regina guimar達es
cadernos do eclipse 3 (fevereiro a abril 2009)
un coup de dés n’abolira jamais la face cachée
Como o labirinto era apenas uma figura mais atraente do caminho único, o pensamento corre para que o coração salte do peito. Ouço sílabas desse texto do amor cujas frases movediças nem formam um sentido a que escapemos nem fogem num sentido que te escape. A perna quebrarei também a mão, quebrarei a regra e a excepção, procurando as cabeças e os corpos no estendal das frases mutiladas e na rasura dos tempos mortos. Porque a vida nos será um longo abraço. 1-2-2009
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Tâmara seca e açúcar de árvore A bordo do cemitério flutuante o amor não espalha brasas nem semeia cinzas nem arrefece dizendo que já viu o outro mundo. Olha, por instantes, olha, a seda agora a saque do teu nome do teu nome vela toda ela rude e retesada. Olha, por instantes, vê o que pode ser desconhecido neste mar que julgaste conhecer rompendo os bolsos e os pés em vez de ferir os olhos como fazias crer. E com voz de quebrar espelhos diz. 1-2-2009
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Canção segunda do fantasma Numa cidade cativa desse olhar já minguante feito de céu e cal viva, uma mulher caminha como vento infecto de fundo de loja, usando muito branca a sua roupa à janela de outro corpo que nem morto vestiria Uma mulher de bonança e de borrasca, uma mulher aranha minha uma intrusa agrilhoada às fissuras da calçada uma mulher levanta-te e caminha até que ninguém te aviste até não avistares nada Eis a sua canção coxa segunda porque de ausência e dessa ira clemente a que chamarás paciência 2-2-2009
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The pomegranate and the wall of concrete Desperto com palavras dentro da boca escancarada Grão a grão se faz deserto com estilhaços de vidro para o grande teste in vivo nesta carne agora pouca Só de narinas rastejo e só de olhos esvoaço até ao muro de sangue onde me cheiro e me vejo explodir na mão que arremessa Ó minha dor tão pedestre que és sola e piso a um tempo - da fruta se inspira a arma... Mas o muro onde foi colher sua inspiração? Ao muro não se confiam os desígnios do perdão apenas pobres desenhos como signos desta língua para todo o sempre estranhos 2-2-2009
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Perante uma cidade emudecida é entre a pele e a carne que se hospeda a solidão desalojando do corpo os outros sinais de vida. Ouço os teus passos elásticos mas só os espectros me falam dizendo o que é não é. Quem passa sobre os teus passos como se fossem passados, dança depois da matança matança depois da dança, recuando até à hora em que o meu dia não nasce? 3-2-2009 9
L’ombre et la proie Só pedes o que não podes e de espera nada sabes - bizarra acrobacia do braço entendido em vão até os nervos tomarem súbita forma de estrela singular molde de mão. Só me pedes sem pedir e de pedir tudo sabes - bizarra anatomia de corpo em queda exibido até que a cabeça leve sempre primeira e veloz se rende ao peso da voz. Pois toda a gente pressente o que é amar sem limite - porém a boca recusa o pão de ontem que era duro e o mais duro de amanhã. Quem tanto ama que crave os dentes na rija côdea? E quem te oferece a face do que em si não se conhece? 3-2-2009
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Entrei sem convite expresso visitei sem ser esperada para sempre indesejada desde sempre indesejável. Porque só o impossível me pareceu necessário - fazê-lo impossivelmente logo me foi prova única e logo suficiente. Se achas que encontro volúpia no dizer do sofrimento como se fora segredo como se fora cimento, pensa antes que é danação em bodas de abandono em núpcias de chamamento. 3-2-2009
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O imenso Sim Não procurei a imagem que entra ou salta do comboio em movimento mas sim aquela que desfila e nenhuma consequência se lhe pode retirar. Não, o imenso sim, na vez do talvez que é o modo obediente. Preferi estar pronta sem estar preparada, - nem pomba nem abutre apenas um jeito de riscar ou de rasgar-me. Sim, o imenso sim, despontava cedo como um sol na nuca e um voo de carta amarfanhada, secura de asa na carne e silvo de partida. Escrever este sim com pouca tinta mas escrevê-lo vezes sem conta para que seja derrota de paisagem e o texto lacunar da sua falta. Sim, o falar de amor com todo o fora do dentro 12
no lugar de uma bandeira, e a busca incessante, essa sim, de um caminho entre vĂsceras entre entranhas no estranhamento das dores tantas e tamanhas como um Ă parte de mim. 3-2-2009
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Sentimentira mente muito o sentimento que da mente se desvia separando o acto da palavra cada cabeça que rola merece sua bacia - pensa o carrasco as mãos lavando daí. como a criança que arranca olhos de vidro às bonecas logo pressente a pobreza desse seu gesto heróico e erótico assim a miséria abre caminho a sua faca de mato é tão-só uma desculpa hesitante brusca e bruta esfarrapada e a ilusão de conquista de territórios extremos cria barreiras de fumo renegando em nome do costume a invenção do lume o que é então estar perto dele? 14
o que é sem feitiços atiçá-lo? 4-2-2009
La folie d’Ophélia Rien ne conduit à la folie mais la folie peut-elle guider? Rien mais le muscle du cœur se contracte et, rétine cyclopique, il persiste à ne pas vouloir voir venir. Alors je dors le lit à la verticale planté comme une croix pour ne pas me noyer dans mes propres rêves. 5-1-2009 15
A MENINA DOS OLHOS numa rouquidão de chuvisco e caligrafia feérica embarco a bordo das tuas pálpebras para encontrar desconhecidos que me contam parábolas cujos sentidos mais não são do que rasteiras a bordo das tuas pálpebras as finas rugas viram vagas minhas e esse mar em barriga de garrafa esse escrínio de via mais láctea onde as estrelas são curtos estampidos é o lugar onde espero abrir os olhos por obra e graça de um beijo por obra por graça e por festejo que põe fim à época da caça 5-2-2009
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Tu contavas todas as histórias como se as tivesses vivido de uma ponta à outra e quem te ouvisse fosse gente indigente. Eu não contava - calava. A minha escrita era escuta, tão absolutamente entranhada em não ter vivido nada que eu própria podia duvidar de estar viva no lugar do ouvir e do viver. A cada instante pressenti saber o sentido da terra de leite e mel, daquilo que fêmea pode dar daquilo que mulher pode colher. Mas outros desterros havia em mim quando te escutava pronta a despertar prestes a adormecer. Como poderás algum dia prender-te às farpas e aos espinhos da minha escrita se não estiveste entre se não passaste rente, ó meu amor ledo e leve de tua rosa pesada? 5-1-2009
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Este corpo de apagar paisagens à medida que por lá não passa Este corpo que não se entrega à vala incomum Este corpo que se abisma em todas as cores e dores Este corpo em paródia de velório não sabe agir em legítima defesa Por isso se ergue e vai abrir o armário proibido. Atrás da porta não havia cadáver nem ânfora onde coubesse versão ou subversão da hora extrema em que fazer amor é não fazer apenas tremer de não temer e temer não tremer Este corpo de não ser estratagema de não ser arma branca ou limpa de não ser usura ou especulação ou espelho Este corpo novo de velho ganha forma onde fraqueja na figura Meu amor, lonjura imediata 6-2-2009
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Tu as toujours su que l’argent a été inventé pour abolir la possibilité des échanges. Mais qu’as-tu fait de ce savoir? Dis-moi qui tu hantes, je te dirai qui tu suis. Dis-moi. 6-2-2009
t 19
É mínima a bagagem do peregrino um cordeiro por exemplo ou uma lanterna apagada pois falar e luzir lhe são fortuna rara num universo em expansão. E debruçado no poço que no corpo se lhe cava quando sente sede, o peregrino profere palavras de recolhimento palavras de temperatura mínima por onde desce pedra a pedra até à funda água. O peregrino vê-se a si mesmo nos caminhos esparsos e espantados como pássaros postos pelo acaso à sua guarda. Tem carne pouca e dura e é belo vê-lo rilhar longamente um dos seus dedos para não mais apontar. 7-2-2009
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Pena suspensa em silêncio de ossatura. Até a música e a espuma passaram a falar uma só água de língua dupla e escura. Para que olhar se cumpra há que cruzar nossos olhos e deixar desmoronar a fortaleza da face. E se todo o olhar é dom e decisão nada obriga a que se vergue ao mutismo do poder. Nada a nada obriga: o amor fará sem caminho sem rumor de corredor ao arrepio da intriga. 7-2-2009
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O género H. As casas escrevem-se umas sobre as outras - para ver subir a construção a mão da mão cavou aterros e fez de ossos e barros alicerce. Aqui na quietude dos lugares onde se é cova e ovo equilibrado em alto ramo, eu tremo com a terra, isto é consigo pressentir seu movimento em torno de uma estrela e de si mesma. E posso declarar que o pensamento só salta de cabeça momento após momento porque salta como se como se já como se não houvesse chão. 8-2-2009
