo. Acham mesmo que é preciso tudo fazer sentido?

Cena 3 TOT Consequências do acidente? MERK Acontecimentos em curso. TOT Pormenores significativos? MERK Intermináveis conversas. TOT Probabilidades de insucesso? MERK Nulas.


TOT E da outra vez? MERK Foi concorrência desleal. TOT E desta vez? MERK Encontravam-se num semáforo. TOT Será o meu dilúvio. Ela parou no vermelho. Ele, arrastando os pés, encharcado. Ela abria a porta do carro. Ele entra, tremendo como se estivesse nu. Caiu num silêncio teimoso. Verde. Como se estivesse nu. Ela arranca. Devagar. Não tinha pressa. Engana-se. Engana-se. Engana-se. Estacionou à beira rio. Chuva de rosas vermelhas. MERK Chuva suspensa. Um sol rastejante como urina. A Glória não olhava para ele. Malandra. Sabea toda. O tonto do Fausto cada vez mais nu. E aqueles olhos, postos no fio do horizonte, colheriam os louros e as rosas silenciosas. A outra, a ausente, mais vigilante do que as paredes habitadas, de tão ausente mais picante do que a nudez adivinhada. TOT E desta vez? MERK Desta vez: a rosa de pau feito.

Cena 4 GLÓRIA olhando sempre para a frente Já consegues trabalhar? FAUSTO Trabalhar? Sim, claro. Ia a caminho do escritório. GLÓRIA Ainda lá tens aquela telefonista que responde a cantar? FAUSTO Também reparaste? Engana-se muito nos recados, mas é fiel como um cão. GLÓRIA Grande qualidade, a fidelidade, lá isso... Mas tu nunca soubeste resistir aos encantos duma pateta alegre. Silêncio. FAUSTO E falas-me assim, com uma pedra na mão, porquê? Para eu tocar o fundo mais depressa? GLÓRIA E tu já viste bem a tua triste figura? Molhado que nem um pinto, esgazeado no meio da rua como se a raposa tivesse devorado a mãe galinha? Fogo, Fausto! Onde está aquele rapaz bonito que


escrevia coisas bonitas e tão despreocupado que era capaz de deitar o sol ao lixo só porque a chuva tem mais molho. Lembras-te? Eu borracha, completamente borracha, a pôr vírgulas no texto. E vírgula tão longe do mundo e seus sinais vírgula que era capaz de deitar o sol ao lixo vírgula só porque a chuva tem mais molho. A pontuação nunca foi o teu forte. Caem folhas de papel A4. FAUSTO Que memória! Silêncio. FAUSTO Estavas quase nos meus braços. Quase. GLÓRIA Eu não tropeço. Tenho os pés, os dois, bem assentes no chão. O chão é a minha página, trengo. Silêncio. FAUSTO Pois. Mas eu só escrevia para te seduzir. Presunção e água benta... Tantas páginas vazias, agora. Um tempo. Tenho saudades de mim. Silêncio. GLÓRIA Fogo! FAUSTO sorrindo, imitando-a FOGO! Silêncio. FAUSTO Fica comigo! GLÓRIA Fogo! E que mais faço eu aqui? Um tempo. Olha, Fausto, quando eu fui ao inferno, aquilo já tinha arrefecido...

Cena 5 GINO A Ló está louca. Não dorme, não come, fecha a Lola no quarto escuro e põe-se aos berros a dizer: ASSIM NÃO CAIS! ASSIM NÃO CAIS! SÓ CAIS POR CIMA DO MEU CADÁVER, FILHA... A Ló mete medo. Mete dó. Silêncio.


