R 2 rainhas interior

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LADY BOOM as rainhas



I Entre os homens e as humanidades, de mim mesma alheada, cambaleio a bordo de conceitos que não colam e de esmolas que já não me alimentam. À deriva, faço vénias, faço figas − longo jogo da macaca nos passeios, breve jogo da glória nas calçadas ou da mão que ainda bate morta mas não toca àquela porta por ter medo da batota. Se mulher entre os homens, quase vírus, se homem entre as fêmeas, mutilada se menina entre adultos, quase bicho se adulta entre crianças, acossada. Por isso me lançam à sarjeta, me atiram às urtigas e eu me coço, recordando a doçura de hortelã que sarava quando ardia este meu corpo.

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II O gato Salomão e a gatinha Sabá brincam aos reis e às rainhas. Isto é: aos enigmas. É certo que miam cada vez mais baixo... O que não significa que piem cada vez mais fino.

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III Toda a gente sabe, que a maria sangrenta deve a sua cor ao molho de tomate. Como nos filmes de faca e alguidar, o que parece contar ĂŠ o prazer da duplicidade, esse ĂĄlcool cujo efeito se camufla, em nome da paz dos lares, dos pares e dos paĂ­ses vizinhos.

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IV A cabeça de uma rainha cabe no cesto do incesto. O sangue que por sua causa e sua pausa corre não chega a formar um rio. Quando menstruada, a rainha de nada nada então na sua fralda. E quando vem a menopausa todas as mulheres em idade fértil juram vendetta − sabe-se lá contra quem, pois que as cuecas da rainha estão limpas como as suas mãos.

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V O eterno feminino essa contra verdade essa contra vontade esse não desejo que se insinua − como uma frase nua debaixo de muitas ideias de roupa, inclusive o trajo das meias palavras − não afecta as rainhas. Cada vez que uma rainha dorme nos braços de cobre do pirata, ela descansa de olho aberto sobre o corpo diplomático que devagar a mata. Nascidas entre folhos e pregas e dobras e golas e mangas e solas e fitas e pinças que disfarçam a pança, as monarcas sacam da arca que lhes servirá de caixão mais rugas do que uma só nudez pode transportar. Com as rainhas o eterno efémero é um trono derrubado de antemão. As rainhas são macacas com o rabo de fora. Agarrem-nas pela cauda e levem-nas embora. 7


VI As rainhas quando crescem ficam sempre mais pequenas. Primeiro cabem nos braços, a seguir dormem em berços de deriva e alto mar. Mas depois, miniaturais, podem passar a cabeça pelo buraco da agulha com que bordam a mortalha. Há mesmo reinos inteiros à procura de rainhas não se sabe se maninhas não se sabe se daninhas. Essas rainhas perdidas atingiram o tamanho de uma gota de orvalho e certo dia nefasto mal o sol raiou no céu logo se desvaneceram. Rainhas evaporadas onde estais que não vos vemos neste jogo de sinais?

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VII As rainhas convivem entre si com vista à rejeição de pretendentes. Se obrigadas a escolher entre Sol e Saturno caem de cama, febris e muito doentes. Mas se alguém lhes força a mão, elas não dão. As rainhas envelhecem depressa por esquecimento e descuido. Resta-lhes quase sempre uma mente alegremente tresloucada e um sentido do ritmo que não serve para nada.

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VIII As rainhas não vertem água no vinho nem se separam do copo quando sobem ao seu quarto para logo se afogarem em vasto vale de lençóis. Elas pousam o copo meio cheio ao tempo que também pousam o corpo vazio e vago. E na feira dos seus sonhos infantis o vinho molha, boca após boca, lábios e barbas viris, até que por fim se entorna entre os quadris de um rapaz − de todos o favorito, o mais bravo, o mais bonito e capaz de lhes dizer sem pudor: «De sua água não bebo e a seu vinho não me apego.»