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Em lugar de saber mostrar-se como é pose e até postura mais banal entre quem se vê extinto ou se crê eleito por uma selecção sobrenatural, o monstro apenas diz: «Vem olhar para o que eu não tenho e é isso que tenho para te mostrar» Lerdo e lento ele é grosso fio de sangue escorrendo sua escrita curta na parede ubíqua na parede bruta que a mão acanhada acaricia E seguindo o exemplo dos animais de tiro ele puxa ao tempo que escreve riscando ao tempo que puxa Então em vão se lhe pergunta qual o acto exacto que no labor da atrelagem sem vendas nem emendas executa O monstro a si mesmo ordena as tarefas para as quais ninguém recruta - ele ignora o que acontece mas ama de um amor insano o óbice que lhe faz frente o estorvo que atrai e arrasta e tudo quanto se roga mostrando a que ponto passa 9-2-2009 23
Cerâmica No tempo em que os habitantes do crescente fértil misturaram o barro das margens com o suor dos leitos transbordantes, e moldando essa massa de meiguice dela fizeram ora figuras, ora vasilhas, ora formas como a ânfora que em si confundem as duas qualidades de continentes e conteúdos, uma história começava a ser contada - a da imagem de sua origem de seu paradeiro e daquilo que só há quando existe à imagem da imagem. Tenaz, a imagem da imagem colou-se às fibras da carne e verteu-se no tutano dos ossos, chamando a si multidões de servos e matilhas que mordiam as canelas de quem procurava água e argila nas coisas úteis, nas coisas belas. Por isso não fomos figurantes de um encontro, e não sobram pedestais ou pés de barro ao nosso amor em tumulto. Tão-só a capacidade de ser tema de insulto e teor da dor até ao bojo. Até ao beijo de nos bebermos muito. 9-2-2009 24
Os movimentos involuntários Entre a casa pública e a praça privada estende-se um texto que não lerás - um texto triturado contracção de contracção deste músculo iletrado que solta garras e amarras. Mas que tempo é tempo teu onde só cabem as regras da tua pontuação estrondo, estouro e estampido, e longa detonação? 10-2-2009 Quando desenhavas e a boca te pendia de uma infância cansada - isto é: ainda por usar quando eras esforço e faca escondida na liga e trajecto de projéctil porque os polícias e os ladrões dormiam na mesma cama, a tua, esbatendo-se o corpo neste outra como e onde se abre uma trouxa e 10-2-2009 25
Polvo e Púrpura Essa expressão «pôr uma pedra no que aconteceu» parece em si encerrar o segredo da parte fraca em praça forte e mais alargadamente o lado enxuto e oculto dos que escrevem a história de mãos limpas. Os que chafurdam, os que não se espantariam quando a excepção os abraçasse e sentissem a regra como freio nos dentes mais não podem do que colar o ouvido ao chão como a pedra consente em carregar todo o peso do céu para assim se tornar contrapeso da leveza. Por vezes um bicho pequeno - pardal ou borboleta consegue contudo recordar-nos donde o olhar não vem onde o olhar não vai no instante em que se pousa. Então a pedra ora rui ora descola e sua forma bruta só revela uma fala inconclusiva toda ela. 11-2-2009 26
Le palimpseste quelqu’un d’autre parle à quelqu’un d’autre et par-dessus cette parole qui tombe d’un murmure de mur je demande à tenir ta main et je tremble comme la flamme qui met le feu aux livres 12-1-2009
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Aporia A criança pára para ouvir porque a sua orelha mais do que nunca fala. A criança estaca no centro do pátio cinzento de onde parte o seu entendimento e dá consigo a cismar que o pé tão lesto em coisas de jogar e sempre pronto a fazer rolar despojos da realidade há muito que magoa mortalmente a pequena bola de trapos cujas costuras desfeitas já vomitam farrapos de farrapos. E é essa pausa que faz carburar a ideia de máquina do mundo como uma canção tão curta da cinta para cima que impele a fechar os olhos e a procurar não o paraíso mas o inferno perdido. 12-2-2009 28
A noite mergulha sua mão indissolúvel num viveiro de beijos muito frios. A noite sem noite após o dia sem dia a custo sorvida e cuspida no rodapé das ruas. De que lado vem e tem lugar o que é vinda e vaivém e vulva, meu bem amado? 13-2-2009 Ta vue qui baisse? como algo que se sente visto e perseguido isso que em ti é vento arranca isso que em ti é véu sobre nudez rugosa nodosa de floresta essa esta onde nem cheiros nem caminhos bifurcam pois é esta mesma que me mostra a hora intensa em que se deseja olhar a fruta e não comê-la 13-1-2009 29
mais do que eu terás sabido o lugar de ler entre vigília e sono o bosque ventríloquo da insónia e o machado cujo gume mutila uma mão sem dono mais vezes do que eu terás apertado o cinto e a cintura e até esse ramo de flores faladoras das horas murchando mais vezes melhor foste multidão e eu ponto negro, apego ao desapego e des aparição 13-2-2009
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Frente a frente A paciência é o defeito o efeito de quem escuta com o pensamento à frente e o coração rolando como lata a pontapé logo soando a pergunta inconveniente. Se o horizonte fosse uma montanha e a montanha um tapete enrolado ela que no olhar a ti se junta estaria tão-só à mercê do que dizes e não do que calas. Ela estaria à janela e não no exacto meio da ponte entre este e outro horizonte com o rio a passar-lhe entre as pernas. 14-2-2009
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uma vez mais uma ideia sem maneira transbordando do peito que asfixia amarrado ao espaldar de uma cadeira aprender mais uma vez contra natura a arte de conter respiração pois que a dor se derrama na lonjura finar-se confinada à falta de ar sabendo que outra ideia a tua se pratica no pulsar na multidão e num abrir caminho entre gente tornando a tua ausência tão presente como a mais requintada solidão fechar os olhos e mais uma vez ver esqueletos de escadas que se encostam a uma parede que não pára de crescer 15-2-2009
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Meu amor se fechaste a porta e paraste os ponteiros para dar corda às tuas pernas, entra então pela janela como o sol que lambe os dedos não sei se os meus se os teus manuscrito flutuando sobre gralha riso de improviso e de estrela a mais próxima 16-2-2009
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No limiar da tarde do ser tarde e nas bermas dessa tarde derramada em planura mole como obra de uma deusa desonesta, eu não sei onde encontrar-me pois era essa a tua missão longa e secreta. Abraçada à ampulheta, penso que não basta morrer. Agora de quem morre se exige que tome conhecimento ou talvez apenas consciência da luz mortiça que escorre das coisas morredoiras e do pano de boca que apaga a chama e do arrependimento de quem ama. Esta seria a história empolgante da qual não desejo conhecer o fim único. Por isso a leio ao invés da maré de páginas e são outras história que se soltam quando eu não salto entrelinhas mas vou soltando lágrimas. 16-2-2009
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O sândalo das harpas do rei Salomão Subindo ao mastro fumegante o mais jovem marinheiro avista terra mas o seu grito só aguça o apetite de quem sentenciara devorá-lo. Esta história, sem outro enredo que não o apetite, passa-se ao largo do meu país com músicas marinhas na ribalta e sons da terra nos bastidores. Mas esta não é um história indigesta ao que me dizem. Os afins do grito do defunto rentes a si mesmos, juntaram-se para contá-la, olhando fora dos olhos, falando fora da boca. E atirando barro à parede para ver se ele cai e aplaudir se ele cola. 17-2-2009
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Adormeci na boca do lobo quebrada e quieta como vagão descarrilado entre desejo e deserto. Mas a essência do amor é ser contrariado. Por isso em secreta sede hoje desperto. 17-2-2009 O misantropo na casa vazia e seus fantasmas amestrados «Não acabarão nunca com o amor, nem as rusgas, nem a distância. Está provado, pensado, verificado. Aqui levanto solene minha estrofe de mil dedos e faço o juramento: Amo firme, fiel e verdadeiramente.» Maiakovski Da palavra intrépida estreita estrita que aconchegavas ao peito como segunda pele e rasgavas violentamente como camisa nova, 36
fazes agora uso duplo enquanto as frases ternas e intrusas que te forçavam a abrir ou arrepiar caminho as tomas como efeitos e enfeites de uma romaria poeirenta onde és o santo o culto e até o peregrino. Nem santa, nem milagre da casa, eu te espero, palavra ulcerada e sangue nunca seco, meu amor. Porque os altares do mundo foram elevados para os homens terem medo da sua sombra, para calçarem as andas das frases já feitas para não sentirem o céu álgido e a aspereza da terra. Para não sentirem a incerteza originária do sexo e da morte e a dor perguntadora que uiva mais alto do que a sorte contra o padrão contra o plinto contra o pilar e contra a invenção das verticais onde só o poder respira. «Amar não é aceitar tudo. Aliás, onde tudo é aceite, desconfio que haja falta de amor.» Maiakovski 18-2-2009 37
Há quem jure que um dia sentiu crescerem-lhe pernas e asas dolorosas. Tremer é lutar contra o calafrio... Como se combate a dor de ser chão quando se é rio dentro do rio? 22-2-2009