GINO Ela está muito absorvida pelo acidente da Maria. A Ló é assim uma espécie de sabonete ácido que tira o surro do soalho e nunca se gasta. É o sótão destelhado e o vinho velho da cave. Cada vez que abre a boca, evapora-se Silêncio. GINO Eu casei com uma mulher que nunca rompeu de vez com o primeiro namorado. Até agora, eu achava a tua presença... picante. Mas... é que nem tu és ex-namorado, nem eu sou ex-marido. FAUSTO Sou, sou. Sou ex ex ex ex. Ex-escritor, ex-marido, ex-ex-namorado que nunca fui. É um êxtase. Silêncio. GINO Mas tu tens de ser protegido. Eu tenho de ser protegido. A Lola tem de ser protegida. FAUSTO Não te apoquentes. Deixa. Há quem veja bem no escuro. Eu nem por isso. Mas gosto desta cegueira e deste sofrimento que faz de mim gente. Deixa. A Ló só se magoa a ela. GINO A Lolita veio mesmo a despropósito. Mas quando se fala em ter outra empregada, ou a mesma mais horas, a Ló passa-se e pergunta-me se a minha mãe, que pôs tantos chifres como fez filhos, se a minha mãe alguma vez teve mulher a dias. Mas a mamã era uma deusa, com ela tudo se resolvia por milagre. Tanto fodeu que morreu. Era a mãe e a puta numa só e eu, bem que posso dar a volta ao mundo, nunca hei-de encontrar uma gaja assim. Quando se fala em ter outra empregada, ela diz que a nossa casa não é um bar de alterne. E no dia seguinte sai da cama às cinco da manhã, põe tudo num brinco, põe a banheira a brilhar, eu nem consigo tomar banho. O nosso soalho parece um espelho, um dia a Lola ainda racha a cabeça... A empregada não faz a ponta do chavelho e está proibida de falar com a Lola. Fica sentada na cozinha o dia inteiro a fazer crochet. E ando eu a vender automóveis para lhe financiar o enxoval...! Silêncio. GINO Mas tu estás de luto. Desculpa. Isto não te diz nada. FAUSTO Era Maria como Maria era a tua mãe. De que é que morreu? De acidente? Não foi propriamente a foder como tu disseste. GINO sorrindo Ninguém sabe de quê. Morreu à mesa do café. Todos as manhãs, lá se aperaltava e ia ela inaugurar o café vazio. Bebia um em chávena fria. Naquele dia caiu-lhe mal. Ficou sentada como se nunca tivesse existido. FAUSTO Sabes, quando eu tive de ver a Maria, fechei os olhos. E agora tenho a impressão de que já não sei como ela era. Ou mesmo se era. Se eu era à beira dela quem eu sou e se sem ela à minha beira não estou a... destoar, a desafinar. Percebes? São muitas camadas a tapar essa cara que eu não vi a cada dia que passa. Fogo! Gino tem um ligeiro sobressalto. Depois dá uma palmada nas costas do amigo para disfarçar.


FAUSTO Naturalmente, há uma memória. Alegre, se queres saber. Uma pradaria vastíssima, a perder de vista, com um rebanho ao fundo, muito pequenino, como um presépio em miniatura. E tu és aquela criança que respira fundo, olha os bichos inofensivos na lonjura e sabe, sabe dum saber alegre, que se correr muito consegue ir tocar a lã, ouvir a flauta, partilhar um naco de queijo com o pastor. É uma memória tão intensa que este mundo parece... desfocado. GINO Pois. FAUSTO É. GINO Desde aquele dia? FAUSTO Mais ou menos. GINO É? FAUSTO A memória exige esquecimento. Senão... GINO Claro. FAUSTO Estás a ver a tua mãe como se fosse uma fotografia. De corpo inteiro. Ora não a viste assim. GINO Não. Um dente encavalitado no lábio superior. Como nos cavalos das bandas desenhadas. Cómico. A morte é cómica. A máscara inesperada dum cavalo. Galope petrificado. FAUSTO Nem te conheço, Gino. GINO Hum... FAUSTO Estás mal? GINO Mal? FAUSTO Diferente. Estás diferente. GINO São os automóveis. Parece que lhes vendi a alma. Ouço o meu corpo por dentro. FAUSTO Consola-me consolar-te, se queres saber. É como um feriado falar contigo. GINO Felizmente existe uma pessoa dentro de mim que não te escuta. Entras a cem, sais a duzentos. Um tempo. A morte é cómica. E o luto não dói mais do que um dente que se arranca. Um tempo. Já reparaste na velocidade a que cicatrizamos? Todas as feridas... todas as feridas em nós se arrependem de terem sangrado.


Cena 6 TOT Esse era um pensamento pequeno. MERK Cada homem pensará debaixo de sua sombra. TOT Algo de mais concreto. Então sim. Cai um pneu. MERK Eles diriam: Glória a Deus nas Alturas. TOT Palavras disparadas em todos os sentidos. Uma vírgula maior. Onde se possa escorregar. E Paz na Terra. MERK O meu senhor impacienta-se. Agita-se. Serei como um recado nunca transmitido, puro vento que se engasgou nas palavras. TOT Contagem decrescente. Muitos erros, poucas penas. Esse era um pensamento pequeno. MERK Nada ou quase nada entre as pernas. TOT Agora jogo eu. MERK Jogamos. Ao jogo dos acidentes. A regra eternamente se mudará. Nem nós o saberíamos. Galgávamos metas, metíamos o rabo entre as pernas. Obedecemos, em suma. TOT Que bela engrenagem um corpo atingido pela dor. Faltava a força para amar em segredo, para fugir nas barbas do mundo. Repetir, repetir. Um elo se há-de quebrar na correia de transmissão. E nesse instante, como eles diriam, o vazio imperou. MERK No patamar. A criança. O ruído do trinco. O saco de compras pousado. Rola uma maçã. O rabo do urso entalado nas alfaces. A mãe virou-se bruscamente. Para apanhar a maçã. Demasiado brusco, o gesto. Todo o conteúdo se despejava no lanço de escadas.

