Quadro eléctrico

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QUADRO ELÉCTRICO uma fantasia para cinco actores e um quadro Entrada das crianças-visitantes na sala. O grupo senta-se. Black out. Projecção do quadro de Seurat durante 45 segundos. Black out. Risada cristalina da bailarina equestre. O som de um espectáculo de circo entra em fade-in, como que comandado pelas gargalhadas femininas, invade o espaço, instalase, mantendo-se num volume razoável mas não ensurdecedor. A luz entra à faca e revela brutalmente a presença dos vários intervenientes na cena — a bailarina, o apresentador, o trapezista e dois palhaços — perfeitamente imóveis. A BAILARINA (articulando com excesso como se despertasse de um sonho falado em russo) Cavalo! Cavalinho! (Barulho com a língua para encorajar o trote da "montadura") Bicho branco com fumo no focinho! Debaixo dos pés, um cavalo invisível. Debaixo do cavalo, o chão que não se vê. E, debaixo do chão, o coração da terra que ninguém ouve bater. (Suspirando) O meu pai dizia: não olhes para o chão que te podem cair as meninas! As meninas do olho, queria ele dizer... Mas a minha mãe dizia: quando não houver nenhum lugar para onde possas olhar com segurança, olha para o chão que é sempre um sítio de confiança. Então... Então? Então, eu empino o nariz e olho para o ar e depois faço olhinhos cabisbaixos na hora de cumprimentar. Saio com uma vénia, de rabo alçado e perna no ar. (Tenta pôr-se em movimento para juntar os gestos às palavras mas esbarra contra uma parede invisível. Todos os outros continuam paralisados) Saio? Não saio. Podem bater palmas. Podem bater com os pés. Podem patear, assobiar, eu nunca saio do lugar, do meu eterno cavalgar. Pode a terra tremer, pode o sol sem cor de um projector desabar na arena, eu fico assim, grande e pequena, sem tempo nem pressa, a dançar dentro da minha cabeça. Que pena! Sou uma bailarina dentro da cabeça, vejam só... (Gestos melodramáticos) Dentro da minha, da tua que ouve a conversa dos meus movimentos, dentro do miolo dos meus amantes, todos eles ciumentos e distantes... Eles batem-se em duelo por um farrapo do meu vestido amarelo. Eles roubam, enganam e matam pela curva do meu joelho em forma de lua. Porém... de que me serve tudo isso? Uma bailarina dentro do feitiço da cabeça não pode sair à rua, nem andar lá fora com aquele ar bonito de quem vai embora para sempre, de quem está apenas de passagem, adeus boa viagem! Ai, como eu gostaria de ser uma velha gorda e desdentada a vender pentes e ganchos numa esquina bem esquinada. Ai, como eu queria ser uma menina magrinha e feia a mascar chiclete à porta de um centro super comercial etc e tal. Ai, como eu amaria as pedras da calçada e o pó da estrada e o cimento e o macadame e a lama e os caminhos onde se gasta a alma dos sapatos... Violentíssimo relinchar de cavalo. Black out simultâneo. Quando a luz volta a subir, o apresentador anda às voltas à arena, a passo desenfreado. Todos os outros permanecem nas suas posições rígidas. A bailarina jaz adormecida no chão. O APRESENTADOR (tom de feirante) - Ora muito bom dia boa tarde boa noite, benvindos ao grande circo do mundo para assistir ao maior desfile de palavras jamais ouvido, todas elas em desordem alfabética, os pês sem pés e os kapas sem kapote, tudo à molhada, tudo a monte! Tudo no plural para fazer número! E ei-los, aos magotes, os canivetes, os alfinetes, os tapetes, corpetes, os corpos, os porcos, os mortos, os colos, os calos, os ralos, os ratos, os patos, os cacos, os côcos, os macacos, os cactos, os casacos, os cossacos, os sacos, os sabões, os salões, as salas, as falas, as facas, as fadas, as focas, as socas, as secas, as sedas, os selos, os solos, as solas, as bolas, as botas, as borras, os berros, as birras, as bilhas, as bolhas, as bocas, os becos, os bicos, os picos, as pintas, as pontas, as portas, os portos, os pôtros, os povos, os pólos, os pêlos, os polvos, os papalvos, os alvos, os calvos... (O