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Pesadelo Estava no meio da rua eu e a rua nossa. De súbito não podia avançar e logo vinha um carro que em vez de abrandar me atropelava. O automóvel branco parava mais abaixo para me socorrer. Porém eu levantava-me do chão nua deixando meia dúzia de roupas espalhadas pela calçada. O motorista − eras tu, meu amor − chegava à fala comigo. Perguntava-te: «Por que não travaste?» Respondias-me: «Porque sabia que tinhas sete vidas.» E forçando-te a rir como se cada risada fosse uma desculpa sugerias: «Outra põe-te lá outra vez, esticada, ó velha gata. Ainda hás-de esticar o pernil e perder a passarinha pelo caminho se a gente não der um jeito nisso...!» 22-2-2009 39
Mãe-de-água Anda mão anónima a envenenar a fonte e em corpo de vestíbulo tu tentas caber numa interrogação dando ênfase ao tom e desligando o som. Um pouco à imagem daquele que fez deus e o homem à sua imagem mas não dá respostas... Apenas fôlegos e feições sopros e aragens fulgores e faíscas raras fezes e mais curtas pistas. Anda mão anónima a envenenar a fonte e a fonte é um lugar perigoso para cogitar ou matar a sede. Com a cabeça debaixo de água busco a luz da narina e o escuro da pupila tão antiga. 22-2-2009
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Taberna Um operário de construção civil todo manchado de tinta e cimento das grossas botas aos cabelos raros e grisalhos olhou-me com os teus olhos de azul imperdoável e delicadamente pediu desculpa porque ia sentar-se de costas para mim. E eu percebi que, de facto, os anjos não têm costas mas viram costas sorrindo na hora de matarem o bicho. É neste desarmamento de amor que enfrento a morte mas não ignoro que as coisas de ver e ouvir de cheirar, comer, tocar são oferendas de amor que me sonegas depois de me teres roubado o sono quando eu dia após dia te ofereço o despertar. Achas que é catástrofe ou avaria − perguntam ainda as asas antes de deitarem fogo às palavras e reciprocamente. 22-2-2009
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Quanto mais ardentemente me beijavas mais eu sentia que as pedras nos olhavam e só nessa altura sabia que elas tinham olhos. A minha espera salta abismos e alturas desumanas. Por que colocas tu a barra tão alta e tão baixa, meu amor, se eu conheço os olhos quietos dos calhaus, as goelas dos abismos sonolentos, o desuso acerado dos teus cimos? Preferes tu viver na ignorância e na ginástica desse dia eterno em que a luz das estrelas já se atrasa? 22-2-2009 cheira a estevas na colina e as grandes corolas abertas - dessas que nascem amachucadas como olhos sem pálpebras agarram-se à menor aragem para serem tão-só odor e visco. as palavras de amor insectos pesados delicados colam-se à ausência de tecto e todo o lugar onde não estás é uma fonte que se cala no deserto 22-2-2009 42
A rosa só de espinhos A criança empunha armas demasiado pesadas - do tamanho de pessoas bem possivelmente e ignora no entanto se poderá amar seres parecidos com gente. Por isso se agarra às armas. A criança com razão se sente a mais. Ora inábil, ora perita, a criança também se sente a menos e aí começam os estragos do bom senso. Mais eis que um tempo composto se atrela ao modo das máscaras e o infinito finito deixou de a intimidar. E a cada instante trai quem ama gratuitamente quem apesar de nada quem ama apesar de gente quase toda ela armada. 22-2-2009
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A rosa de um só espinho Um dia por distracção eu serei peça breve e leve do teu anedotário e falarás de alguns erros meus com boca de quem rilha maçãs sem fome para conquistar um minuto de complacência alheia ou pior tua. Choverão brisas de pestanas. Para completar a tua fala espirituosa, dirás que me infligiste o suplício dos braços abertos e toda a gente te abraçará porque todos sabemos, remota e suportavelmente. de que falamos quando falamos. 22-2-2009 Camarada Eisenstein Senti o apetite dos seios pousados sobre a mesa e fiz o gesto do pescador que me remenda as redes com o fio do pensamento. 23-2-2009 44
NADIR 02-09 Hora de choro no pomar Hora de baba e ranho na pastagem Hora de não ser senão lugar Contratempo na vez de uma viagem. Contra-senso por extenso No teu caderno de bordo. Sou transtorno - assim acordo. 23-2-2009 O amor em seu início e princípio quebra o lacre dos lábios e quer ser grão na rotina carnal de premonição. Entregue em mão própria e logo devolvido perpetuamente entregue e devolvido como uma escrita de mão esquerda, o amor é contíguo os corpos celestes que tropeçam sorrindo, roseira em rasura e rosa sem mistura que obstinadamente se desfolha. Seu caule treme como uma escrita canhestra e porque treme dura. 24-2-2009 45
toujours déjà toi pas encore moi Quando os meus olhos tocarem de novo os teus, nem ar nem lugar nos hão-de separar porque a arte de fazer desaparecer possui o seu reverso imprevisível. A companheira solidão terá outro rosto, saberás quantas presenças arranquei às máscaras e que das minhas muitas perdas ou ausências fiz dragão dia e sereia noite para arrombar o casco do navio negreiro e arrancar um sorriso verdadeiro à proa tão prudente da melancolia. 25-2-2009
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S. del desierto entre relógios íntimos e químicas cómicas, montado em sua coluna, semi-falo, semi-falas, proferes o teu sermão sempre de costas viradas não virei de pastorinha nem de cordeiro ou leoa nem mesmo de satanás disfarçado ou revelado em carnes de gaja boa serei só defecação daquilo que a tua ausência por excesso se insinua 25-2-2009
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Com zelos de gazela que rumina e amuos de menina já sem mimo, tu habitas a casa escura e bailas numa luz aflautada apesar do sol já ir tão alto após a prosa gutural da noite. Há quem descreva gaiolas douradas notando apenas aquilo que se agita entre as grades mas, sabes, eu tenho ainda na boca o vinho velho da tua língua e se viesses a tratar-me como uma falas lembrança, uma correcção a vermelho no timbre da voz, eu morreria tão-só desse desgosto de dares então por não sido o teres estado mal disposto o teres ouvido lavado e uma sereia ao pescoço. 26-2-2009
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Le cyclamen rose A conversa não tem assunto é apenas vestígio de um falar, pegada de uma presa pouco astuta esmagada por sinais de força bruta que impelem ao desencontro onde houvera um lugar. Deixaste-me pois à guarda de uma certa carcereira sempre à escuta dos meus passos para tornar corpo e fato desta longa reclusão cada vez mais ajustado ao tempo de abrir os braços. A conversa não tem rodeios é apenas anatomia da frase demasiado curta. 27-2-2009
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O regresso pertence ou não ao olhar de quem o colhe como um fruto que cegou à força de ser olhado? O regresso quero dizer-to neste chão que treme porque espera e desespera pela queda das palavras. O regresso e agora o incerto é o mais certo neste sorriso tão perto de soar a descalabro. O regresso onde me acabo, por seu começo me medes tanto mais é desejado quanto me calas e pedes, meu pássaro embriagado por frutos ao sol e à sombra das mais espinhosas sebes. 28-2-2009
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APOCALYPSE COW Centelha ou boato ou algo que se acenda nesta cela com a forma de outro corpo onde o presente se entenda como oferta inaudita e já não mera lisonja que a nada obriga. Todo o fel fervendo em mim se faz escrita contra a secura funesta que a esponja não passo nem pela testa. Se a feitio e feitiço me forçaste, amor, sabe agora como a bem se força o osso até o mundo caber no nosso abraço. 1-3-2009
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ORBE Não é mole a curva ao contrário da recta átona e frouxa que dá força ao conto do vigário - quase frota parada em terra grega fumegante cinza negra sobre o céu por um lapso inevitável mais distante. Não é mole a curva lancinante embora difamada em tom de graça - cada arco de seu imaginário saúda o lugar real onde a palavra mora a toda a hora. Nassa molhada entre a dura rocha o meu corpo treme de alvoroço sacudido em arabesco até ao osso pelos peixes inquietos dos teus olhos. 2-3-2009
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Há palavras que brotam de alambique outras são de mosto, ainda fervem no açúcar mais escuro da adega. Há palavras de amor tão belas como bichos lavando seu focinho. Há palavras de reis apunhalados tingidas de suspiro na suspeita de reinos cobiçados por vizinhos. Há palavras relutantes, traficantes, confiscadas a manias e maneiras. Mas, sabes, meu amor, há palavras verdadeiras capazes de roubar para comer. 3-3-2009
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Hospital de bonecas Parece que até parece que é quase já primavera quando a conversa arrefece e o céu tem a brancura dura, ácida e precisa de uma cebola em camisa. Estou tão calada e tão calma neste corpo em sobressalto que ao dever de ver eu falto e falho no que há-de ser e me tomará de assalto. Porque a criança que eu tinha tão grande dentro de mim por amor a maltratei até ficar mesmo assim grande de mais e mesquinha. É primavera já quase e eu só quero por ternura usar roupa até ao fio e viver na fumarada de uma rua muito escura. Dentro do corpo um arbusto em combustão permanente com o seu único fruto tão pendente e dependente olhar pesado e doente com que me escuso e me escuto. 54