Cena 7 Um ursinho de peluche, preso pelo rabo a um anzol, pende na extremidade dum fio de pesca. Lola, uma criança dos seus cinco anos, persegue a sua mascote cujo trajecto no escadório é controlado por Tot que empunha a cana de pesca. Lola vai subindo a escada, com uma certa desenvoltura. De súbito, o peluche está suspenso acima do vazio: a criança despenha-se no abismo. O seu pequeno grito quase é abafado pelas gargalhadas de Merk.


Cena 8 GLÓRIA chorando Não tenho medo. É preciso acontecer tudo aquilo de que temos medo para deixarmos de ter medo. O medo torna inteligente. Os animais e as flores não temem a Deus. As pedras e as fontes não temem a Deus. Os únicos seres que temem a Deus podem transformar-se nos outros que não, se lhes acontecer tudo quanto temiam. Sorrindo. Há muito que a noite começou a cair. Em tempos, ela apenas roçava o chão para logo voltar a saltar até aos píncaros, como se presa por um elástico esticado, esticadíssimo. Um tempo. Em tempos a casa do corpo tremia como uma grande dama ofendida. Se cuspires na sopa da grande dama, encontras um desfecho. Um tempo. Noutras noites, sabia-se que sem uma bela colecção de tiques, o corpo não iria a lado nenhum. Sem o teu peso, nenhuma montanha se move, e sem a dose de infelicidade que se partilha, essa esmola, sem essa esmola, nem rei, nem rainha. Agora, o elevador fora de serviço parou entre dois andares. Na concha oca, soam os passos furtivos de quem desce ou sobe. Cheira a ovos cozidos, a enxofre. O diabo não sai do círculo doméstico. Parada entre dois andares, sou obrigada a mirar-me ao espelho e ver tudo mais velho à minha volta. O diabo mora a meu lado e tem mil pés, ascendentes, descendentes. Procura o caminho pelo qual escorreguei até aqui. Mas a ida não corresponde ao regresso. Nem sei se estava previsto, o regresso. Se cuspires na sopa encontras um desenlace. Lola erro. Lola volante. Lola boneca desmembrada no último degrau da escada. A ida não supunha um regresso. Imitando-se a si própria. Esta caneta tem uma volta na ponta, meu caro poeta. Só mais uma vírgula e o caracol põe os corninhos ao sol. Devagar. So-la. Lola. Ló. Olá Ló. Boa parideira, bem melhor do que se pensava, nem um gemido escapa da tua boca sem vírgulas. Um tempo. Quem diz que é preciso continuar não se enxerga. Quem diz que é preciso não precisa. Somo versões revistas e corrigidas duma obra para sempre incompleta. Portanto, resta-nos uma infinidade de fins a governar. Governar, não continuar. O rei e a rainha dormem em quartos separados e não deixarão descendência. Um tempo. Cheira a sol na cabina do elevador. Será que os novos dias vão começar mais cedo, já que as noites agonizam num estertor de palavras últimas e inaudíveis? Serão elas a paisagem que nos resta? Prefiro coisas mais severas, sustentadas por uma geometria muda, essa que não descreve o mundo como era, mas antes, quanto antes, o seu fim...Minha Lola, que ias a dizer? Que ias a dizer que não me disseste? Que havia para dizermos e não foi dito? Uma conversa sem vírgulas, de rajada como um parto. E, como um parto, sangrenta. Minha filha, minha filha, quem vai saber pôr-me na ordem, pôr-me no lugar. Esperança nula, esperança capaz de cortar o fio no instante em que o peixe morde o isco. Um tempo. Minha filha, costela de antílope. Minha filha, manteiga espalhada no miolo dum pão quente, muito branco. Minha filha, sobrancelha azul do cedro perdido de sua floresta. Minha filha, tabuleta pintada de fresco. Minha filha, colecção de poros fotografada ao romper do dia. Minha filha, falha, folha. Tão trémula no ramo donde tombou. Um tempo. Estavas proibida, Lola. Não devias ter acompanhado uma mãe cabeça no ar que só a espaços era a tua mãe. Porque as mães devem proteger as crias de si próprias. O principal perigo que uma cria enfrenta é a própria mãe. O maior perigo que uma mãe enfrenta é a sua primeira cria. Põe-te a pau, mãe. Põe-te a milhas, filha. Põe-te, sol nascente. A grande noite não suporta rivais. Um tempo. Glória percorre as escadas dos humanos, galgando velozmente os degraus. Estaca ofegante porque do céu caem seixos, provocando considerável estrépito. Dantes, conseguia ver o mundo às avessas, de pernas para o ar. Agora tudo se endireitou. Definitivamente. O peixe trepou o fio, com o anzol espetado na guelra. O peixe, mais transparente do que o fio, evapora-se. E o fio emaranhase à procura do peixe. Por um fio, diz-se. Cortar o fio... Olhando para trás, como se sentisse perseguida. Ela era má companhia. Levava-me para sítios insuportáveis. Lojas de brinquedos, sapatarias infantis, confeitarias. E o Gino atrelado. Parecia radiante com esses programas de fim de tarde e fim de


