Quem tem medo do lobby mau

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QUEM TEM MEDO DO LOBBY MAU? Seja qual for o juízo que formulemos sobre os seus filmes, somos obrigados a constatar que Manoel de Oliveira adopta uma atitude cada vez mais livre e provocadora em relação aos códigos narrativos tradicionais. Sem pretender impor as suas obras como modelos — limitadas como são pela escolha de um trabalho artesanal de encenação que reforça a postura de autor de Manoel de Oliveira mas se opõe a uma exploração «industrial», e também pela falta de meios, tendo em conta a ambição de certos projectos: é inegável que, no geral, a batalha de Alcácer-Quibir propriamente dita não parece plenamente conseguida no plano expressivo; teria sido necessário tratá-la de forma mais teatral com uma dúzia de actores à luz da mesma lógica dramatúrgica que a cena final da mesma batalha em que o «NON» é pronunciado ou então com dez vezes mais figurantes bem treinados —, cada filme apresenta uma proposta radicalmente inovadora ao nível da construção do discurso. No cinema de Oliveira, existe sempre uma tensão entre o verbo e a imagem de tal forma que esta, em vez de funcionar como uma ilustração — a redundância verbo-imagem que sustenta os filmes «psicológicos» do tipo ÁFRICA MINHA —, como uma didascália — justificação cénica de um diálogo nos filmes policiais do tipo O FALCÃO DE MALTA —, ou como «cenário» — estética realista do género YAKUSA — surge simultaneamente primeira e humana, isto é postula a necessidade do verbo. Para tanto, Oliveira «interrompe» a imagem — dos actores inactivos e imobilizados em AMOR DE PERDIÇÃO, passando pela tomada de vista frontal em O SAPATO DE CETIM, até ao plano fixo em A DIVINA COMÉDIA —, recorrendo frequentemente à referência pictórica — pintura sacra em O ACTO DA PRIMAVERA e A DIVINA COMÉDIA — ou cinematográfica — passos na luz azul, focinhos disformes na luz vermelha em OS CANIBAIS; sonho de Raskolnikov filmado com grande angular em A DIVINA COMÉDIA. A imagem, imediatamente identificada, revela-se incompleta na medida em que a «interrupção» desarticula o seu sentido convencional. Para ser interpretada, precisa dum comentário verbal. Este último é sempre «canónico» — tirado de textos que Oliveira restitui na sua «integridade», por vezes na íntegra — e propõe um sentido definitivo para as imagens. Este processo reitera uma atitude, histórica, da religião que interpreta o mundo e sobre a qual assentam a nossa organização social e a nossa mentalidade judaico-cristã. Ora, Manoel de Oliveira põe imediatamente em causa o sentido forjado. Todas as figuras que permitem denunciar o carácter factício da imagem — mostrar o estúdio (plano inicial de BENILDE), repetir a cena (O MEU CASO), animar os objectos (a lua de O SAPATO DE CETIM), quebrar a continuidade visual (a substituição de Ruy Furtado em A DIVINA COMÉDIA), etc. — são convocadas, bem como as que questionam o discurso verbal: repetição e distorção em O MEU CASO, canto em OS CANIBAIS, contradição entre os textos em A DIVINA COMÉDIA, comentário dos actores sobre os papéis que desempenham em O DIA DO DESESPERO... É na dúvida sistemática perante a «revelação» trazida pelo verbo que residem a riqueza e a provocação dos filmes de Oliveira, que utiliza o humor como resposta derradeira e desesperada do sobrevivente. Esta pesquisa sobre as componentes do filme — imagem e som —, suas funções e seus limites, foi sendo aprofundada de filme para filme, dado que Oliveira tem vindo a abordar temas cada vez mais essenciais, que colocam em jogo a paixão individual e o contexto social, da denúncia da hipocrisia (O PRESENTE E O PASSADO) ao carácter inaceitável da paixão individual (religiosa em BENILDE e amorosa em FRANCISCA), do conflito entre a moral e a paixão (O SAPATO DE CETIM) aos fundamentos de uma História contraditória que se baseia na glorificação dos heróis individuais surgindo, em segunda análise, como uma história dos seus erros (NON) e, por fim, aos pilares de uma moral cujo discurso, tomado à letra, prova ser incapaz de moldar um comportamento individual (A DIVINA COMÉDIA). Todavia, é esse mesmo discurso que acaba por ser posto em causa quando se encarna numa personagem. Oliveira não teoriza, o seu sensualismo opõe-se à submissão ao discurso. Em A DIVINA COMÉDIA, os discursos antagónicos transformam-se em diálogo (entre o «profeta» e o «filósofo»), enquanto o diálogo dos amantes (Raskolnikov e Sónia) se transforma em dois monólogos — os campos / contracampos são enquadrados de maneira a que cada um deles surja impelido para o limite de uma imagem quase vazia da qual o outro está excluído, de maneira a que cada um se encontre virado para o fora de campo do outro. Para abordar


algumas contradições «elementares», a dificuldade das relações amorosas, a sede de absoluto e o cinismo do comportamento social, Manoel de Oliveira encena personagens míticas i.e. portadoras do tal discurso canónico — que ganham corpo nos seus filmes. O processo adoptado, longe de ser «naïf», invalida o papel da ficção «ad hoc» e devolve ao «autor» a missão de elaborar uma proposta original que em geral só aparecem nos filmes sob forma de «clichés». A própria atitude de aparente humildade de Oliveira — respeito pelo texto, recurso a um certo didactismo inspirado no tom do professor primário — constitui a única prova de optimismo por parte dum cineasta lúcido que se interroga sobre as contradições humanas. Oliveira faz parte duma elite de realizadores para quem o cinema não pode ser uma simples distracção, e não é por acaso que, de longe a longe, tanto ao nível da temática abordada como da exploração formal, se estabelecem curiosos paralelismos com outros autores europeus — BENILDE é contemporânea de A MARQUESA D'O... de Rohmer; o trabalho sobre o plano fixo foi retomado por Godard em DETECTIVE... Manoel de Oliveira, que prossegue a sua obra, alheio às preocupações da moda e ao concerto de ataques que os seus filmes parecem doravante e de novo suscitar, regressando aos temas e aos autores que lhe são caros — Régio, Camilo — está, hoje como ontem, na vanguarda do cinema português e europeu. S.


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