Penso no poeta gordo cujo caixão rebentou de palavras que eu não sou e me servem de tributo. E porque penso não estou à mercê de ser apenas. 4-3-2009
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Corredor Eu causo má impressão. Tenho a cara pintada de gritaria e aquela tristeza do rufia que abana a cabeça antes de galgar o arame farpado da vedação quando só lá vai buscar um sítio onde se deitar. Eu causo má impressão por essa obra desgraça que consiste em não causar e agir na consequência ou seja na cessação. Um sol de mediania traçou à volta da cama uma trincheira tão funda dessa guerra de facetas de faces e de facções e outros encantos quantos que me recuso a travar. Eu causo má impressão nos lugares em que intestino me engulo em vez de vulcão inactiva porque viva sacudida porque morta. Sabendo arrombar a casa, quem por amor bate à porta? 5-3-2009 56
Fui caindo nas tuas armadilhas, a cada emboscada do teu sorriso escuro e na conspiração contra a claridade de uma história de cordel a que outros chamariam natural. Fui caindo tiro e queda na tisana azul azul - fui ponto negro, e mosca frouxa dessas que lamberam toda a merda. Perdi-me numa mata tão pequena que não serve de refúgio ou de recuo - ai corpo que só caminhas por te sentires inseguro num texto já sem palavras todo feito de entrelinhas. Perdi-me desembrulhando o presente inesperado como criança brincando ao traçado imaginário de estradas que não acabam. Sujeito súbito e súbdito num texto sem soberano, e movo-me num lugar onde me olhes de novo. 7-3-2009 57
As palavras do outro mundo Existe a retórica do embaraço a palavra baixa ao chão e troca o passo. Se aos muros me ofereço flanco e face, sou pura transeunte. E em toda parte suspeita de pressentir o que sinto de precaver o que causo talvez nuvem descabida. Porém até os olhos derretem quando céu desanuvia - qualquer dia um dia a menos, qualquer dia. 7-3-2009
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Eis a parede amnésica. Alguém pintou por cima. Alguém fez desaparecer o que estava por detrás o que estava pela frente. Alguém formulou de outra maneira uma pequena pergunta de algibeira. Alguém respondeu com manhas de manhã indecisa e uma luz de entranhas cavalgando um ciclone ou um recado. Alguém foi apenas mirone e descarado - doa a quem doer o ser olhado. Alguém me disse que não disse e eu entendi que percebo melhor a revolta porque melhor entendo a servidão. 8-3-2009
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Filhos de Seth? Tapaste os olhos contaste mil a mil ou talvez menos e não me procuraste como naquele jogo. Nem logo nem agora, deste um passo além da árvore onde encostaras a cabeça. E nesse lapso de nunca, nessa pressa, quem se esconde ainda? Ou terei sido eu que a teu pedido contei de mil em mil ou talvez mais e quando abri os olhos soube não estavas escondido. Caminharas sempre em frente - eu que te buscasse e te chamasse até que o caminho ou a voz ou o canto ou o próprio desejo de floresta se apagasse. Tentei fazê-lo e depois vendei os olhos para que o jogo do jogo ali se fizesse inversão de regra. 60
Se as palavras falassem com o sotaque das pedras, e as pedras com a pronúncia das palavras outra seria esta história. Ó força de contar, ó força de calar, cambaleante, se muito te obstinaste, chora agora. 9-3-2009 At first sight and at last sight Durmo em maus lençóis e neles faço sonhos onde um anjo macaco se despenha de seu galho único de sua árvore estranha. Como quadro deixado em cavalete o pedaço de mundo que me resta é um ninho de poeira onde o sol quente e delinquente já não brinca. Ó euforia permanente de ser tinta ó suspeita a cada instante de ser extinta, - aqui me tens amor crosta descolando de uma tela toda ela de tempo em cicatriz toda eu ela. 10-3-2009 61
agora que não me olhas nem me tocas em manhã monossilábica nem uma brisa rabugenta te leva até ao fundo da rua e de mim que me ficava toda eu faca cravada numa mesa baloiçando para o lado da surpresa, as palavras cépticas, quase assépticas, soam a regra de cortesia e embargam a avalanche do que houvera de ser dia. perito somente nisso, arrancaste a faca - seu gume embotado de tanto vacilar com um alívio de crime sem arma e nariz de quem não fareja senão a pista mais quente. porque não há bichos antigos ou flores de outras eras nessa montanha russa, apenas vertigens entre vírgulas um ruído de metal e osso e um corpo que se enrola como estola de oficiante à volta de um alvíssimo pescoço. porque, na ausência do que mexe, há sempre um mexerico que rasteja, e, à falta de animal que seja enigma, há sempre uma mascote ao teu alcance ou tão-só qualquer coisa que se veja. 62
será que ao viajante não sobeja a virtude do que é vulto até que uma luz de injúria o despe de toda a sombra? 11-3-2009
os olhos temerários montam por vezes dois cavalos ao mesmo tempo: a besta trémula que lhes serve de jaez e também o que serve de paisagem onde já o pasto não recua e as lágrimas trotam se empinam caem sempre em posse de outras terras. fecha-me os olhos, amor, se por amor te apeaste e reconheces mortalha nessa forma de lugar onde se troca de bicho e se pedem mantimentos para seguir viagem. 12-3-2009 63
a última porta aberta lança uma sombra de abutre tão acrescida de morte que a rua fica às escuras até as pedras das casas parecem leves e duras e as janelas mostram garras quando passam criaturas para baixo disse alguém todos os santos ajudam mas os diabos também e as rosas em seu poente para a pocilga se inclinam pois a ninguém se destinam será flor, será calhau, aquilo que o meu amor escolheu para derrubar o que de mim se avistou em hora de me apagar? 15-3-2009 O ciclo dos jardins Fazem batota os jardins. Ontem sopravam em coro com buzinas da ambulância e eis que agora florescem no segredo bem guardado de o fazerem há pouco 64
talvez daqui a bocado. Apenas cornos e antenas não se deixam enganar pela mudança de ementa de pólenes, cores e aromas pimentas a flutuar em navio embriagado. Nas vísceras dos jardins imagino escravaturas porões de gente atulhada remando contra a tensão desta terra de farturas em si mesma encalhada. E porto sim, porto não, quem no porão se reveza será somente uma parte do lixo descarregado quando a força da raiz à flor não for necessária. E porto sim, porto não, do músculo facial, do fémur de uma cativa restará a podridão não sei se morta se viva. Ó fruto doce e leitoso sê pois escrita da lama e do pó pois toda a origem se extingue em desamor de jardim algures dentro de mim. 14-3-2009 65
No fragor da oficina já deserta sopra o fole da Primavera descompassado como o acordeão de um cego ou o riso escarninho que quem troça sem pudor do ser que agoniza ali ao lado. Assim se sabe que se pode morrer com a barriga a crescer de música, sob o manto puído dos perfumes que não pedem licença, morrer assobiando para afugentar o pensamento e essa dor cada vez mais densa - pobre caixa de esmolas, a dor, cheia de trocos e de moedinhas negras que toda a gente alegremente já dispensa. 15-3-2009
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Como se fala com o outro no seu ou meu outro mundo? Nem ilusão de haver tema, nem prestígio de haver ovo, antes do cu da galinha... Como se fala como outro, deixando cair uma a uma as malhas do meu trabalho de tanto fixar a agulha? Fala-se agora mordendo a língua como uma louca e toda a água me é pouca para molhar as palavras fustigadas de deserto. Veja-se então a palavra que me chegou amolgada como lata já rolada por biqueira de sapato. Pois é de amor que trata mas não daquele que toca instrumento virtuoso. Visite-se a catedral óssea, carnal, arquejante, da barriga da baleia. Mas não se troque a palavra pelo ouro de uma ideia de pecado original. 16-3-2009 67
Essa luz de estádio ou essa mesma de fuzilamento ao romper da aurora, essa luz da maioria, essa luz de arrancar os refugiados ao seu antro, essa luz de ninhada a abandonar em deserto, essa que está sendo e solúvel em mim me arrepia e me arrepende como simples hora em que a criança desiste de aprender Essa podia mas não porque me procuro no curso de água até ao limite da asfixia. Amo porque não me julgo a salvo. 17-3-2009 perdi-me da nascente, meu amor, sou frouxa ninfa aqui me tens em falta e erro criança gigante e mutilada a menos robusta da ninhada aqui me tens forma sem fundo e ninguém que lá me procure por desleixo ou delinquência ó meu arco de violino e esse cabelo de seda que arranhava a sonora caixa do segredo 68
ó minha alma vem e soa agora porque sua 17-3-2009 A criança gigante leitora em sua jaula passa as noites em claro. Na pauta do escuro ela alinha nuvens de farda e nuvens de fato-macaco e no cimo do andaime coloca uma cantora virtuosa. Elas sabem que tu tapas os ouvidos e trepas, trepas, como vinho à cabeça da bebedora. Elas sabem pelo menos uma coisa resgatada à música vinda dos cumes e dos fundos: alguém que deseja desvendar um enigma não o faz por si - porque não é apenas seu, o enigma. Quando esbraceja, a criança gigante fica sem braços. A fera mora fora da jaula e o seu faro fica sempre rente ao texto como rentes à carne os seus passos. 18-3-2009 69