semana, como se a infância lhe fora sonegada. Prova agora o bolinho de cenoura. É melhor que o bolinho de arroz, não é Lolita? Fogo! Não lhe chames Lolita. Um tempo. Os direitos das crianças tornaram-se uma espécie de ditadura e que frisson as fraldas e os bébés animais e os animais nossos amigos e a caixinha de música para acordar, para adormecer, para cagar no pote, para aprender a tabuada dos sete. E os colares de macarrão para o dia da mãe e os cinzeiros de barro para o dia do pai. Mas o pai, esse asceta do comércio automóvel, não tem o bom gosto de ser fumador. Contava-me os litros de água e o número de cigarros durante a gravidez, não fosse a criança sair fraquinha... Fogo! Gino, que traidor me saíste! Que filho da puta, és mesmo filho da puta, nem sequer pudeste andar nas saias da puta da tua mãe. Poupem-me! E os direitos dos adultos? E o direito a crescer? E os direitos da mulher, usurpados por estes pais galinha, que têm secretárias com voz de galinha e cérebro de galinha, e se babam por qualquer franganita? Quando fodem, julgam que voltam a nascer. Quando parimos, julgam que aquela coisa suja também lhes pertence. Um tempo. És um asno, meu pobre Gino. Nem se nasce, nem se morre. Tudo acontece por acidente. Não foi um puro acidente, o nosso casamento? E tu por acidente, não foste parido num elevador? E o teu pai, que só acidentalmente o foi, não era feliz como um cego e cego como a justiça? Sempre que te aproximavas dos biberões, as minhas mamas secas diziam: "Vai vender automóveis, Gino!" Um tempo. Eu sabia mais de filhos antes de os ter. Sabia mais do casamento antes de casar. Que coisa horrível, a experiência. O mundo, caído em descrédito, ainda se nos ri na cara. Se lhe passarmos a mão pelo pêlo, aninha-se aos nossos pés e a serenidade é uma terra prometida sem muros nem ombros onde chorar. Crescer é negar a experiência. Toda a sede se resolve num verdadeiro copo de água porque a água mata a sede. Fogo! Um tempo. O que é que Deus Pai fez ao Filho? Matou-o! O que é que Deus fez à Maria? Matou-a, não fosse ela engravidar do Espírito Santo... O que é que aconteceu à Lola? Foi morta, por acidente, pelo Deus Acidente que nos governa, obrigado contra a sua bondade a assumir o massacre que nos fora confiado. MATEMOS OS NOSSOS FILHOS. Ex-ter-mi-na-ção sis-te-má-ti-ca. Da espécie. Somos incompatíveis, está mais que provado. Cena 9 GINO voz trémula Malditos sejam os sonhos dos casais! Malditos sejam os sonhos, todos os sonhos que viram tortura ininterrupta. Tortura do sono, pois são eles que nos impedem de gozar do sono profundo do leão e do lagarto. À custa de vender sonhos de chapa, também eu soltei a vida aos cães. Desvairadamente. Toda a gente sabe que a voragem dos sonhos tem a ver com velocidade. Atravessas paredes de casas distantes, saltas da infância mais remota para o futuro nunca vivido. É uma doença. A doença do nosso mundo é a doença dos sonhos. Nesta sociedade da promessa, o sonho é o volante, os pedais, a embraiagem e até a própria estrada. Ninguém pára nos semáforos. Ninguém respeita prioridades. A polícia dos sonhos obriga ao excesso de velocidade. Se deixas de sonhar, és um homem morto. Vais ao volante, mas é a estrada que te conduz. Não penses que Deus vai ao volante. A criação escapou-lhe na idade da pedra. E a nossa Lolita ia no lugar do morto. Com a exactidão dum meteoro que se desintegra antes de tocar a terra, A Lolita não deixou marcas. Se não fosse o quarto, as roupas, os brinquedos, as bolachas na despensa, a Lolita nunca teria existido. Um tempo. Entre duas princesas, um homem tem de escolher. Mas eu não podia. Hesitava. Porque cada uma dilatava a minha paixão pela outra. Amar é uma profissão. De alto risco. Também tem a ver com velocidade. Com bons reflexos e sentido da oportunidade. Ora, não há homem mais lento do que eu. Estou sempre a ser ultrapassado. Um tempo. Subitamente cansado, passa a mão pela testa, como para enxugar invisíveis gotas de suor. Dantes, vender automóveis era um ofício de alto coturno. Os stands pareciam salas de estar de luxo. Sofás de couro, tapetes de lã, plantas tropicais. O último dos vendedores, o mais rasca da família, ainda usava fato de bom corte e gravata italiana. Salamaleques e palavras caras. Vénias e apertos de mão.