APRESENTADOR começa a ficar ofegante, manifestamente cansado, e a luz vai baixando lentamente à medida que a velocidade das voltas diminui) os carros, cigarros, os galos, os gargalos, os garfos, os arcos, as arcas, as vacas, as macas, as mocas, os mecos, os bonecos, os tarecos, os traques, os truques, os trocos, as trocas, as rosas, as rodas, as roupas, as rectas, os risos, as rezas, as gretas, os gritos, as gotas, as grutas, os guetos, os golos, os grilos, os grelos, os gravetos, as gavetas, as gaivotas, as gaiolas, as golas, as gordas, os gnomos, os monos, os manos, os danos, os donos, as mamas, os mimos, os ninhos, os sonhos, os sonos, os santos, os saltos, os socos, os sustos, os custos, os bustos, os bules, os caules, os paus, os chapéus, as chaminés, os chocolates, os cachalotes, os caixotes, os cortes, os cortejos, os coletes, os calotes, as caleches, os leques, os lagos, os magos, as migalhas, as amigas, as formigas, as barrigas, os borregos, os borrachos, os cachos, os machos, os sachos, os sexos, os segredos, os medos, os mudos, os dedos, os dados, os fados, os filhos, os foles, os ferros, os fenos, os factos, os actos, os matos, as motas, as metas, as minas, as meninas, as varinas, as valas, as balas, as batas, as latas, as lutas, as bolotas, as valetas, os valentes, os doentes, os ausentes, os parentes, os patetas, os atletas, os poetas, as pretas, as pratas, as prateleiras, as parteiras, as partes, as artes, as tartes, as tascas, as lascas, as cascas, as cacas, as caras, as curas, às escuras..... Chegamos ao black out total. Ruidosos arfar do APRESENTADOR que se estatela no chão, extenuado. No escuro, começamos a ouvir o barulho duma corda a bater no chão. A luz volta a entrar, à faca, revelando o trapezista, em pleno treino físico, a saltar à corda. O TRAPEZISTA (relato cadenciado pela corda) - Era uma vez um trapezista que tinha medo de cair lá do alto. Cada vez que trepava, punha-se a tremer como varas verdes, a suar como dois cavalos, a revirar os olhos como se fosse desmaiar de amores por alguém. Ele bem queria parar de baloiçar no ar, mas o problema é que não sabia fazer mais nada e o trapézio era o seu ganha-pão. Um dia tremeu tanto que quase malhou na rede desamparado. Então decidiu que preferia morrer à fome a viver duma coisa que o andava a matar. Despediu-se da gente do circo e fez-se à estrada com um pacote de bolachas no bolso que a mulher-com-barbas lhe oferecera de prenda. Andou, andou, andou, até que, nos arrabaldes de uma pequena cidade, encontrou um circo muito pobre onde se apresentou como grande-adivinho-depensamentos. O dono do circo era um anão mal-humorado que, após algumas hesitações, disse que o contratava à experiência. Apesar de ignorar completamente como ia conseguir sair daquela embrulhada, o trapezista ficou todo contente por poder jantar naquela noite. Afinal morrer à fome não era tão fácil como parecia. De barriga cheia, pediu um fato emprestado ao velho ilusionista, que não actuava devido ao reumatismo, vestiu-se a rigor, encheu-se de coragem e saltou para o palco de olhos vendados e turbante como um verdadeiro vidente. Apresentou-se ao estimado público como Professor Neurónio, Prospector de Massa Cinzenta, e logo um sujeito na primeira fila lhe pediu para ler nos seus pensamentos. O desgraçado, movido pela necessidade de se safar, aventou: "Você está pensar que eu não sei em que é que você está a pensar..." O homem da primeira fila fez que sim com a cabeça e toda a sala aplaudiu. E, acreditem ou não, o Professor Neurónio acertou em todas as respostas que deu. Assim se descobriu um vidente valente num trapezista que tinha medo de malhar na pista. Será que o medo ensina a ler nos pensamentos? Ou será que de tanto baloiçar o trapezista cobardolas aprendeu aquilo que nem todas as escolas juntas são capazes de ensinar? Em todo o caso, esse trapezista era eu, noutra vida que já vivi, antes de vir parar ao quadro que vedes aqui. Black out na palavra "vedes". Uma grande salva de palmas gravada. Quando a luz sobe, acompanhando a ovação no seu crescendo, o trapezista jaz no chão, com a corda enrolada à volta do


