R 2bis cantigas de amigo interior

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CANTIGAS DE AMIGO



PRIMEIRA CANTIGA DE AMIGO A minha amada é uma mesa e quatro pernas lhe vejo uma acesa outra torta outra tesa outra morta de surpresa. A minha amada está posta nunca ninguém a levanta pois renitente se mostra a que alguma mão zelosa retire talheres e pratos. Sua comida não mente nem quando a faca se espeta e a colher alimenta a boca de quem se senta à volta de uma toalha. Seu tampo não gira ou roda quando seu amigo ausente procura restos de pão miolo feito em migalhas debaixo da sua saia. E se figura lhe acho de corpo apenas presente é porque ama e não mentem as patas dessa cadela minha mesa e minha amada. 3


Se teme por suas pernas abertas eternamente faz-se tão leve tapete que presa a garras de abutre viaja porque não mente. Até que em mulher se mude mata a fome de não ser devorando o que será − talvez de futuro eu estude a ementa sem emenda que o amor me servirá.

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SEGUNDA CANTIGA DE AMIGO Não têm bicos os seios aves de mim bebedoras e por mim asas quebradas as mamas da minha amada. No sono lhe chamo fada, fada má desses tais contos onde se lançam feitiços que não servem para nada − só adiam, só atrasam, o momento em que se acorda de um sonho em forma de escada. Poucos pêlos ou penugens, olhar que não pestaneja, olhar que quase se apaga de tão rente ao que se vê, o olhar da minha amada. Por isso quando me olha, julgo estar atrás de um corpo, julgo estar à minha frente e ela dentro de mim esperando que para lá olhe esperando que em mim eu entre.

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TERCEIRA CANTIGA DE AMIGO A minha amiga só ouve quando a chamo sem saber e se acaso lhe pedir que fale por mim ouvindo sou escutado e tão bem vindo que ao falar me acostumo − adivinhando, presumo o que ela não quer dizer. A minha amiga não ouve se falando sem chamada me digo desentendido de a saber namorada por outra morte que não a que passeio comigo. E se perigo lhe faço correr em todo o sentido é porque amiga de amigo a posso ressuscitar para de novo a matar de noite pela calada.

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QUARTA CANTIGA DE AMIGO A minha amiga inimiga de não estar sempre meu lado a dura batalha obriga de ser tão seu aliado sem saber onde me encontro atrás desta barricada. A minha amiga inimiga da pedra lançada ao charco a vir à tona me obriga não para ver meu reflexo mas para encontrar o sexo onde ele se faz desfocado. A minha amiga inimiga de me saber sofredor à dor da alegria obriga um corpo que se retrai fingindo que a si atrai as dores de outro amador. A minha amiga inimiga de me ver no cativeiro a que chamamos lonjura à jura de amor me obriga que não se aprende de cor mas por ser dita perdura.

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QUINTA CANTIGA DE AMIGO Da minha amiga me prendo em hora de agitação e logo uma multidão de antigos desvalidos e de novos oprimidos pela força do motivo de que por amar eu vivo derrubam portais e muros do que fora uma prisão. Tenho na mão tatuados o número de ser cativo e a palavra do resgate embora por discrição traga os sinais ocultados como em floresta se esconde entre ramagens e troncos o pássaro que exulta por ser apenas canção. Da minha amiga me prendo na hora do caminhante em sonhos meu passo é largo curto é quando desperto entre deserto e deserto me perco por vocação mas por paixão me aproximo de quem jamais se furtou a estar cada vez mais perto. 8


SEXTA CANÇÃO DE AMOR A minha amiga ofertou-me uma faca de dois gumes um para lhe abrir os olhos outro para talhar flechas a que ela chama ciúmes.   A minha amiga ofertou-me um belo pau de dois bicos e de mansinho eu lhe bato com palavras sem recato e silêncio a corta-mato.   A minha amiga ofertou-me um livro onde me deitasse e com ela amarrotasse a brancura do papel e o negrume da noite pois em palavras e actos me fez à fala fiel onde a fala lhe faltasse.

