R 11 abecedário interior

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Marta Caldas

Regina Guimarães

ABECEDÁRIO ABETARDÁRIO



O A tinha uma janela no primeiro andar, por onde entravam rios celestes: a luz do som e a mĂşsica do sol.




O B julgava que tinha duas barrigas e morria de desgosto. Até que o médico lhe disse que eram dois pulmões e que escusava de abafar debaixo da roupa para se esconder.


Os que nascem de cu virado para a lua diziam que o C mentia porque, em lugar de crescer, minguava. Ent達o o C fez um pacto com o S e passou a mentir antes dos E e dos I. Mentir por mentir, mais valia ter a fama e o proveito.




O D sempre achou que era só metade de si. E vinga-se vivendo à dentada, trincando o vazio como que à procura de meia laranja, meia-tijela ou da metade esquerda do coração. Quando o peito se nos aperta, anda por lá um D, armado em alma danada. É escusado dar-lhe letra ou trela.


O E tinha a certeza de ser. Pelo menos dizia que sim. Porém, estranhamente, estava sempre de garras de fora como se fora obrigado a defender sabe-se lá que posse de si. Invejava a alegria do A e não parava de comentar que os seus dois andares eram mais espaçosos. Mas quem é que alguma vez via uma casa naquele tridente empinado?




O F sentia-se leve como um ramo, capaz de baloiçar ao vento e pronto a arrancar a raiz única que o prendia à linha de terra. Apesar da sua aparência frágil era uma verdadeira fera quando desatava a bufar para afastar os indesejáveis, em particular o P e o H que outrora se haviam coligado contra ele e nunca tinham perdoado ao dono do alPHabeto terem sido substituídos por uma letra tão pouco clássica.


O G sofria de gaguez crónica. Por isso era muito metido consigo. Também padecia de uma grande paixão secreta pelo C e em tudo tentava imitá-lo. Infelizmente o seu amado já tinha com que se coser e não o queria como companheiro. O pobre G esforçava-se por soar cortante e claro, por parecer capaz e categórico, mas o tal defeito gritante davalhe um ar de gafe sem graça. Só mesmo o U, seu confidente, sabia uivar o grande enguiço do amigo.




O H ficava bem à cabeça de qualquer palavra embora não se pronunciasse, pelo que era muito requisitado, quando não assediado. Tinha de inventar desculpas esfarrapadas e etimológicas para não aceder a tantos convites. Fazia-se de muito humanamente tímido, quando, de facto, era um misantropo. Como, ainda por cima cima, corria o rumor de que o silêncio é de ouro, o H ganhou fama de letra cara e rara. Todavia, o N, o L, e o C nunca perdiam uma ocasião lhe chegar a roupa ao pêlo para o tipo não se armar.


O I gastava fortunas em cosméticos para disfarçar a sua pinta que era um sinal de nascença. Mal podia, tornava-se maiúsculo e mentia com quantos dentes tinha como só os crescidos conseguem. No fundo, o I era um ingénuo: não imaginava que aquela marca de fabrico lhe dava uma distinção inimitável, um toque de originalidade na sua elegância natural. Aliás, todas as vogais lhe cobiçavam a linha e a pequena lua cheia. Vítima dos seus complexos, quando se ouvia intensamente em palavras ou frases, julgava reconhecer um «ih! ih!» ou um «hi!hi!» de troça.




O jota era ocioso, alegre, jocoso até. Não gostava de trabalhar e descarregava uma parte substancial das suas tarefas no G, mas saía sempre bem no retrato de família. Ao contrário do I, o jota tinha a sua pinta em alta estima. Chamava-lhe brasão e discorria sobre a sua linhagem. Só queria escrever-se em minúsculas porque (explicava ele, a meio poste, como se acabasse de sair da cama ou se preparasse para se deitar) letras grandes são uma cena burguesa e burgessa. O jota tinha teorias sobre tudo, achavase eternamente jovem e fazia jus à sua reputação de janota, fugindo aos deveres como o diabo da cruz.