BODLER INFINITIVAMENTE Há o olhar que segura e o que deixa cair ora aquele que sorria ora quem ia sorrir. Há o olhar que arremessa o olhar que precipita muito olho pouca tripa e treino de seduzir. Se me fechas numa página noutra haverei de me abrir - moro neste fim do mundo onde as almas não se purgam porque dançam sobre brasas frente às muralhas de mar. Não moro onde agora morro porque morro sem morada como a tua mulher-peixe ao mar ausente encostada. 19-3-2009
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por muito que venha de lugar distante não pode o canto ser longínquo. ó bocejo repentino como reza ingénua ó sombra da terra sobre fase de lua elipse ou eclipse de uma cara-coroa toda tua ó cinza de borboleta tombada dos olhos e dos ossos ó rua das roupas que deslizam dos ombros ao chão ó rua onde somos nus ó impossível inocência das mãos em seu dilúvio lágrimas nem contê-las, nem contá-las. são frígidas e ardentes são palavras escalavradas precisas e intermitentes. 20-3-2009
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ESCREVER MORRER Agora uma pessoa é um pensamento e um pensamento é uma multidão. A pena branca mergulha no tinteiro negro com o único fito de contar esse exército vencido indisciplinado que se retira devagar. Agora é possível conter o mundo dentro do peito, refreá-lo com uma longa carícia sem presumir quem vai rebentar primeiro. Pelo canto do olho se abocanha pelo canto da boca se escarrou. E a mão de repente se faz garra quando a nada se agarrou. A pena branca já molha na tinta talvez venosa arco de céu e de charco que não pára de alastrar. Escrever acusando as baixas em estranha forma de prosa. 21-3-2009 72
Altezas Na boca do novo lobo buscaremos o rascunho e o coração do cordeiro. E do jogo de gengivas de um sexo menos profundo nascerá o texto mudo, grito e já não escudo, que tira ontem do sítio e amanhã do lugar. Se não podes reflectir - porque a letra regular reproduz de boa fé mais um rufar de tambor talvez te reste o desejo de voltar a conspirar contra o mundo adormecido e o rebanho reduzido à pessoa do cordeiro na pessoa do pastor. Ó linha entre céu e terra onde repousa a memória do que já foi sacrifício e agora se chama história por vezes história de amor... 22-3-2009 73
Obscena Ignoro também se cheira a tinta ou talvez a cor no desenho de trincheira que a primavera cavou - enquanto o céu segurando entre as suas mãos vazias alguma cabeça imensa não pensa, só se atrasou. Legiões de velhos anjos e de anjos de avental vieram medir gritando as marcas de profundeza desse poço fora de uso onde o corpo foi lançado. Gritam o tempo que faz gritam o tempo que leva gritam o tempo que traz. E a terra inteira fumega por cada tempo ser morto e não apenas fugaz. 22-3-2009
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Estive contigo em sonhos numa rua ora estreita ora larga que me atravessa por dentro. Tu continuas o teu caminho e eu sou mancha de sangue pisada - n贸doa de sujar o mundo, apenas. Quando fecho os olhos, penso: que olhos fecharei a seguir a estes olhos? 29-3-2009
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O anti-augúrio Sol nascente em vão de escada: ouço sem querer a confidência de quem virá dar à luz no lugar onde se esconde morrendo em sombra aumentada mesma e sua. E sem querer sou tecelã de passos que se cruzam e já não de telas retesadas e já não da brancura de lençóis. O escuro vai partilhando comigo duras migalhas. Ouso pouso o pé em tábua solta entre palco e bastidores como se a vida inteira não servisse para saber em todo o caso caminhar estendendo o braço falar às apalpadelas. 29-3-2009
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BORDER LINE Lá no fundo do meu bolso encontro um lenço molhado. Olho tanto quanto choro - já não me lembro de olhar apenas de ter chorado. Lá no fundo do meu bolso há um lenço amarrotado. Peço menos do que dei - não me lembro do momento em que me foi emprestado. Mas vasculhando no bolso vem-me à memória um vazio cuja cópia se rebela contra seu original. Fica-me larga esta roupa onde me espalho e me espio visitada ou visitante. Imito uma derrocada até me sentir ruína sobre poente escarlate - carne recém-esquartejada ou alma sem comprador impura e simplificada. 29-3-2009
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Pira Acendo este fósforo como a menina febril a quem já só restam três e sei que a noite acaba e eu continuo a noite acaba e eu continuo lá fora a noite continua até acabar comigo. 29-3-2009
Baal Não, não distingo as feições dessa pessoa a meus pés. Caiu de borco e tem a boca cheia de areia como náufrago em forma de ampulheta em praia de mim desejo em praia de ti deserta. Apenas levanto a voz e me ouço perguntar: «Qual a ideia primeira apanhada como lenha e atirada à fogueira?» 29-3-2009 78
Facção Há muito alguém me algemou ao lugar onde não estou e o meu olhar confinado a um raio de cenário que se estreita como abraço vai sendo obrigado a ver. Responder ao que se espera enquanto se vê por onde ou esperar por quem responde? 29-3-2009
O lutador antes do assalto O pai murmura: façam de conta que aqui não estou. Mas acrescenta: faz-te à vida falando da outra vida. Sê jogadora e aposta no número mercenário que vende a forma a uma causa. E chora como mulher para seres humanidade. 29-2-2009 79
O que é um sonho? Vinhas como a tormenta sem pairar. Vinhas arredar o pensamento de sua planície e de sua cilada. Vinhas como derrota de montanha ébria de desejo de se erguer para de novo ser esmagada. Vinhas mas eu não estava acordada e fazias-me sentir simples delito de opinião ou mascote de outra perdedora num jogo de cativeiro para lá dos muros para cá de mim. 29-3-2009 Dizem que as palavras não têm dono mas eu acordo em sobressalto com dores nas palavras - as que me foram roubadas e devolvidas. Elas mudaram em suas inflexões, não sei como fazer para que soem carreguem a surpresa dos silêncios e queiram ainda ser ouvidas. 29-3-2009 80
Ossário É tarde cada um vai para a cama com a sua verdade. Desejo ver-te nesse instante e ser briga de criança ruidosa. Ver-te pedra e palavra uma após uma levantada - lembrar ou vislumbrar outros vermes, outros versos, na tua língua subitamente desconhecida. Desejo ver-te e que um rosto se desenhe entre as minhas pernas. 29-3-2009
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A penúria como é sabido engorda o tempo. No desacordo do acordar, uma parábola muda se desenha no tom mais céptico e cru que o corpo pode escutar. E sendo cedo, não sendo certo, o corpo consente em ser despido e descarnado por quem o ofende nesse lugar. Não ter lá estado já lá não estar. Eis um relativo absoluto. 30-3-2009
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Blasfémia Olha, meu amor, este corpo a tremer mais do que pode. Olha como se entrevisses uma casa e a sua arrumação inquietante no instante em que vai ser bombardeada. Olha como se remexendo nas cinzas sobre cinzas rabiscando procurasses pelo tacto o que lá resta: anunciação estranhamente familiar ou familiarmente funesta? 31-3-2009 Remendando as palavras da indigência e respiro fedores de floresta virgem como se o tecido letra a letra me faltasse ou mesmo a linha ou mesmo a mão ao repouso amputada a mão na mão de quem larga pobre amarra. De que maneira, meu amor, verei a luz neste império onde o sol já nunca nasce? 1-4-2009 83
Falas com palavras quase neutras da roupa que cresceu com a criança em sua derradeira eternidade do falo inclinado sobre a flor em seu ofegar de perfumes do amor para consigo mesmo ingrato em seu ar de família irrespirável. Falas com palavras quase neutras como se diz de certas cores ou países. Uma mulher soltou o seu cabelo e o seu violoncelo para te ouvir. Falas porque ela não pode fugir. 5-4-2009 A ANTI-COLECÇÃO Um ninho de colibris nos teus cabelos Um coração de boi, sangrento e ruminante, no teu colo Os teus pés caminhando em vereda desfocada Os teus ombros e o sol que atrás lá nasce As tuas mãos tensas como pássaros abatidos a tiro O teu olhar de mudança de clima As tuas ancas de minuete em matagal O lírio lunar do teu umbigo O teu sorriso em eclipse parcial A tua boca a boca O teu barco a barco 5-4-2009 84
Hei-de pousar nos teus olhos de iluminura em chamas contar de cabeça todas as curvas e ângulos como cadela de cego numa manhã mal ensinada numa manhã de sol violando sepulturas mortos e vivos saídos das tocas numa manhã de sermos sangue lento das mais impacientes criaturas. Hei-de pousar nos teus olhos de texto circular nos teus olhos de tinta em lusco-fusco covas de bicho acossado onde me entrego e me assusto e à luz carnal do poente em contagem crescente e decrescente caberei num pensamento inusitado pouco a pouco muito a muito lado a lado. 5-4-2009
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A cativa levanta a persiana agora mais pesada de um texto que se espelha e se revê e se vira para um pó de fim de estrada. Será que olhamos para ficar mais perto ou mais longe, meu amor? Não queiras tomar-me em tuas mãos como relíquia que logo se desfaz. Agarra-me duvidando de tudo quanto pode o coração. Só assim ele é capaz de bater fora do peito e rolar até aos pés que não voltam para trás. 5-4-2009