corpo inerte. Dois PALHAÇOS SIAMESES, que estão desde o início virados de costas para o público, começam a dialogar, abanando as cabecinhas e mantendo a mesma posição. PALHAÇO 1 (voz esganiçada) - Mano Tatú, achas que agora podemos olhar para eles? PALHAÇO 2 (voz grave) - Nem sonhes, mano Dulú, nem sonhes. Eles são perigosos. Trazem faíscas nos olhos e pedras nas mãos. PALHAÇO 1 - A gente tem medo deles, não tem? PALHAÇO 2 - Temos muito medo e muito boas razões para ter medo. Eles são muitos. E fazem muito barulho. E dizem muitos palavrões. E dão muitos pontapés com a biqueira dos sapatos. E muitas bofetadas. E murros. E beliscões. E safanões. E empurrões. E riem à gargalhada. A gente morria de medo se o nosso olhar se cruzasse com o deles. PALHAÇO 1 - Mas eu gosto de ter medo. PALHAÇO 2 - Tu não sabes o que dizes, mano. Quem neste mundo gosta de ter medo? PALHAÇO 1 - Olha, gosto eu. Eu gosto daquele friozinho a correr pela espinha acima. PALHAÇO 2 - Dulú, cala essa boca. Eles estão a ouvir. Se tu lhes deres a entender que a gente está aqui, eles levantam-se, aproximam-se e, como são muito muito corajosos, se calhar vêm enfrentar-nos e dão de caras connosco. E como têm faíscas nos olhos, ficamos logo ali fulminados. PALHAÇO 1 - Como é que podemos ficar logo ali se estamos agora aqui? PALHAÇO 2 - Fala mais baixo!!! PALHAÇO 1 - Mas se a gente nunca olhar para eles, não vamos saber quem são, quantos são, se vieram numa missão de paz. Não morremos de medo, mas morremos sem saber. Podíamos ao menos espreitar por cima do ombro. PALHAÇO 2 - Se fizeres isso, fujo e nunca mais me pões os olhos em cima. PALHAÇO 1 - Bem sabes que isso é impossível... Somos palhaços siameses ligados por um cordão. Somos raros e caros e andamos sempre juntos como os sapatos dos defuntos. PALHAÇO 2 - Pronto. Se fugir, vens comigo mesmo que não queiras. PALHAÇO 1 - Estou farto de brincar sempre às mesmas brincadeiras com a mesma pessoa. PALHAÇO 2 - És um irmão ingrato. PALHAÇO 1 - E tu és um palhaço chato. Nem me fazes rir a mim, nem me deixas ir brincar com eles. Mas és só meu irmão, não és meu pai. Eu vou de-so-be-de-cer. Vou res-pi-rar fun-do. (Inspira.) Vou es-


ti-car o pes-co-ço. (Estica.) E vou vi-rar a ca-be-ça. (No instante em que se vira para os espectadores, black-out.) PALHAÇO 2 (no escuro) - Vês? Já estamos no outro mundo... E como é que voltamos para o quadro? FIM