Confidências. Quanto mais tempo se gastava com um cliente, mais ele ficava com a impressão de fazer um negócio seguro. A lentidão reforçava laços de confiança e o cliente sentia-se preso ao seu vendedor. Agora, a vida está mas é para os tipos que vestem com negligência, contam anedotas alto e dizem uns piropos às mulheres dos fregueses. A dos air-bags é quase protocolar. Um sujeito entra com um cartão gold e sai com um desses veículos em forma de supositório, todos diferentes-todos iguais. E o vendedor dá um salto ao ginásio para fazer musculatura entre dois prospectos. Um tempo. Ofereci uma colecção de miniaturas à minha Lolita. O Volkswagen era o cão. O Citröen era o sapo. O Volvo era o búfalo e o Mercedes a coruja. Todos tinham identidade noutros tempos. Bons tempos. A minha Lolita tinha os bichinhos misturados com os carrinhos... A vaquinha podia dar de mamar ao Fiat que ainda era pequenino e o Lotus branco andava a pastar com os carneiros. O mundo dela era uma grande quinta onde se fazia criação de tudo, mesmo de carros. Foi preciso a mãe ensinar-lhe a diferença entre as coisas vivas e as coisas mortas para este feitiço, o feitiço que a protegia, se romper. Porque a minha mulher só acredita em Deus, não acredita em mais nada. Eu não lhe pedia que acreditasse em mim, já que os cromados, supostamente, não têm nada de poético. Mas que acreditasse ao menos no dinheiro que eu ganho honestamente, lentamente. Hoje em dia os dois são sinónimos. A Glória atordoa-me com aquele speed todo, mais o stress e a ideia de que o atrito dá muuuita pica. Fogo! Um tempo. Acho que tinha ciúmes da Lolita quando reparava que ela crescia a olhos vistos, graças ao atrito ou graças a Deus, crescia tão diferente do previsto, com noites de anjo e apetite de ogre. Tinha ciúmes, isso é dos livros. O que não vem escrito em lado nenhum, a não ser talvez nos contos de fadas, é como uma mulher se transforma num monstro. Um monstro de liberdade, diria ela. Uma verdadeira pata choca, digo eu, com febres, ânsias inexplicáveis. Uma mulher quente, igual às dos calendários de garagem, uma porta escancarada por onde entrariam legiões de soldados extenuados, sem perdão nem licença. A isso não se chama dar à luz... Um tempo. Minha Ló, que fazes tu que nunca? Que nunca fazes tu, minha Ló? O nosso nó não era cego afinal? Chora baixinho, convulsivamente. Assoa o nariz com um imenso lenço branco. Eu amo uma mulher que é todos os dias diferente. Ela muda à velocidade do flash que a ilumina e a escuridão em seu redor não pára de crescer. Amá-la é ser culpado. Faz a mala, Gino, que se faz tarde, as solas dos sapatos já não te prendem ao chão e não tarda o dia em que lhe vais dizer: obrigado por me deixares respirar do mesmo ar que nos separa. Mas permite que te diga, Ló: as coisas vivas falam das coisas mortas e não existe nenhuma fronteira verdadeira entre estar e não estar. De vontade de morrer nos alimentamos, por isso não chegaremos à morte de mãos vazias. E há muitas maneiras de chegar à morte. Principalmente vivendo.