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Desde sempre e para sempre corres no meu sangue como um presságio de paisagem e esse palpitar que sinto na nuca é ainda a memória ofegante de seres e sombras que fazem amor em nós, é ainda altitude e rasura e torso nu em sopa de suor - encore, encore. Podes ser em mim como não vês de tão perto e tão longe me vieste, razão amante, insegura, do teu olhar que me despe até não ser sepultura. 6-4-2009
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Crítica da razão amorosa não estares, não vires e não veres é como se por desleixo eu fosse apanhada em falta com um pé na corda bamba que me serve de horizonte e tomada de tremuras me confundisse em desculpas de olhos fitos na sombra que as palavras de antemão espalham no chão em redor talvez no céu de uma boca num arco de sobrancelha na solidão de uma roupa na nudez da multidão me devolvas ao meu vulto onde te escondes te escuto onde te mostras me acendo e só de chamas me lembro chamando pelo teu vento nesta lenta combustão 7-4-2009
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escrevo com palavras pendulares de bagagem passada a pente fino - quem diria que jĂĄ nĂŁo me usam as palavras as roupas e tudo quanto se dobra neste jogo do amor contra o destino? escrevo com palavras mais pesadas de viagem que ficou pelo caminho - quem diria que me acusam as pausas os fardos e tudo quanto deflagra procurando a mĂŁo que acende? 8-4-2009
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um silêncio carregado outro pronto a disparar - e cada instante se esgota numa imitação do caos olhar como se não vejo e ver como se não olho não semeei o que colho nem sequer fui semeada dizem que certas palavras já levam água no bico as minhas não matam sede derramam o que carregam por vezes cortam a eito atalhos onde me perco sujeito de meu sujeito cativas do imprevisto matagal talvez masmorra lugares onde amor me aperta passam por onde se morra deixando uma porta aberta 9-4-2009 Canivete suíço Num sonho que começa ao despertar transporto a minha estrela de bolor 90
até ao entardecer cuidando que poderá brilhar como luz de taberna ou de bordel. Dizem que é supérflua esta ideia de tocar naquilo que desvanece, mas eu roço a opulência dos teus lábios e a sombra azul voraz da tua nuca sabendo por defeito talvez nunca. Só por erro me torno mais capaz só por falha me levanto em recaída, não treino pirueta, nem saída, descrente pela frente e por detrás, quebrada de me ver tão indivisa. Dizes que sofres porém não te pertence padecer e se sofres de doer a quem doer é comigo que essa dor enfurecida se junta ao que nos resta conhecer: são tremuras e tremores trepidações, são noites coroadas de vulcões, são fontes onde só moram ouvidos, são mãos esfarrapadas por carícias, são vozes que rolaram por ravinas, são espelhos carregados por gigantes. São as camas de pregos das palavras. 10-4-2009 91
há coisas que viajam, se transmitem, depois de terem sido sonolentas, e quando elas nos chegam disfarçadas não sabemos a razão por que mendigam. há ramos que preferem abraçar as pedras mais rugosas e geladas uma vez suas matérias enlaçadas são chamas que se chamam e se atiçam há esperas que os deuses nos cobiçam esperanças a trocar-nos de lugar o céu baixando à terra, o fogo ao mar e cordas mais vocais porque mais tensas 11-4-2009
Às vezes, segurando a caneta, recordo tempos em que alguns vendiam a caligrafia como se vende a cara ou o corpo a um fotógrafo ou a um pintor. E penso em como nada disto encontra eco na cozinha do purgatório onde a ofensa e a defesa soam ao mesmo riso cru impossível de caligrafar. 92
Vejo ou penso isso sim portas entreabertas atrás de outras também entreabertas, sombras furtivas em paredes e mãos que só desenham depois de decepadas. Um cheiro a dormitório algo vibrante como flor na lapela ou na boca do caminhante percorre as ruas desertas, as ruas arrombadas. Raras as dádivas e mais raras ainda as crenças arreigadas - porém muitas calças que se baixam perante a visão ou a promessa de cenas cada vez mais gagas. Onde então o lugar da escrita nesta negra submissão da fantasia à fantasia − essa ou outra − que de si mesma se retira para daí lavar as suas mãos? 12-4-2009 93
A imagem é fugaz mas toda ela se impregna do fumo feminino da manhã como anfitriã furtiva se escusa à escuta da musa e nos deixa em longa espera. A imagem é fugitiva todavia de ternura inesperada: o minotauro em miniatura fechado numa caixa de fósforos ou o minotauro possante seus cornos enredados na malha ardente das minhas cismas as mesmas. Risco um a um os fósforos colossais de uma caixa desmedida e lutando contra o cheiro acre desta cabeça chamuscada e tento remando a favor do ventos relembrar o dom da miniatura e os pequenos pensamentos que me faziam alegre sabendo-me insegura. 13-4-2009 94
Falar passear as palavras por atalhos fora das estradas onde elas se desviem de si mesmas e se cruzem com silêncios, atrevidas aturdidas ou até atarantadas. Falar passear os segredos pelas pausas nesse caminho mais curto entre sim e mim quando te escuto. Falar separar-me das sílabas e dos lábios que as soletram como se a voz fosse a chave que abre todas as portas menos esta que se despe da sua solenidade se abate mal lhe tocamos e se deita ao comprido. Talvez por isso pareça impossível de transpor. 14-4-2009
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a casa esconde e mostra as suas garras como um recado acanhado e lido ao espelho por alma ou alimária que se esbanja em ser cinza arrefecida sobre a brasa a casa, mas falamos de que casa, de ruína ou de maquette e de que escala o monstro espia a bela em sua ausência devorando a sua dor a cada sala incapaz de guardar outro segredo que não o de ser monstro em desmesura que não o de ser olhos na lonjura faz-se tarde quando a bela acorda cedo do amor sempre se diz que mata e morre com gestos de raiz que não segura porém a vida um desmentido em si procura no sopro de outra espera que a percorre 15-4-2009 mergulhado nas trevas que lhe eram já, julgava ele, familiares, Aladino esfrega as mãos de alegria e de frio, qual a diferença? pensa ele para com os seus botões embora usasse uma túnica sem botões. as trevas não eram densas, ou talvez os olhos de Aladino se tivessem habituado à escuridão da gruta à escuridão da escuta... 96
então de que valeria a claridade servil do dia a luz dos amos e dos mestres e de tudo quanto o perseguia. de contente esfrega as mãos o menino Aladino sabendo de antemão que da lâmpada sai jardim e sai deserto e a lonjura fica perto de seus olhos como um quebra-cabeças o mais gratuito e fortuito problema: a gema dentro do ovo e a clara em torno da gema. mas as suas mãos tão mornas de alegria antecipada de tristeza contornada e convicta na relativa cegueira da clausura não conseguem agora arrancar o génio ao lugar exíguo ao lugar do que é raro e só por excepção se pode alumiar. está morto o génio da lâmpada e Aladino não dá acordo de si nas trevas de súbito cerradas sepultura improvisada e imprevista. porque a sua confiança ilimitada é a própria condição de ser criança: só podia durar onde não dura. 16-4-2009 97
Bodas de sangue O raciocínio do prazer é lento uma aridez em marcha já forçada onde houvera uma alma e sua gula onde houvera uma alma e sua gala. No lugar da tua boca, uma gota desse vinho que se alastra na brancura. 16-4-2009
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Pousio porque não busco a glória da incerteza nem me deixo intimidar pela mentira não há meia verdade a que eu adira nem metade de ilusão que me arrefeça enferma de que ainda não disseste mutilada do que olhas não me vendo se estremeço agarrada ao que não prende debaixo de meus pés a terra gira são orvalhos, borboletas e cerejas são nuvens, cicatrizes e areias são ideias de calças quase rotas são as unhas e as mãos com que semeias e tudo o que pertence e se confisca escrevendo já por cima não se apaga apagando o que se escreve não se arrisca a nada 19-4-2009
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Errância Acalentas, quem sabe, a quimera de ser volátil e volúvel, de poder abandonar no assento ainda quente um lenço, uma luva, um signo urgente, um aceno, um cheiro e uma ausência, um coice leve e grácil de gazela. Mas quem passeia fantasmas pela trela não sabe se os guarda, se é guardado. Ora, no terreno ermo onde te espero, as sombras falam às sombras, as formas escutam formas, nessa terna indistinção entre o que veio e o que vem, entre a carne rosa em fuga e o osso a que se agarra. Não sei se te alimentas dos teus sonhos ou se os teus olhos abertos são repasto de uma fome que só quer ser saciada. 19-4-2009
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encostar-me ao desdém da simetria além, menos além, se nasce um dia nesse banho de sangue entre as pernas que dispõe em seu vazio as coisas ternas parecido ao poder, só quem lhe escapa morrendo ou sorrindo à socapa enquanto eu dobro mapas deste mundo de mais velhos pergaminhos te gabavas mas o sangue nem tem nome, nem tem voz nem fabrica sentido o que em nós corre entre memórias me sumo ou me suspendo abrindo as veias ao que agora não entendo 19-4-2009
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Um muro que tombou outro a crescer e um sorriso que se abriu como uma falha de flor como uma falha. Se me ouço ser chamada, quem me chama? Em que cova estarei eu já sepultada, revolvendo esta terra que me abafa? A lembrança da lembrança deixa rastos que a lembrança da lembrança não apaga. E os meus lábios estão colados ao papel quando jamais eu colei à personagem. Uma infame convenção determinou que enquanto uns tantos pensam outros agem. A verdade é eu saber onde não sou embora não convencida de me perder regressando ou abraçando este dia interminável. 20-4-2009