O K era uma letra inkietante. Antes de mais porke não existia no alPHabeto da língua em ke falo, a não ser nas palavras estrangeiras komo kart e kayak. Tinha um medo ke se pelava do O kuando este lhe falava kurto e grosso. Se sentia a redonda vogal por perto metia-se debaixo de uma kapa negra e passava à klandestinidade. Tirando a sua natural kompetência para o kaganço, não era má peça. Trabalhava em parttime num gabinete de fonétika, partilhava kasa kom o W e o Y e militava em prol de uma reforma ortográfika ke koncedesse plena cidadania aos emigras. Namorava kom a Q de kuá kuá às eskondidas pois não konseguia portar-se komo adulto e enfrentar o U.




O L assentava em si mesmo como uma luva. Tinha assento em todas as reuniões de letra grande e, se minusculava, logo estreitava laços com quem o precedia ou seguia. Campeão da flexibidade, o L prestava-se a lutas de salão, a lutos oficiais e a todos os lugares comuns preconizados pela Ordem alPhabética. Amiúde acusado de ser um descarado lambe botas, não passava de um caso de talento social inato. Líquido e lírico, logo ainda mais serpentino do que o S, o L era exímio em deslizar, esgueirar-se, esquivar-se, devanear. Alguns diziam que eLe fazia crescer água na boca, outros que eLe trazia sempre água no bico. E isso soava como música aos seus ouvidos, pois eLe adorava andar nas bocas do mundo.


O M era pródigo naquelas falinhas mansas atrás das quais se escondem gumes. Os cimos não lhe metiam medo pois tinha uma secreta admiração pelas alturas, pelas grandes vistas e pelas pessoas bem colocadas. Mal lhe davam um pouco de atenção, todo ele se eriçava de excitação, miava como uma madama desalmada e subia aos píncaros da palração felina. Sabendo-se pouco merecedor, o M defendia-se do duro atrito da realidade através de uma mitomania, a priori inofensiva, mas muito maçadora para os demais. Sabendo-se péssimo prosador e pior poeta desenvolvera um estilo que misturava o mel das palavras vãs ao veneno das intenções malvadas. Pelo que a malta começou a mandar à merda o M com todas as letras, dilatando os seus defeitos e esquecendo males mais ruins.




O N era a letra de embalar por excelência. Naturalmente modesto e até um pouco néscio, ambicionava arredondar-se para ocupar menos lugar. E também para instilar sonambulismo no mundo à sua volta, evitando assim ter de arcar com ângulos agudos e casos bicudos. Como os seus desejos não viravam realidade, o N foi-se tornando primeiro simples noctívago, a seguir boémio impenitente. Começou a negligenciar os seus trabalhos de embalo e baby-sitting, e muitas vezes era trazido ao colo para casa porque bebia até cair. O álcool não fazia dele uma letra eloquente... O N transbordava de ternura ao terceiro copo, rolava pelo chão a ponto de se confundir com o inconfundível Z e, a partir daí, era um na-na-na e um zzz-zzz-zzz sem fim. No dia seguinte, acordava amnésico e vencido pela vida.


O O espantava-se com tudo ou, pelo menos, fazia como se... Perante a rotunda doçura do seu constante pasmar, era difícil decidir se ele mostrava pura estupefacção ou se exagerava para dar graxa, causar agrado, engatar e... fazer jus à sua circular reputação. O que é certo é que o terno pasmadinho era tido em alta conta pela alta roda. Versejava a seco apoiado pelo H. Carpia distintas mágoas encostado ao D. Dava longos passeios com o S se acaso a solidão lhe pesava; por vezes, ambos se juntavam ao L e brilhavam em sociedade. O O coleccionava palavras onde reinava como vogal única para uma poetisa gorda. Tais como: osso, ovo, povo, mocho, roxo, dono, bobo, colo, lobo, copo, olho, polvo, soco, corpo, jogo, corno, choro.




O P era um explosivo, uma letra-petardo. Bastava aparecer um P para a frase virar Pimba, Pumba, Pum, Prás, Catrapás, Catrapumba, etc. O P julgava que tinha inventado a pólvora seca e olhava com desdém o seu primo B que considerava um balofo. Porém o P, pá, passava por ser um bom compincha, ideal para abrilhantar festas (P-parties), sobretudo na variante clímax e ponto final. Campeão de tiro aos pratos, especialista em tiro às pombas, ninguém o queria ter como vizinho, embora a sua viril bazófia fosse assaz apreciada. Desde que rompera com o H, o P perdera o jeito de philosophar e nenhuma letra aturava por muito tempo um parceiro tão barulhento.


