O Desejado ou As Montanhas da Lua Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda Brilha, porque alta vive. Ricardo Reis, in "Odes" Paulo Rocha faz parte de uma geração de cineastas talentosos que estudaram no estrangeiro e de lá importaram novidades. Os rompimentos do Neo-realismo e os desafios da Nova Vaga para falar apenas dos mais óbvios. Regressado a Portugal do IDHEC e da sua existência parisiense, Paulo Rocha trazia na bagagem sonhos do tamanho do seu mundo e de outros mundos. Um vivo interesse pelas gentes do trabalho e pela cultura popular (que não o folclore à António Ferro) e uma paixão pelo Oriente extremo, encarnada na pessoa da mulher que conheceu no desterro e amou pela vida fora – por exemplo. A algumas das convicções cimentadas nesses tempos de juventude, Paulo Rocha foi ficando indefectivelmente fiel. Mormente: a ideia de que poderia existir um cinema outro que não o lisboeta, produzido na «capital do império», uma arte mais carnal e menos design; a ideia de que descentralizar o país será um processo tão longo e cheio de entraves como foi o descolonizar (como explica a personagem do velho padrinho, já um pouco para além da morte, n’As MONTANHAS DA LUA). Depois de realizar dois pasmosos primeiros filmes sob a asa do produtor António Cunha Telles – VERDES ANOS e MUDAR DE VIDA – Paulo Rocha vai tornar-se, a partir da longa aventura d’A ILHA DOS AMORES, o seu próprio produtor. É costume dizer-se que qualquer realizador que se preze deve arruinar o sujeito que o produz. Ora, no presente caso, esse requisito não deixou de ser plenamente preenchido. Intrépido e desmedido, Paulo Rocha nunca recuou perante o imperativo de se arruinar a si mesmo. O DESEJADO ou AS MONTANHAS DA LUA não foi excepção, razão pela qual só uma década mais tarde o cineasta poderá voltar a realizar uma longa-metragem de ficção (O RIO DO OURO), embora entre ambos os filmes tenha havido um sem número de projectos sonhados e até alguns, de menor envergadura, realizados (além do complexo argumento sobre o Naufrágio de Sepúlveda, dos primeiros esboços da ficção «Olhos vermelhos» e da escrita do filme em episódios «A Balada do Rio do Ouro», MÁSCARA DE AÇO CONTRA ABISMO AZUL, 1989, acerca de Amadeo de Souza Cardoso; PORTUGARU SAN, 1993, uma revisitação da figura de Wenceslau de Moraes através de uma encenação teatral de Silvina Pereira; OLIVEIRA L’ARCHITECTE, 1993 e SHOHEI IMAMURA, LE LIBRE PENSEUR, 1995, dois documentários sobre autores de seu particular agrado no âmbito da série TV «Cinéastes de Notre Temps»). Com O DESEJADO ou AS MONTANHAS DA LUA, Paulo Rocha realiza o velho desejo de levar ao ecrã uma obra-prima absoluta (inigualável segundo o nobelizado Yasunari Kawabata) intitutada «Genji Monogatari» (O conto de Genji). «Desde os meus tempos do IDHEC que queria filmar o Romance de Genji, o maior dos clássicos japoneses escrito há mil anos. É o meu projecto mais antigo», afirma Paulo Rocha em entrevista publicada nas folhas da Cinemateca Portuguesa a 2/19/1997. Abra-se aqui um parêntese para recordar que Paulo Rocha revelou, desde o seu primeiro filme, uma profunda apetência pela colaboração com outros grandes criadores, em geral (Carlos Paredes, Jorge Peixinho, Jorge Silva Melo) com escritores, em particular (Nuno Bragança, António Reis, Luíza Neto Jorge...) e, mais tarde, pela transposição de obras literárias de referência (a de Camões e a Wenceslau de Moraes, para alem do Genji).