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dizia-se falando de pureza sem senão que as crianças doentes aproveitavam o seu tempo de retiro para crescerem às escondidas e tomarem conhecimento de coisas normalmente proibidas como o prazer da febre ou a dor da imobilidade mito, rumor ou crendice isso que às vezes se disse talvez nos dê a entender que há uma lacuna de céu que é preciso preencher 21-4-2009 agora também espio outras esperas as que pressinto noutra gente quase toda chove a cântaros como se diz nesses lugares e lá se perde algum tempo a imaginar que deve haver vida e água e bichos procedentes de uma criação que não comporta castigos ou lições o bom ladrão esse mesmo ou menos que esse falha o tiro da sua confissão e acerta noutro alvo indefinidamente 21-4-2009 103
Meu amor perfil e vaga na bainha da penumbra Meu amor baba de lua unha cravada na bruma grande sol descarrilado entre dois apeadeiros Meu amor ovulação de vírgulas sem repouso de fósseis fora do texto de silêncios descosidos Meu amor rombo no casco de um beijo em forma de barco 22-4-2009 bom dia reparaste que os bichos têm os olhos feridos à custa de tanto nos fitarem? à força de tanto nos fugirem? reparaste que o deserto avança sem que a gente por amor recue? reparaste que a taberna abriu embora não haja estrelas nem vinho nem memória de ser estroina? reparaste que eu reparo porque reparo em ti e paro para voltar a pensar paro sem poder parar 22-4-2009 104
I animais no bebedouro do poente - muitos e o sol baixando para revolver recantos sombrios antes que noite devoluta nos caia no prato como uma dívida ou uma oferta ou uma palavra de gratidão demasiado curta II ai sangue caçador que te encaminhas pela renda de veias garrotadas até que os tímpanos rebentem somando enfim este lamento a outros mais. ai sangue que lerás de olhos fechados em regos escavados por toupeiras... serás tão só leitura de mãos largas revelando esses laivos de doçura que se ocultam nas letras mais amargas III tristeza entranhada em velha roupa segunda pele primeira carne resto de festa felina sob a forma sibilina de uma carícia longa e pública 23-4-2009
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Frémito é vã sabedoria dos mais novos perdurar por vocação ou profissão e de um beijo só lhes sobra a insinuação de um espaço muito estreito entre dois olhos por odores e dores indesejados a velhice quase sabe a juventude não haverá insolência que não mude a razão de nos sentirmos insultados longo treino nos prepara a uma derrota pavor de perder pé antecipamos mas por ingénuo amor nos desusamos nos detemos na ideia mais remota se é tarde, ainda é cedo, assim nos dizem se é cedo, já é tarde, assim ordenam tenho cio, tenho frio, tenho sede, sou tranca e casa roubada, sou trinco, falo ferrugem 24-4-2009
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MANIE C Hoje enquanto a luz, rasante, incidia sobre um texto que não pode erguer-se nem valer-se das muletas da fantasia, uma voz muito negra entoava uma canção absolutamente azul. É o dia em que o cão morde o seu dono é o dia em que o dono abate o cão assim rezava a canção contra um céu pegajoso e vão. E porque o canto é uma forma carnal de filosofia, será preciso escolher entre uma arma carregada de abandono e uma arma carregada de eufemismo para enfrentar a luz do dia onde se confundem o olhar mortiço do cão e o olhar aceso do dono. 25-4-2009
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Duas memórias do tribalismo I O tempo das cerejas tomara eu que me visses arrancar segredos duros aos caroços que cospem depois de muito chupados. Tomara eu que me ouvisses formular outros desejos trincando lábios e lábios. Vem aí o tempo delas... Nem me beijas nem cortejas esta minha escura sombra de árvore já carregada. II Caindo desamparada como uma actriz muito velha que se esvai no seu disfarce e se agarra às tábuas podres, eu sou a coisa da casa que ganha tempos ao nada: desapareço de vista simulando uma saída desejando ser chamada. 26-4-2009 108
Olhei para a multidão como para um estendal de roupa e senti-me tão despida que fiquei presa ao chão. Quis correr mas apenas conseguia deslizar: tinha-me transformado em lágrima e rolava lentamente para uma valeta infecta. Ainda ouvi o barulho dos passos durante horas a fio. Depois, percebi que era antes e antes ainda eu tinha escórias numa mão e jóias noutra. Alguém me gritava: «Caminha!» E a razão que ninguém nunca silenciara era que o pensamento ocupa lugar e o caminhar não. 26-4-2009
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Pequena e torpe a noite não se deixa ainda assim prender entre as pernas. Abro os olhos porque não posso fechá-los, mas é outra coisa que se abre na vez dos olhos, funda e fria como mo uma estrada que só servisse para deixar passar a madrugada. O amor seria uma estreia de estrela dita extinta donde escorreria toda a tinta dessa noite. 27-4-2009 o teu sentido da orientação o meu sentido da desorientação a tua voz de princesa em torre de menagem a minha voz de erva rouca e rasteira o teu pé de bicho que desperta antes dos bichos o meu pé pequeno, castigado e mudo a tua mão de medir o mundo aos palmos a minha mão de sapo atolado em lodo a tua barriga de odalisca curvada sobre um livro a minha barriga esfaqueada os teus joelhos de ter havido criança e mulher os meus joelhos de esfregar os olhos do chão os teus ombros de nuvem cantabile os meus ombros atrás dos quais pairam olhares 28-4-2009 110
Reduto as pessoas mal amadas não bocejam de enfado - abrem a boca, logo a fecham, porque as almas se confundem com o lado para o qual, ociosas, quase pendem são almas de salão e imaginam que a terra tremerá com suas danças usando a impostura das crianças falsificam a lembrança mais obscura outros bichos da terra mais pequenos da infância não carregam o cadáver cada dia se esboroam e são barro dos vasos onde ofertam frescas águas matar pois a sede e a saudade de água nova ao olhar do caminhante é dar conta sem medida triunfante que antiga será sempre toda a água 28-4-2009
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Travão e Aceleração O gesto do talhante e o de Abraão que ouviu o grito das células da sua própria carne será que ainda estarão na base desta acção-inacção a que chamamos arte? E esse mandamento − não matarás! − que poderes de inércia gerou nos recantos do corpo onde a morte espreita. O céu tem a cor impassível e impaciente dos teus olhos. Falas, meu bem amado, de amar com todas as forças e desde logo me sobra a obra de amar de todas as formas. 28-4-2009
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Roubar palavras à tua boca e mastigá-las para que sejam bolo ardente bola rolando escorrendo até ás minhas entranhas. Roubar gestos à tua mão oculta como bicho assustado e pela força da meiguice levá-la até ao lugar onde de mim me despeço porque jamais de mim nasço. 28-4-2009
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com Maiakovski Aquilo que antecede e cede em força à servidão do que se segue e se adivinha Aquela «flauta de vértebras» que em ti chamo quando não dobraste a espinha para afastar o desastre do bom gosto Aquela aqui te chamou por favor de efervescência. E, meu amor, por favor, não interceptes as cartas da minha feliz demência. Faz-me louca em lugar de satisfeita, faz-me boca em lugar de saciares a minha voz para que eu fale do que não será sem nós e do que será de nós. 29-4-2009
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Para onde voam as palavras não as escritas nãos as escondidas mas as faladas as esfarrapadas as esfaceladas as esfaimadas? Isto poderia ser uma pergunta de criança ou uma criança em forma de pergunta. Parece que nenhuma pergunta passa duas vezes pela mes ma boca. Porque o rio da boca não pára de correr. E os lábios que lhe são margem já nascem a sorrir. 30-4-2009