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IX As rainhas aprendem muito cedo a rebolar até à embriaguez copiando o bom exemplo de tudo quanto é redondo fora da esfera do medo. E rebolam que rebolam virando as costas largas a quem lhes beijar os pés e der prova de seu zelo ao passar a mão pesada por seu fartíssimo pêlo. Longe do centro do mundo, do brilho das redondezas, da claridade ofuscante, as rainhas uterinas desgastam-se até ficarem do tamanho de berlindes. E são rainhas de bolso, pérolas dadas às porcas, duas gotas faiscando entre o peito e o pescoço. Por fim reduzem-se a pó, já não são, nunca estiveram. Se ao falarem, oiradas, se descaírem às vezes, carambolando no verde e nos tapetes vermelhos, não lhes queiram mal por isso. 11


Dolorosas na raiz, as rainhas como dentes à realeza arrancadas e ao véu das realidades perguntam a quem não sabe como levarão sumiço.

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X As rainhas ruminantes mascam plantas e dormitam como se já mastigassem um tempo longamente triturado, sem saberem de que banda, de que lado cairá esse raio fulminante que escreve na incerta vertical, colando o corpo à farda, o fardo ao céu e os bichos ao veludo do seu prado. As rainhas ruminantes escarram ouro e vivem rodeadas de bacias, da boca só lhes saem maravilhas e bens que são pertença de seu estado. As rainhas ruminantes fazem figas e usam talismãs na vez de jóias que escondem sob o manto e sob as saias celeiro onde labutam mil formigas. As rainhas ruminantes só passeiam entre a língua e a barriga de misérias, sorrindo quando escutam coisas sérias, chorando se lhes contam vãs intrigas. Seu segredo tantos anos ruminado é passarem desse estado animal à rotina de aprender a vegetar. Ruínas ambulantes, elas podem ser pedra e ser planta trepadeira a segunda abraçada à primeira. 13


E é sempre boa hora de pastar as ervas mais amargas, mais daninhas − são estéreis e obesas as rainhas. Sabendo que não vão engravidar devoram lentamente o seu lugar na vez de acalentarem outro ser.

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XI As rainhas jamais traçam suas pernas, mijam de pé, de esguicho e pela fresca, dormem com rabo de fora. Ora soltas, ora presas, como barcos ou cabelos, esbanjam as suas defesas tornando-se indefensáveis. Não são nem ágeis, nem hábeis, porque proferem promessas. Preferem seguir o fumo ao fogo que rompe a bruma, ao gelo que apaga o lume. E não se fazem rogadas quando amadas às escuras. Trocam a cura e o mal pelo bem sempre venal de torcerem e quebrarem e arvorarem raízes na vez da folha e do ramo. Terrosas em seu sorriso, recitam velhos poemas, desdentados, dolorosos − lazarenta equitação... Da mosca sabem o voo em teatros de anatomia. Medem forças com o chão, deitando as tripas de fora, roubando notas à flauta 15


− esfarrapadas de aurora e fardadas de poente. Se pensam, pensam a quente. Se falam, falam a frio. É conhecido o seu gosto por banhos de rouquidão, por roupa quase no fio e por maçãs de outro rosto. Desafinam sentimentos as rainhas despeitadas... As malvadas desconfiam de sujeitos e objectos que se prestam à tarefa de serem seus instrumentos.

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XII Uma rainha minĂşscula entre dois pinheiros bravos abre as suas coxas peludas aos homens que por ali passam com ar de quem se perdeu da colmeia. A coisa faz-se entre troncos depressa e bem e o teatro do mundo faz casa cheia zune que zune uma abelha quanto maior a plateia melhor soam as palavras dirigidas a ninguĂŠm.

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REPÚBLICA Despido o orgulho obscuro da noite boa conselheira, algo paira mais leve: uma aura sem disfarce de aurora, uma ruga de sorriso longe da boca, uma mão plantada onde fora árvore e um cheiro de lençol no mastro da bandeira. Se aceito sem escolha de arma, este duelo, este dueto de rajadas, onde sou testemunha e adversária, é por natura me ter avariado até me tornar inelutável, lutadora, vária.

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