VISITA GUIADA No Camarim O GUIA - Dentro da grande casa do Teatro, os camarins são os sítios mais privados, um pouco como quartos reservados a hóspedes muito especiais. É aqui que os actores, os artistas de circo, os cantores, os músicos, os bailarinos se preparam, penteando-se ou colocando perucas, maquilhando-se, depilando-se, relaxando, fazendo aquecimento de corpo e voz... Mas também comendo ou fazendo jejum, lavando os dentes e gargarejando, fazendo chichi e cócó porque o pavor de entrar em palco dá uma senhora volta à barriga. Aqui se recebem flores e admiradores, se enxotam rivais e se dão autógrafos. Aqui moram as estrelas, aqui bebem uma água mineral ou uma taça de champagne, antes e depois de terem vendido as almas por uma salva de palmas. E quando o hóspede deste quarto se senta ao espelho, quantas vezes não pensa que está demasiado velho para estas andanças, quantas vezes não diz para com os seus botões que lhe apetece fugir como os ladrões. No Palco O GUIA - Este sítio que agora pisamos é o palco. É aqui que se desenrolam os espectáculos. De Teatro, de Música, de Dança. Por vezes dessas artes todas misturadas. O palco é o reino das cortinas que ao longo dos séculos foram sendo inventadas para este grande buraco negro funcionar melhor. Ouçam só os nomes espectaculares que se usam para as cortinas: primeiro, a de ferro, a mais forte, que só se utiliza em casos de emergência e se fecha quando o teatro está encerrado; ao fundo, um pano branco muito bem esticado que se chama ciclorama — parece um nome de flor — e serve para jogos de luz, projecções de diapositivos e de vídeo; a régia, palavra que vem de "rei",esconde do público o que está pendurado na teia; o telão, matulão, que pode ser aberto de duas maneiras, ou dividido em dois e recolhido para ambos os lados, ou subido para a teia; por fim, as pernas que ocultam técnicos, cenários, etc e as bambolinas, lindas meninas, que fazem o mesmo que a régia na parte inferior do palco. Conforme a colocação das cortinas, a cena será um palco à italiana (com várias aberturas de lado) ou um palco à alemã (só com aberturas ao fundo e à frente). Os grandes tubos de metal que servem para pendurar cenários, máquinas, projectores, etc chamam-se varas. As caixas de ligação de cabos de som e luz são as boxes. Atrás das cortinas, eles serpenteiam e pululam e formam verdadeiros ninhos de víboras. É à boca de cena que se desenvolvem, em geral, as cenas mais relevantes dos espectáculos. Mas, como pela boca morre o peixe, mais vale uma boa cena bem ao fundo do que uma cena falhada nas barbas do mundo.


Na Teia O GUIA - Estamos no céu do Teatro, na sua parte mais misteriosa e escondida. Toda esta zona superior do palco é composta por um conjunto de varas motorizadas ou contra-balançadas que servem para suspender cenários e projectores. Trata-se de material muito delicado, cujo manuseamento deve ser sempre acompanhado por técnicos especializados pois comporta riscos. A este emaranhado que os olhos do público não vêem chamamos "teia" e as aranhas que trabalham aqui em cima quase nunca têm direito a nome no cartaz. É um trabalho de sombra e na sombra. Conhecendo agora a minúcia do trabalho destas aranhas invisíveis, é-vos mais fácil avaliar a que ponto qualquer coisa posta em cima dum palco implica um sem-número de operações e uma grande dose de coordenação. Decerto começais a perceber que, apesar de se parecer um pouco com uma casa grande, o Teatro é, de facto, uma grande máquina mascarada, uma máquina que não revela as engrenagens dentro da barriga. Na Régie O GUIA - Este quarto escuro onde poucos entram chama-se régie e é o local onde a luz, o som e todas as mudanças do espectáculo são controlados pelos operadores e pelos directores de cena. Na régie existem mesas de luz e mesas de som. Não são mesas de almoçar ou jantar, são maravilhosas caixas cheias de fios, botões e luzinhas, brinquedos que servem para acertar, ao pormenor, a iluminação e o ambiente sonoro que envolve o público. As mesas têm ligações complicadas ao palco que permitem aos técnicos acompanhar daqui de cima tudo o que se passa em cena. À sua maneira, os que trabalham na régie são donos do que acontece no palco, pois se a luz e o som falharem, o espectáculo pára. Na escuridão da sala, a régie lembra a cabina de comando duma nave espacial, vinda de muito longe para dar corpo às imagens que nos chegam de outros mundos.


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