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Índice Como o labirinto era apenas................................................. 5 Tâmara seca e açúcar de árvore......................................... 6 Canção segunda do fantasma.............................................. 7 The pomegranate and the wall of concrete........................ 8 Perante uma cidade emudecida............................................. 9 L’ombre et la proie.............................................................. 10 Entrei sem convite expresso................................................... 11 O imenso Sim........................................................................ 12 Sentimentira......................................................................... 14 La folie d’Ophélia................................................................ 15 A MENINA DOS OLHOS.................................................. 16 Tu contavas todas as histórias............................................... 17 Este corpo de apagar paisagens............................................ 18 Tu as toujours su.................................................................... 19 É mínima a bagagem do peregrino........................................ 20 Pena suspensa........................................................................ 21 O género H............................................................................ 22 Em lugar de saber mostrar-se................................................ 23 Cerâmica............................................................................... 24 Os movimentos involuntários............................................. 25 Quando desenhavas .............................................................. 25 Polvo e Púrpura.................................................................... 26 Le palimpseste...................................................................... 27 Aporia................................................................................... 28 A noite mergulha sua mão indissolúvel................................. 29 Ta vue qui baisse?.................................................................. 29 mais do que eu terás sabido................................................... 30 Frente a frente...................................................................... 31 uma vez mais uma ideia sem maneira.................................... 32 Meu amor............................................................................... 33 116
No limiar da tarde.................................................................. 34 O sândalo das harpas do rei Salomão ............................... 35 Adormeci na boca do lobo..................................................... 36 O misantropo na casa vazia e seus fantasmas amestrados 36 Há quem jure que um dia sentiu............................................ 38 Pesadelo................................................................................. 39 Mãe-de-água......................................................................... 40 Taberna................................................................................. 41 Quanto mais ardentemente me beijavas................................ 42 cheira a estevas na colina...................................................... 42 A rosa só de espinhos........................................................... 43 A rosa de um só espinho...................................................... 44 Camarada Eisenstein.......................................................... 44 NADIR 02-09........................................................................ 45 O amor................................................................................... 45 toujours déjà toi pas encore moi........................................... 46 S. del desierto........................................................................ 47 Com zelos de gazela que rumina........................................... 48 Le cyclamen rose.................................................................. 49 O regresso.............................................................................. 50 APOCALYPSE COW......................................................... 51 ORBE.................................................................................... 52 Há palavras que brotam de alambique ................................. 53 Hospital de bonecas............................................................. 54 Corredor............................................................................... 56 Fui caindo nas tuas armadilhas............................................. 57 As palavras do outro mundo............................................... 58 Eis a parede........................................................................... 59 Filhos de Seth?..................................................................... 60 At first sight and at last sight.............................................. 61 agora que não me olhas......................................................... 62 os olhos.................................................................................. 63 117
a última porta aberta............................................................. 64 O ciclo dos jardins................................................................ 64 No fragor da oficina já deserta.............................................. 66 Como se fala com o outro ..................................................... 67 Essa luz de estádio................................................................. 68 perdi-me da nascente............................................................. 68 A criança gigante .................................................................. 69 BODLER INFINITIVAMENTE........................................ 70 por muito que venha de lugar distante.................................. 71 ESCREVER MORRER...................................................... 72 Altezas................................................................................... 73 Obscena................................................................................. 74 Estive contigo em sonhos....................................................... 75 O anti-augúrio...................................................................... 76 BORDER LINE.................................................................... 77 Pira........................................................................................ 78 Baal........................................................................................ 78 Facção.................................................................................... 79 O lutador antes do assalto................................................... 79 O que é um sonho?............................................................... 80 Dizem que as palavras não têm dono.................................... 80 Ossário.................................................................................. 81 A penúria................................................................................ 82 Blasfémia............................................................................... 83 Remendando as palavras da indigência................................ 83 Falas com palavras quase neutras........................................ 84 A ANTI-COLECÇÃO......................................................... 84 Hei-de pousar nos teus olhos de iluminura em chamas........ 85 A cativa levanta a persiana.................................................... 86 Desde sempre e para sempre................................................. 87 Crítica da razão amorosa.................................................... 88 escrevo com palavras pendulares.......................................... 89 118
um silêncio carregado............................................................ 90 Canivete suíço....................................................................... 90 há coisas que viajam, se transmitem...................................... 92 Às vezes.................................................................................. 92 A imagem é fugaz................................................................... 94 Falar...................................................................................... 95 a casa esconde e mostra as suas garras................................ 96 mergulhado nas trevas........................................................... 96 Bodas de sangue................................................................... 98 Pousio.................................................................................... 99 Errância................................................................................ 100 encostar-me ao desdém da simetria....................................... 101 Um muro que tombou............................................................. 102 dizia-se................................................................................... 103 agora também espio outras esperas...................................... 103 Meu amor perfil e vaga.......................................................... 104 bom dia.................................................................................. 104 animais no bebedouro do poente........................................... 105 Frémito.................................................................................. 106 MANIE C.............................................................................. 107 Duas memórias do tribalismo............................................. 108 Olhei para a multidão............................................................ 109 Pequena e torpe..................................................................... 110 o teu sentido da orientação.................................................... 110 Reduto................................................................................... 111 Travão e Aceleração............................................................ 112 Roubar palavras à tua boca................................................... 113 com Maiakovski................................................................... 114 Para onde voam as palavras.................................................. 115
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