Os quatro mosqueteiros

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OS QUATRO MOSQUETEIROS Ao contrário do que acontecera com os malfadados FADOS, a série OS QUATRO ELEMENTOS, produzida pela RTP e supostamente realizada para o pequeno ecrã, chegou ao circuito de distribuição cinematográfica com uma aura peculiar: quatro cineastas portugueses confirmados aproveitam o financiamento da televisão para realizar quatro filmes de média metragem em 35mm, a exibir prioritariamente em salas de cinema que não estreados nas sazonais grelhas de programação da TV. Estreados pois com pompa e circunstância nos mais conceituados festivais internacionais de cinema, O ÚLTIMO MERGULHO (ÁGUA) de João César Monteiro, NO DIA DOS MEUS ANOS (AR), de João Botelho, DAS TRIPAS CORAÇÃO (FOGO), de Joaquim Pinto e O FIM DO MUNDO (TERRA) de João Mário Grilo conheceram sorte mais grata do que a maioria das obras recentemente produzidas em Portugal, quer ao nível da cobertura mediática e da recensão crítica, quer ao nível do acerto dos «timings» e da gestão das expectativas que sempre se geram em torno dos novos produtos lançados no mercado. Com efeito, graças à política leonina do produtor Paulo Branco, cuja análise não cabe no âmbito deste artigo, os citados filmes foram finalizados e logo dados a ver nas melhores condições de visionamento presentemente disponíveis em Portugal, facto que, por preservar a actualidade das mensagens, interferiu de forma positiva no clima de recepção. Tudo se passou como se no preocupante caos da produção e da distribuição nacionais, um homem tivesse encontrado o ovo de Colombo: filmes baratos, mas assinados por autores reconhecidos, atempadamente exibidos no parque de salas que a Atalanta tem vindo a adquirir a um ritmo surpreendente. Dado o contexto favorável acima descrito, será legítimo perguntar porque razão os quatro filmes ficaram muito aquém daquilo que, com ou sem milagres, seria de esperar dos realizadores em causa, exceptuando o caso de Joaquim Pinto, o menos consagrado dos quatro, que com o tema do fogo nos ofereceu os mais imaginosos momentos de cinema da sua obra? É curioso notar que, apesar duma opção aparentemente clara — a rejeição liminar do telefilme — o trabalho dos quatro cineastas surge marcado pelo carácter de encomenda e pela circunstância de se enquadrarem no programa de produções externas da RTP. São disto indícios uma certa postura académica de sujeição ao tema e a maneira como a gramática da montagem e do quadro televisivo se insinuam nas soluções formais. João César Monteiro, em jeito de provocação, chama à sua obra esboço, apregoando assim a liberdade do criador, que deve poder apresentar a sua criação em estado de estudo e/ou inacabamento. Ora, se bem que a imperfeição, no sentido estrito não, houvera de ser tida como um sintoma de estilo no máximo será um tique), o menos espontâneo dos cineastas portugueses joga perfeitamente com todos os mal-entendidos, apagando com um janotismo intelectual por vezes antipático, as pistas de decifragem do seu esboço. A tonalidade rimbaldiana da cena final no mar de girassóis («Elle est retrouvée/Quoi? L'éternité/C'est la mer allée/avec le soleil»), por exemplo, não possui de apoio na ficção que permita enriquecer o entendimento que cada qual consegue dela ter, a não ser a própria ligação a um elemento «exterior»: a obra de Rimbaud. Num debate televisivo de má memória em que João César Monteiro estava presente, Maria Velho da Costa acusava veementemente um jovem empresário da nossa praça de não se preocupar com a orelha de Van Gogh (?). A cumplicidade entre o cineasta e a escritora era manifesta e evidenciava uma espécie de ostentação do capital cultural contra o outro, o opressor. Em O ÚLTIMO MERGULHO estamos perante uma atitude de opressão de sinal oposto: essa que consiste em embrulhar uma ideia informe (porventura genial) numa rede estéril de referências. É significativo que a «private joke» de César Monteiro se destine aos milhões de espectadores da telenovela que não andaram com ele na costura. E é pena que a real vivacidade do cineasta não tenha reencontrado a veia de crueza e as junqueiradas das RECORDAÇÕES DA CASA AMARELA, habitada por um humor tão negro que no escuro todas as entrelinhas se respondiam. As putas de O ÚLTIMO MERGULHO nunca deixam de parecer actrizes que uma equipa de falsa reportagem apanhasse em falso flagrante convívio com o povo na noite de Santo António e mesmo o «inachèvement» soa um pouco ao Rivette, não o dos bons velhos tempos, mas um Rivette que tivesse renunciado, como aliás renunciou, à melancolia do labirinto,