Cena 10 FAUSTO de olhos pousados num livro aberto, como se lesse Agarrar-se aos livros! Agarrar-se aos fios! Agarrar-se às asperezas do terreno quando a vida se inclina no sentido do abismo... Ou então inclinar-se. Seguir o movimento. Longa vénia diante a coisa que ainda nos surpreende. Levanta os olhos cansados. Nada escapa à vigilância da tristeza. As tristezas juntam-se e revezam-se numa longa ronda. Não são livres de agir, mas são livres de observar. Podem transformar o mundo numa prisão de luxo, onde só em sonhos se é visitado. Baixa os olhos, como para esconder os olhos turvos. Andar, andar, querer cair. Porém o chão não se abre debaixo dos nossos pés, o céu segura-nos pela nuca. Caminhar sobre a brasa das pupilas com os dentes a estalar dentro da boca. Com a suprema altivez duma marioneta. Sentir que nada nos pertence mas tomar conta mesmo assim... Um tempo. Eu gostava de ter sangue frio e cabeça quente, para beijar a mulher que beijei em sonhos e, até que enfim, acordar. Mais bela do que dantes, mais próxima, mais gritante... agora que parece não ser de ninguém é de mim que


para sempre ela se afasta. Claro que não é novidade. Eu soube, quase desde o início que, quanto mais perto ela se deixava estar, mais aquela voz era longínqua, como que vinda da parte incerta duma infância, porventura nunca vivida, talvez vivida por outro. A palavra amor queimava-me nos lábios, impossível de desperdiçar, guardada para o que desse e viesse, para uma escrita fora do compasso. Porque a Ló, tão vertical, era o eixo em torno do qual eu podia girar, fazendo círculos perfeitos, procurando escandalosas tangentes. Estou a vê-la, de costas nuas evidentemente, de saída, olhando de relance a extensão dos estragos, um casaco ou um saco tombando-lhe dos ombros perfeitos, um eclipse de sorriso e já não está cá quem olhou. Agarrar-se às linhas de fuga e ser centrífugo, periférico. Em plena fuga, encontrar a Maria. Namorar a Maria, foder com a Maria. Levá-la ao altar, esquecendo todos os meus princípios. A Maria foi o milagre do cisco que cega o viajante. Deitou a cabeça de fora para apanhar ar e ei-lo tocado pela poeira duma estrela. Entre duas estações. Entre duas mortes. O senhor desculpe, ia a dormir tão bem mas vai ter de abandonar a carruagem, já chegámos ao término. Só os santos dormem assim. Sorte a sua. Um tempo. E eu não a queria ver, naquela noite, não os queria ver. Precisava de ficar sozinho. De recuar no tempo estando de novo sozinho. De não ser reconhecido pelos seres. De não ser, por umas horas que fosse. Como se a Maria ainda não existisse ou nunca tivesse existido. Como se em vez do pássaro tivesse caído o ninho estéril. Como se as coisas tivessem voltado ao sítio e eu pudesse reencontrar a minha órbita em redor dum planeta inacessível. Um tempo. Mas eles vieram, consolaram, desconsolaram, precisaram de consolo. A Ló voltou a entrar na minha história pela porta do cavalo, desenfreada. A Ló que se oferece e se retira é o meu castigo. Animal de raça que regressa, lavado no suor das palavras, porque perdeu quem o montava. Até este meu único brinquedo precisava de ganhar vida, triste e inutilmente... Um tempo. O nosso passado tresanda. O nosso quase adultério faria rir uma madre superiora, como diz o Gino. Perdemos uma parte, tropeçámos deste lado e o desenlace tinha de ser precipitado. Tudo nos foge das mãos, abrimos o livro e caíram pedaços de história. Um tempo. Com o luto posso eu bem. E quando o luto acabar? Por pudor se continua a viver. Por pudor se estima um brinquedo e por pudor se estraga o brinquedo que o vai substituir. Mas não se escolhem os brinquedos e a cada brinquedo correspondem brincadeiras que não inventámos. Mal ficamos peritos em alguma brincadeira, logo alguém abre a porta do quarto escuro porque aquela, precisamente aquela, era de mau gosto. E toda a vida não vivida resulta do abandono, obrigatório, dos brinquedos mais estimados. Um tempo. Não estamos em idade de aprender novas brincadeiras. Sobranos sizo, faltam-nos dentes. E a visão foi baixando... Um tempo. Vocês... vocês não viram nada do meu sofrimento. Do meu micro-sofrimento. Pequenas dores, dores que cabem na cova dum dente, no umbigo, no sovaco. Todo o passado fedorento nas pregas do corpo. Pequenas dores de consciência e todo o passado recém-perfumado na cova dos rins. Dores de cotovelo. Dores inconfessáveis. Vocês não viram nada do meu sofrimento. Nem era preciso... Em breve me tornarei totalmente insensível. Um tempo. Agarrar-se a isso. Com a mão livre puxar o alarme. Dizem que não treme, a mão do assassino. Soa, ensurdecedora, uma sirene. Cena 11 Tot e Merk, lá no alto, fazem bolinhas de sabão. Cada um parece apostado em fazer bolas maiores que o outro... MERK Quando o meu senhor cuspia facas e faíscas, escusado será tapar os ouvidos. TOT Eu tinha uma ideia, não duas. A primeira para matar. A segunda para matar. A primeira para matar a segunda. Um suspiro seco. O meu senhor, mais antigamente, não dormirá.