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SÉTIMA CANÇÃO DE AMOR A minha amiga enviou-me uma pequena merenda uma mão sua suada uma carícia salgada e o vinho das suas coxas para beber em seu nome para que a ele me prenda. No pequeno cesto havia o estranho nome entrançado que suas tranças desfez e entre um seio tombado duas bocas que eram olhos dois olhos na vez de três pois se a quero ver inteira terei de olhá-la outra vez. A minha amiga enviou-me um recado onde esconde que não terá timidez em mostrar como e donde o fazer de amor se fez − cada palavra se despe e cada letra se veste de pura desfaçatez. A minha amiga mandou-me pela voz de amigo seu dizer-me que eu sou eu 10


e que nessa voz se esconde outra voz de arremesso de lançar a terra ao céu no ponto do recomeço onde se é minha e se é meu. A minha amiga já disse que por mim morre e morreu em braços embaraçados por transportarem o corpo o peso morto e mortal dos lugares onde viveu no eterno desconforto dos prazeres que não me deu.

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OITAVA CANÇÃO DE AMIGO Diz a minha amiga que há-de ser feito de amor tudo quanto eu tocar, mas temendo ser mexido onde mexer como saber por onde começar, onde me leva isso que faz, isso que é feito, sujeito a seu objecto sem sujeito. Do abismo me abeirei, não do amor, esperando em minha queda não roçar asperezas que pudessem arranhar as crenças de que sou amo e senhor, e tomando o firmamento como tecto julguei ser também dono do afecto. Diz a minha amiga que haverá uma sombra onde a noite se prolonga uma luz onde o dia não se extingue um lugar onde ninguém de amor se vingue e em meu corpo toda a vida vingará sem destino, nem enguiço, nem peçonha. E diz-me que lhe diga mais de nós no sítio em que o dizer nos indistingue no ponto em que parece o que aparece esticando o fio que me estende a sua voz esticando a corda onde dança o seu espectro pois aquilo que era longe fica perto.

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NONA CANÇÃO DE AMIGO NÃO é palavra que não espero ouvir da minha amiga − cada NÃO seu é um SIM e cada NÃO que em mim guardo por incógnita razão me pesa mais do que um fardo. Por indecisão aguardo fazendo com que me siga e perseguindo pareça algo que em mim não consiga fazer de conta que SIM porque falar desobriga. Decidi não dizer NÃO nem SIM a quem me diz SIM de vil talvez me vali mas não me vi no que vi e só me assemelho a mim quando ela a si se assemelha. Amante olho por olho amiga vermelha e velha olhando dentro de mim dentro por dentro de si.

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DÉCIMA CANÇÃO DE AMIGO A minha amiga pergunta se volto rico colono ou pobre colonizado se volto coluna intacta ou pórtico derrubado ou colo onde nadariam os peixes de um novo caldo. A minha amiga pergunta se regresso bom selvagem ou estranho civilizado enfiando branca luva e chamando sumo de uva a sangue e sal misturado no golfo da velha vulva.

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DÉCIMA PRIMEIRA CANTIGA DE AMIGO A minha amiga motim anónima amotinada cativa em liberdade e liberta em cativeiro.   Amarra os pés aos amantes depois desamarra as mãos como eles somos irmãos e mais do que eles constantes.   E eis que seus dois mirantes ternos, estranhos, escuros, me avistam onde fui dantes onde irei noutros futuros...

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DÉCIMA SEGUNDA CANÇÃO DE AMIGO A minha amiga rogou-me que um dia me atravessasse nessa estrada sem passagem a fim que além do meu corpo jamais ela atravessasse. A minha amiga rogou-me noutro momento e local que nela me atravessasse para que na estrada sem fim até ao fim nos levasse como ventos de mãos dadas adversos aos que se movem sem saírem do caminho. A minha amiga rogou-me que vestisse a sua roupa que a sua roupa rasgasse e que por ela passando como se fora perdido dispersando seu vestido a ela me misturasse passando até não passar e sendo ambos num só apenas um só lugar.

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DÉCIMA TERCEIRA CANTIGA DE AMIGO A minha amiga em migalha um dia se transformou. Procurei-a onde não estava: uma cigarra cantava, uma formiga a levou. Logo outra amiga tomei que o todo o pão esmigalhava fosse o pão para os pedintes fosse pão branco de rei − todo o miolo migava e toda a côdea também. Da minha amiga antiga cada migalha é presença e todo o pão ela pensa à massa de mim me obriga. Mastigando a vou seguindo até que um dia consiga sair do estreito carreiro entre a cama e o celeiro escolhendo um labirinto à escala de uma formiga. E como um dia lhe disse serei o que não serei e quem fui serei também ao invés de uma velhice 17


ao invés da mocidade porque esse amor que farei terá no pão seu vulcão seu sabor e qualidade.

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