«Genji Monogatari» é um livro de literatura clássica japonesa cuja autoria é atribuída à fidalga Murasaki Shibiku. Escrito no início do século XI, durante o Período Heian da história do Japão, é considerado o primeiro romance literário do mundo. Diz-se que a complexidade do estilo do «Genji Monogatari» torna-o inacessível a um japonês medianamente culto. Um pergaminho do século XII, o «Genji Monogatari Emaki», contém cenas ilustradas de Genji juntamente com textos sōgana manuscritos. Este pergaminho é o mais antigo exemplo existente de um "rolo de imagem" japonês. Acredita-se que a colecção original era composta de 10 a 20 rolos e abrangia os 54 capítulos. Durante o período de produção do seu derradeiro filme (SE EU FOSSE LADRÃO), já bastante afectado pelos sucessivos embates com a doença, Paulo Rocha foi presenteado com um fac-símile do Genji, trazido, salvo erro, do Reino Unido pelo seu amigo Alberto Seixas Santos. O entusiasmo da redescoberta das ilustrações foi tão avassalador que o cineasta pretendia (ambição hélas! não concretizada) envolver uma boa parte das cenas evocadoras da vida de seu pai com nuvens douradas, omnipresentes nos exteriores como nos interiores, à maneira japonesa. No cinema de Paulo Rocha, a necessidade de fabricar metáforas e alegorias para retratar Portugal é uma constante. Recordem-se, avulso, imagens metafóricas do país como: ‒ a deambulação dos amantes de origem rural junto às colossais figuras de Almada Negreiros que enfeitam o templo do saber ao qual nenhum deles tem acesso (em OS VERDES ANOS); - Isabel Ruth roubando a caixa de esmolas (em MUDAR DE VIDA), sequência que inspirou um famoso hit dos GNR intitulado «Vídeo Maria»; ‒ Wenceslau de Moraes, vestindo-se para abandonar a amante (e preparando-se para abandonar a pátria) ao som do hino nacional e pervertendo a letra d’A Portuguesa com feroz e ferido sarcasmo (em A ILHA DOS AMORES) Etc. Porém, no DESEJADO esse imperativo de criar uma imagem-balanço do país adquire contundente centralidade (como mais tarde será o caso em A RAIZ DO CORAÇÃO, um filme em que Paulo Rocha se propõe reduzir Portugal à sua capital, pintando Lisboa como uma república italiana decadente, corrupta e fechada sobre si mesma). E a visão que o autor ousou exprimir da realidade portuguesa «recém-convalescente» de uma revolução e «debutante» nas lides da democracia burguesa, à época da estreia do filme, não agradou. Nem podia agradar. Em 1987, estava-se no início da era cavaquista. Os donos do capital, inclusive do capital simbólico em Portugal (nas hostes das quais os críticos, talentosos ou medíocres, se incluem), aqueles que se apoderaram do corpo do país arrancando-o às cinzas da revolução (e não apenas os patrões maus da fita) dificilmente podiam suportar o confronto com o espelho que AS MONTANHAS DA LUA inopinadamente lhes estendia. Uma classe dominante oriunda do Antigo Regime, que se dedica à política disputando entre si protagonismos, cargos e companheiros de cama, governa atabalhoadamente o país (Manuela de Freitas interpreta maravilhosamente essa barafunda de bastidor) e o filme de Rocha não se coíbe de mostrar, sem maniqueísmos, a que ponto Portugal se encontra entregue à bicharada. Tal como no romance de que se inspira, O DESEJADO conta a história de um sedutor (uma espécie de Don Juan malgré lui) que magnetiza e conquista tudo e todas (da mais humilde serviçal à sua... alucinada esposa em vésperas de novo casamento, passando pela sua temperamental irmã adoptiva). O padrinho do protagonista, João de seu nome – os padrinhos e as madrinhas são mais que as mães na obra de Paulo Rocha – é uma espécie de Salazar em versão esclarecida, como o tirano estéril, entrega aos cuidados de uma governanta, condenado a longa agonia. Em todo o caso, do ponto de vista de João, é ainda mais digno de respeito, de afecto e de interesse genuíno do que um pai, digamos, biológico. Ora, neste que é provavelmente o filme mais renoiriano de Paulo Rocha, tudo gira em torno de João, o Genji / Don Juan. No entanto, ao contrário do inconstante Senhor Tenório criado por Tirso de Molina, João, jovem político prometido a um futuro radioso na cena do poder, não é apenas aquele que desperta paixões mas também aquele que sofre os correlativos afectos na pele. Se é verdade que o «herdeiro» (adoptivo) de uma linhagem que se adivinha ilustre fode com todo o rabo de saia que se lhe apresenta, seja senhora ou servente, governanta ou governada, não é menos óbvio que a vida se lhe complica muito, apesar dos esforços do seu Sganarelle – o fiel chauffeur, magistralmente interpretado por Jacques Bonnaffé – a cada corpo ou quase. Pois João