O Q suportava mal o facto de ser tratado como QUÊDE-QUÁ-QUÁ, quando na verdade o seu suposto homófono se chamava CÊ. Como podia alguém baralharse, caraças!? Por outro lado, o Q garantia a quantos o ouviam que não tinha sombra de pato ou ganso na sua ascendência e dispunha-se mesmo a exibir os seus quartiers de noblesse quando alguém desdenhava prestarlhe a devida atenção. Apesar de humilhado e ofendido (ou talvez por isso), o Q tinha ganas de conquistar o mundo, apoiava-se no U para as suas operações de sedução e estava sempre pronto a desembainhar a sua pequena adaga em caso de querela.




O R, de origem obscura e plebeia, fora ensinado a ronronar entre vogais, mas a páginas tantas começou a sentir-se muito pouco consoante. Apetecia-lhe ruminar, ranger, rosnar, rugir, mostrar todo o seu potencial vibratório camuflado à nata e à ralé. Passou a andar aos pares como a bófia – não fosse o diabo fonético tecê-las...! – e a mostrar a sua dupla face mais sonora e provocadora. Da noite para o dia, o R conseguiu mesmo ribombar e, ao contrário do que dantes acontecia, só se escondia para ronronar à vontade, pousando a cabeça sobre os braços...


O S sempre se imaginou descendente directo da serpente tentadora de Eva e, à conta dessa pesada herança, hesitava quanto ao som que melhor lhe assentava. Embora o sss sibilante lhe parecesse bastante adequado, o zzz permitia inflexões mais nitidamente esvoaçantes e o chh exprimia possuía uma tonalidade rastejante que não era de desdenhar. Cioso de colocar todos os trunfos do seu lado, o S virava a casaca musical ao sabor das palavras e até ousava gabar-se da sua polivalência acima da média.




O T distinguia-se por uma teimosia tão tenaz que roçava a estupidez. Era o género de sujeito que chega a qualquer lado e ali se planta como se fosse em casa sua. Viesse alguém reclamar, metê-lo nos eixos ou tentar desalojá-lo, ele vociferava como um trovão, esbracejava como um náufrago e não arredava pé. Imaginava-se dono do mundo – e o seu mundo reduzia-se ao tamanho do seu pequeno pé. Poleiro e cata-vento de si mesmo, o T não se enxergava...


O U era um poço sem fundo de escuta. Confessor do G e pau de cabeleira do Q, era a única letra que todas as outras respeitavam igualmente, embora por diferentes motivos. Aprovado por unanimidade, tinha alma de polícia e uma estranha vocação para estar onde era e onde não era chamado. As letras mais crentes julgavam-no ubíquo. As mais cépticas temiam o intruso e louvavam o espião...




O V trocava-se todo pelo B. Aquele par de pulmões, julgava ele, escondiam, julgaba ele, um fôlego divino. Educado na ilusão de que o sopro era o supra-sumo do som e o som o supra-sumo das construções, o V cultivava a arte da brisa e da rajada, do zéfiro e do ciclone, do suspiro e do furacão. Não fora a sensatez do B, biraba bendabal.


O W era um céptico. Aliara-se ao aldrabão do C para empreender a crítica sistemática da wanderlândia. Aos poucos tornara-se radical: wagner, washington, wall street, wittgenstein, wellington e tudo quanto tinha sob a sua asa acabava no wc, que era uma espécie de web subterrânea.




O X já não assinava de cruz. Estava farto de ser confundido com segredos e mistérios alheios. Estava pelos cabelos de rotular coisas, ou até pessoas, rascas. Antes vida de espantalho do que enredo de folhetim...


O Y nasceu crucificado e assim se manteve por entre os seus pares e Ă­mpares. Pau para toda a colher, era vogal em muitos ajuntamentos mas votava sempre nas consoantes.




Tinha pressa de ser rio. Fugia da nascente para a foz com o corpo carimbado de paisagens e picadas de insectos.




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