MERK Tudo rolando sobre esferas. Um sorriso amarelíssimo. Porém o mundo deles não descarrila. TOT Cadeia de acontecimentos. O mundo deles não se encadeava. A cada novo facto, novo sentido. Caminharão num sentido não confessado. O dom da confissão permite todos os desvios. MERK A palavra toda-poderosa. Quando tudo se desencadeasse, bastou abrir a boca. Contra argumentos não há factos. TOT O meu senhor deu-me a palavra. Esgotando-se o silêncio, todos os factos seriam parasitas. MERK O meu senhor cobra adiantado. Esta dificuldade era então seu lucro. No absoluto, não haveria por onde fugir. TOT Corrija-se: nada estava perdido. Fausto voltando a casa. Perfume de Maria voltou. Alfazema de hospital. Pega no telefone... MERK Do outro lado ninguém respondia. Como assim? Se julgassem ter pano para mangas e mangas de felicidade, estariam enganados. O fim desse mundo já terá começado. TOT Deitados lado a lado. Que argumentos a favor do fim? Sem medo nem vergonha. Que factos? Sem pressentimento nem ressentimento. MERK Ora, ora... Mortais. Quem não os conhecer que os escute. A tempestade que nos esperava, essa é que... TOT Não podiam escapar. Estariam mortos. Naquele longo adeus desejam perder-se de vista. Fausto voltando a casa. Perfume de Maria dá-lhe náuseas. Agarra-se ao telefone mas não marcava o número. Maria ainda não morreu. Glória ainda não estará viva. MERK Mas Maria morre, morre, morre. Lola morria, morreria. A tempestade que nos esperava... Não houvera tristeza. Não houvesse alegria. Não haverá parança. Apenas relatórios. Em branco. TOT Não. A negro. Súbito black-out.

Cena 12 A luz, rósea, vai subindo. Muito lentamente, de maneira que, a princípio, mal se adivinham as coisas. Lá fora (fora de quê?), o fim de mundo parece ter começado. A conversa será pontuada por apocalípticos acontecimentos sonoros. GINO Não te preocupes. Este não é o meu corpo.


GLÓRIA Pois... Mas toca. Toca na ponta dos meus cabelos. GINO tocando a ponta dos cabelos São... são quase crespos. Picam um bocadinho como barba de adolescente. GLÓRIA Sempre quis ser homem. Um homem eternamente jovem. GINO Eternamente agora. Falta pouco para sermos como somos. GLÓRIA Mas o que falta dói, não é Gino? GINO Já não sei ao certo onde me dói. E ainda menos o que me falta. Um tempo breve. Nada. Não me dói nada. Não me falta nada. GLÓRIA Uma mulher. Não te falta uma mulher? GINO Não. Basta-me ter-te como homem. Para mudar o sentido das conversas. Para não adormecer antes de cair de sono. GLÓRIA pensativa No melhor pano cai a nódoa. Mas não em qualquer pano. GINO Antes da minha mãe morrer, pensava muitas vezes na longa conversa, uma conversa franca e sublime, que precisava de ter com ela. Depois ela morreu, subitamente, e ficou tudo por dizer. Ficou-me tudo. Mais pesada do que uma herança, é esta conversa não tida que guardei para ti, Ló. GLÓRIA Ouvir é como deixar-se ir... GINO Não. A minha mãe, nos últimos tempos, desleixava-se muito. Menos a depilação. Horas ao espelho a arranjar as sobrancelhas. Limpar o sebo aos pêlos foi a sua derradeira vitória. Não queria morrer desprevenida. Um tempo. Não. Falar é festejar. GLÓRIA febril O meu grande amor afogou-se em ti. Atirou-se de cabeça e tocou o fundo. Tentou desesperadamente voltar à tona, com o motor do coração a trabalhar em excesso. O meu grande amor ganhava peso e nenhum espaço lhe era sólido e suficiente. É este náufrago inchado, putrefacto, que coloco nas tuas mão. Um tempo. Não digas para isto e para aquilo. Um calafrio percorre a coisa saída da água, renascida ou pronta a ser autopsiada. Que disparate a ideia de termos um lugar no mundo! Para como o quê? Para quando onde? Um tempo breve. Por enquanto. Por agora. Por seres tu. GINO Mas aquele gosto, aquele fósforo que queima a ponta dos dedos? A flor, pronta a murchar, nem por isso larga as pétalas... Um tempo. Dizem que se vive de lembranças. Não nos podemos dar a esse luxo. Viveremos então do que não vivemos. GLÓRIA Quem diz que viveremos? Basta-nos manter o olhar pousado no que foge ao nosso entendimento. Basta tu quereres o pesadelo de me ter por perto a respirar mais alto do que é permitido. Um tempo. Eu sei de ti todos os atrasos sem motivo. E sei as chegadas a despropósito. Com uma filha julgava baralhar-te as pistas. Que faro, o teu, que faro...! Mais depressa percebeste que virias a perdê-la do que eu demorava a mudar uma fralda. Meia dúzia de litros de sangue não garantem nada. Uma