ama sinceramente o falso pai, a ex-mulher, a falsa irmão, o filho improvável e com todos estes seres amados vão acontecer dolorosas traições. Nada mais forte e vital do que estas falsas relações familiares, de tal modo que, ao cabo de abundantes peripécias (sendo a última das quais a morte, no rio, de dois jovens amantes suicidários), João assume, com igual dose de ternura e dignidade, um filho que não é seu ou, pelo menos, talvez não seja. Uma identidade instável / fluida / incerta de Portugal é assim radicalmente celebrada, contra as convicções da linhagem e do sangue azul. Menino de ouro, Paulo Rocha descendia de um torna-viagem, também ele brilhante, atraente e sedutor, pelo lado paterno, o que talvez explique, parcialmente, o imenso fascínio que o cineasta sentia pelos homens possuidores da beleza e da força anímica de que ele mesmo se julgava desprovido. No entanto, nem tudo gravita à volta das lusitanas mágoas e inquietações n’O DESEJADO. Nos antípodas do chauvinismo, Paulo Rocha interessava-se pela violência do presente além fronteiras. Donde, porventura, a escolha de uma personagem, bela, passional e inconsequente, envolvida com as Brigadas Vermelhas 1 e retida em Itália pela polícia em pleno processo de caça às bruxas. Tratase de uma actriz que, segundo o autor, era capaz de encarnar a ideia de que «o cinema mais não é do que os corpos a sofrer». Veja-se a este título a cena em João tenta fazer amor com a «irmã» que, ao contrário das demais mulheres, lhe resiste. Veja-se também, para contrabalançar esta vertente negra da estética rochiana, a maravilhosa cena em que João vai roubar marmelada à despensa, propõe a uma jovem criada que prove também da dita e acaba, face a uma tímida nega, concluindo que «as mulheres não sabem o que é bom.» A Índia é também «trazida à baila» n’As MONTANHAS DA LUA, enquanto território evocador dos esplendores passados (autênticos ou míticos como as cinzas que o jovem casal lá vai resgatar) de Portugal – o plano que melhor traduz essa carga de sentido é certamente aquele em que as raízes poderosas ocupam quase todo o ecrã. Esse plano como que expõe não apenas os estratos geológicos dos afectos por onde as raízes penetram, mas também, metaforicamente, as várias camadas de sentidos e leituras virtuais do filme. Porém, tal como acontece com Sintra ou Tibães, esta Índia, nunca filmada de maneira pitoresca, faz parte de um território imaginário e reconstruído pelo realizador (na acepção em que actualmente se fala de «famílias reconstruídas»). Esta Índia faz fronteira com Portugal, do mesmo modo que a floresta sem canto de pássaros, em Sintra, é contígua do velho coro da Igreja em ruínas do Mosteiro de Tibães... Aliás, no fim de contas todos os territórios da filmografia rochiana tentam comunicar uns com os outros: a lucarna ovalada d’O DESEJADO dialoga intimamente com a da ILHA DOS AMORES à qual também a exuberante mansarda de VANITAS também tenta piscar o olho. Na hibridez assumida das referências estéticas de Paulo Rocha (a ópera, a arte sacra, a poesia popular, etc. etc. etc.), a influência japonesa, cimentada pelos anos vividos em nipónicas paragens, era certamente a que o cineasta não se cansava de reivindicar. Amiúde falava de Kabuki e de Nô, mais frequentemente ainda das qualidades insuperáveis das equipas de rodagem japonesas. Com AS MONTANHAS DA LUA, o cineasta realiza o sonho de filmar em Portugal com técnicos japoneses e, da escolha de uma muito grande angular, aliada à opção de alturas de colocação da câmara um pouco acima ou um pouco abaixo da altura dos olhos, resultam imagens singulares em que não existem linhas rectas e as personagens se encontram sempre em picado ou contra-picado. As paisagens portuguesas tornam-se estranhamente exóticas (o mesmo acontece noutros planos memoráveis de sua autoria, nomeadamente n’O RIO DO OURO). Quem teve a honra de privar um pouco com Paulo Rocha sabe como era imensa a sua paixão pelos cenários e pela descoberta, a pé, de décors naturais. A perda de mobilidade, na sequência dos graves problemas de saúde que marcaram o seu final de vida, impediu-o de dar largas ao seu gosto pelas repérages durante a preparação dos seus últimos filmes... Irreparável dano. Para Paulo Rocha misturar locais distantes a fim de fabricar lugares cenográficos improváveis era, na verdade, uma maneira de tornar o mundo mais legível e mais habitável pelas ficções que o obcecavam. 1 Note-se que nas primeiras versões de OS OLHOS VERMELHOS (projecto que se transformaria, mais tarde, em SE EU FOSSE LADRÃO) um dos protagonistas também estava ligado ao terrorismo internacional...