para arrombar as portas escancaradas daquilo a que (por consenso?) chamamos «arte». Ficamos à espera de que João César Monteiro se zangue e faça outros filmes, mas não resistimos a uma última observação: o verbo só é agressivo quando encena aquilo que encerra; assim, as cenas em que a linguagem «grosseira» campeia carecem de exploração dramática e surtem ainda a pura opacidade dos panos de fundo. NO DIA DOS MEUS ANOS de João Botelho padece de insuficiências bem diversas. Se Monteiro cultiva uma imagem de «enfant terrible», Botelho parece apostado em construir um carisma de «enfant sage», inventando ou reinventando uma estética populista do trabalho-família (se a isto juntarmos a pátria, Deus nos acuda...) que roça o conservadorismo mais imbecil. A criança, a mãe, o avô, o próprio pai encarcerado mas roído pelo arrependimento, lembram-me as estampas dos meus tempos difíceis de instrução primária em que entre dois padres-nossos e uns versinhos de António Correia de Oliveira nos ensinavam o pesadelo da cidadania muda e queda. O pudor das emoções mais fortes exprime-se através de silêncios resignados e João Botelho eleva-os à qualidade de pequenas estrelas tutelares que «iluminam» os duros caminhos da vida. É o elogio implícito da resignação que pessoalmente me crispa nos filmes de Botelho, tanto mais que tem como corolário as certezas de salvação e redenção. As dores «bem portuguesas» de Botelho são «saudáveis» sinais de cicatrização; não rasgam, remedeiam. Acresce que NO DIA DOS MEUS ANOS revela uma estrutura narrativa sustentada por concepções tão simplistas que apetece acusar o cineasta de andar a trabalhar para a ressurreição de uma sensibilidade finissecular ou, pior, salazarenta. A reconciliação dos seres passa por um paradoxal abafamento dos conflitos (o tema do episódio é o ar) e por uma fruição casta do quadro estreito (figura da casa e do pequeno mundo à sua volta) atribuído a cada personagem. Solidão e contemplação são decerto assuntos caros ao autor mas não chegam a romper a malha de banalidades psicológicas e preciosismos estéticos dos quais a pontuação com os planos do céu e dos aviões é apenas um pálido exemplo. NO DIA DOS MEUS ANOS prova talvez que o cinema nem sempre ganha em se descarnar; se Deus é motivo da obra, convém não esquecer que Ele é verbo feito carne. Com DAS TRIPAS CORAÇÃO Joaquim Pinto encontrou porventura o toque de humor que faltava aos seus filmes iniciático-intimistas, conquanto não tenha conseguido dominar com igual felicidade os aspectos que se prendem com a economia narrativa. Citando Adélia Prado — «... cinema é como dizia o avô: / cinema é gente passando. / Viu uma vez viu todas» — julgo resumir o que o cinema justamente não deveria ser porque há muito que o media evoluiu de imagem-movimento para imagem-tempo. Num filme consagrado ao indizível, uma reflexão sobre a função do não-dito/ /nãomostrado, sobre o papel da elipse, teria sido bem vinda. Em contrapartida, o parti-pris quase «naïf» de acumular sinais — representações daquilo que não é representável — o lume do desejo que só pode ser acalmado pelo beijo — salva o trabalho de Joaquim Pinto de ser apenas mais um filme tímido e falhado sobre a necessidade da transgressão. O aproveitamento no primeiro grau do instrumentário simbólico é talvez um passo decisivo para a equação, até agora mal resolvida na obra de Joaquim Pinto, que simplifica as coisas da vida e as coisas do cinema. Em todo o caso, a adopção duma estética «pompier» para o tratamento duma fábula cujos protagonistas são precisamente «bombeiros» e cujo enredo gira em torno de «apagar fogos» instaura uma distância humorística (no bom sentido) entre o autor e o seu duplo desdobrado nos gémeos homem e mulher. O voluntarismo que Joaquim Pinto tem demonstrado como produtor não deixará de se reflectir na maturação do seu cinema enquanto meio de apropriação do real e do material. Ao tomar como ponto de partida de construção do argumento de O FIM DO MUNDO um «faitdivers» verídico, João Mário Grilo pretendia certamente que a manifesta incompetência das instituições humanas em julgar, condenar e absolver os crimes (lesa integridade física ou lesa integridade moral) dos homens trouxesse água farta ao seu moinho docemente apocalíptico. Assim, a justiça dos homens parece tanto mais injusta quanto obviamente só é capaz de punir o que sabe e não entende, deixando sem punição as patifarias que a máquina social entende como circulação da riqueza (e aqui o «cultural» — o dispor antecipadamente de uma herança — opõe -se a um «natural» de ordem telúrica que fica por definir). Ou seja: «Justiça Divina Precisa-se. É URGENTE O JUÍZO FINAL». Feliz ou infelizmente todo este edifício narrativo cai literalmente por terra


graças a duas zonas de absoluta inconsistência. Em primeiro lugar, o retrato caricato da justiça esboçado na cena do tribunal, faz com que mesmo o espectador mais desatento duvide, não dos resultados da avaliação do crime pelo juiz (esses sim confirmados pela veracidade do «fait-divers»), mas dos termos e dos parâmetros dessa avaliação expressos dramaticamente na cena. Em segundo lugar, a história paralela da relação entre o sobrinho (enamorado, néscio) e sua mulher (calculista, frívola) não tem ponta por onde se lhe pegue: aquele mecânico de automóveis não dorme na cama daquela cabeleireira; aquela candura toda ela rural e desterrada não se envolveu cegamente com a voragem daquela víbora venal e urbana. Ou seja: a estilização das personagens deveria ter sido tanto mais criteriosa quanto o filme pretende falar destes tempos e do fim dos tempos. Tivesse o realizador dedicado atenção à temática da terra enquanto território, bem servido que foi pela belíssima interpretação de José Viana, não seríamos nós confrontados com esta confrangedora prova de falta de sensibilidade para o tratamento do político, do social e do moral. Da experiência dos QUATRO ELEMENTOS fica apesar de tudo a memória quatro médiasmetragens, duração improvável nestes tempos de fruta calibrada. Que os filmes durem o tempo necessário e suficiente. R. G.


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