parecença no feitio da boca não impede que as vísceras possam mentir. Um tempo. De velhos amantes precisamos de aprender os modos. Quem ama consegue ser mais forte do que o amor. GINO Não te preocupes. Este não é o meu amor. O amor misturou-se com os seus próprios destroços porque não passava duma guerra. Uma guerra travada contra o desejo de estar só. Esse amor-conquista, esse amor-batalha contempla agora os cadáveres a seu lado, pois da imagem da morte longamente se despede. Se digo adeus não preciso de espectadores, não preciso de ti na plateia. Agora estás entre mim e mim como a árvore que separa a estrada da paisagem, a árvore cuja raiz absolutamente me é invisível e estranha. E dela apenas conheço o lugar e a sombra e a maneira que os ramos escolhem de rasgar o tronco em direcção à luz. GLÓRIA Voltavas ao princípio, se fosse caso disso? GINO Começava pelo fim, se fosse caso disso. GLÓRIA Toca na ponta dos meus cabelos. GINO tocando a ponta dos cabelos Sentes? Sentes os meus dedos? GLÓRIA dilacerada por um sorriso Não. Este não é o meu corpo. Uma rajada musical percorre a cena banhada de luz cor de rosa. Black out.

Cena 13 Gino e Glória estão no mesmo sítio. A luz volta bruscamente, plúmbea a ponto de os vermos a preto e branco. GINO Não te preocupes. Este não é o meu corpo. GLÓRIA Falas pelos cotovelos, Gino. Mas calas quase tudo. GINO Não. Preto no branco. Pano de fundo. Pupila. GLÓRIA A imagem forma-se atrás do olho. Sentes que a imagem se forma atrás do olho? GINO Pica como se estivesse a cortar cebolas. É lá que moram as lágrimas. Tudo se esbate. Até eu sou menos nítido no espelho do retrovisor. GLÓRIA Eu não. Eu sim. Sinto-me espelhada por dentro. Vigiada. GINO Rápidos de mais, os teus gestos, para serem detectados. Um tempo. Se a ideia de viagem substituísse todas as outras ideias, se deslocar-se no espaço fosse um modo de vida e não um modo de fuga, nunca nos teríamos cruzado, acho eu.


GLÓRIA Sempre desconfiaste da minha avidez. Qualquer coisa que eu devoro me devora. Amor. Gino fecha demoradamente os olhos. Glória sorri como se tivesse descoberto algo de evidente. GLÓRIA Fala-me. Continua a falar-me. GINO Não posso ficar só com a última imagem. Não quero mais ter vontade de voltar atrás. Percebes? GLÓRIA A última imagem... GINO Com o rabo entre as pernas... GLÓRIA Com a faca entre os dentes... GINO Uma flor. GLÓRIA Com um fio de sangue entre as pernas... GINO Seco. GLÓRIA Um fio. GINO Um regato. GLÓRIA Um esgoto. GINO Uma sensação de frio no fundo das costas. GLÓRIA No pino do Verão. GINO Na cozinha onde já ninguém cozinha. GLÓRIA À mesa com os mortos. GINO Debaixo da mesa. GLÓRIA Orgia de ruídos. GINO A última imagem. Um faqueiro completo, polido. GLÓRIA O sol para sempre escondido. GINO O sorriso como um colar de velhas pérolas. GLÓRIA Um pneu furado numa noite de luar. GINO Uma floresta da antenas, uma cama desfeita.


GLÓRIA A mesa posta. Ninguém vem. GINO Os restos duma refeição. Ninguém lava. GLÓRIA Uma corrente de ar. Duas correntes de ar. GINO Um choro, de mansinho, atrás da porta. GLÓRIA Um beijo nos pés de quem caminha. De quem já não caminha. GINO Uma refeição intacta. Ninguém come. GLÓRIA Um corpo. Ninguém come. GINO Não. Este não é o meu corpo. Uma explosão mais forte incendeia a cena. Chovem farrapos vermelhos. FIM


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