Embora Paulo Rocha amasse e conhecesse profundamente a cidade de Lisboa 2 – onde viveu a maior parte da sua existência –, algo nele impelia o seu cinema nómada para um Norte magnético donde se achava originário. O cineasta sonhava com filmes que seriam caminhos de regresso às brutais dissonâncias nortenhas que ele tanto prezava: as de Camilo, as de Amadeo, as de Júlio, as de Oliveira. O recurso aos décors de Tibães, neste seu filme, como que anuncia um lento movimento de retorno que passa por Amarante em MÁSCARA DE AÇO CONTRA ABISMO AZUL, por Mesão Frio, Cinfães, Lamego e o Porto ribeirinho n’O RIO DO OURO, pelas vísceras do burgo portuense em VANITAS, para desaguar, em SE EU FOSSE LADRÃO, numa cenografia dominada pelas paisagens vareiras e pelas referências às terras natais de seu pai e de sua mãe. O desvio por Lisboa que A RAIZ DO CORAÇÃO representou corresponde ao desejo de mostrar a que ponto a cidade onde o poder está centralizado se encontra divorciada do resto do país. Como já alhures afirmámos, Paulo Rocha 3 desejava ardentemente realizar filmes populares, filmes de que o maior número pudesse fruir, não por ambicionar bater records de bilheteira e, consequentemente, enriquecer, mas porque considerava que aliar o máximo refinamento das inquietações com a máxima expressividade das formas, sem fazer concessões ao gosto dominante, era a quintessência da arte cinematográfica. Embora O DESEJADO ou AS MONTANHAS DA LUA não tenha encontrado, ao tempo da sua estreia, eco significativo junto da crítica especializada e, por não ter sido distribuído, junto do público, não deixa de ser curioso recordar que se trata de um filme pai de outro filme, mais concretamente de VIAGEM AO PRINCÍPIO DO MUNDO. Na verdade, a circunstância de Paulo Rocha ter levado o actor Jacques Bonnaffé (o motorista) a conhecer parentes portugueses durante a rodagem do seu filme, inspirou Manoel de Oliveira que, assumindo o papel de «condutor do veículo-cinema» e confiando a Marcello Mastroianni 4 a missão de o representar na tela, assinou um filme surpreendentemente confessional em que os bastidores das filmagens se encontram catapultados para primeiro plano. A frase de Nietzsche escolhida por Manoel de Oliveira como epígrafe «Tornar-se senhor do caos que se é» poderia, sem desajuste, ser também porta de entrada para o universo intensamente subjectivo de Paulo Rocha que, incansavelmente, tentou objectivá-lo através dos filmes. Regina Guimarães e Saguenail Novembro de 2014
2 Era aliás excelente cicerone quando generosamente dava a conhecer os quatro cantos da capital a visitantes desejosos de a descobrir. 3 A felicidade demonstrada por Paulo Rocha sempre que se escreviam canções e/ou se ensaiavam cantigas com grupos de cantadores populares é sinal desta sua vontade de encontrar formas às quais um grande número de pessoas se possam abraçar. 4 VIAGEM AO PRINCÍPIO DO MUNDO foi o último filme da grande vedeta italiana...