Regresso 1

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regina guimarĂŁes

caderno do regresso capa e contracapa de alberto pĂŠssimo


Prefácio

A deusa da Primavera e do remoço estava tão ligada à terra que não hesitou em casar com o deus das profundezas infernais, pois o seu amor estendia-se a tudo quanto o rude chão podia acalentar. Assim, há seres que parecem não pertencer ao mundo – ao mundo tal como o imaginamos – na medida em que a ele aderem mais completamente. Mas somos nós que somos insuportavelmente leves e, de cabeça nas nuvens, com palavras nos iludimos. Os verdadeiros poetas conhecem a materialidade das palavras, sabem a que ponto são concretas e vivas as presenças múltiplas que elas encerram, como um círculo mágico traçado em torno das coisas, do seu uso e da sua história. Uma palavra encerra mil imagens. O universo forjado pela escrita poética – no sentido mais literal, grau zero da metáfora, pois há poemas lavrados à maneira das jóias em filigrana e outros temperados como lâminas tão cortantes que os chavões derretem e os lugares comuns recuam perante elas – é transformação radical do mundo. As «revoluções» efectivas, com as suas manifestações de rua e as suas negociações de corredor, tentam sempre refrear o movimento desencadeado pelas palavras. O poder está na ponta da língua. A escrita para Corbe é uma operação de bruxaria, de libertação de forças que a ultrapassam, com todos os riscos – de dilaceração, explosão ou falha de pontaria – inerentes. Há trinta e cinco anos que vivo ao lado de uma feiticeira que obstinadamente – contra todo o fatalismo e ao arrepio da incitação à renúncia na ordem do dia – se esforça por encontrar o último pedaço perdido de Osíris, e por desenhar no ar visões de castelo habitável. Ora, deste trabalho, deste combate e desta construção feérica 2


quotidiana, tenho sido o único beneficiário, já que, dos seus poemas, sou o único leitor. Tendo nós adoptado uma situação decididamente à margem das instituições culturais, da respectiva cagança e dos eventuais proveitos correlativos, o nosso trabalho comum não é reservado a alguns eleitos, mas dirige-se todavia, antes de mais, aos amigos – o cinema permitiu-me escolher a minha família –, e exige do espectador e do leitor, no mínimo, um esforço de curiosidade. A esta limitação da difusão vem acrescentar-se, no caso de Corbe, uma desconfiança relativamente ao objecto livro que se lhe afigura como que um sarcófago ou uma caixa onde as palavras confiadas ao papel são borboletas pregadas. Este livro é constituído, estritamente, por centenas de poemas escritos – diariamente, nem é preciso dizê-lo – durante um ano. Dia após dia, sem outra ordem que não a cronologia da sua redacção. Não anda longe do diário, é testemunho da experiência reiterada da sublimação – e também nos permite calcular quantos poemas de Corbe ainda não foram publicados! Porque este livro é o resultado de uma dupla luta: a luta pela sobrevivência, primeiramente, sendo cada poema uma esperança reanimada, uma promessa de novo dia (as mais vezes os textos foram escritos de noite), um exorcismo e uma encantação; mas também a luta, por mim travada, para convencer Corbe a publicar, a tornar público o jardim. Quem tiver este livro entre as mãos passa doravante a partilhar o meu fardo: pode sem «abre-te sésamo!» percorrer as galerias da caverna atapetadas de versos mais brilhantes e sumptuosos do que o ouro e as pedras preciosas. Tem acesso ao tesouro e divide comigo a responsabilidade de fazer circular o objecto livro, de dar a conhecer os seus encantos a outros. A fonte poética não rejuvenesce quem da sua água bebe, porém devolve juventude ao mundo no qual pousam os olhos do leitor. Todo o privilégio envolve uma carga. Tantas palavras quantos grãos. A comunidade abre-se ao virar da página. Saguenail Agosto de 2010 3



Julho


É certamente possível dividir um segundo ou lapso de tempo ainda mais curto em instantes capazes de ultrapassar a barreira do tempo dentro do tempo. É certamente possível dividir um corpo vivo ou ainda mais vivo ainda mais corpo em fragmentos capazes de furar a muralha ambulante da pele. Na solidão como na companhia é possível aliviar a dor dividindo-a em partes que, à sua maneira, obtusa e inesperada, descobrem a felicidade difícil de serem partes de um todo, e logo, indivisivelmente divisíveis à partida. O meu amor será mais veloz enquanto ferida do que a arma que desfere o golpe. Nem concórdia, nem misericórdia, tão-só respiração nascida do ar a menos do ar a mais.

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Trivial é a vitória como a derrota e um carrasco mordaz não perde mais dentes a sorrir do que uma alma consoladora. O bem e o belo não brotam entre males e remédios nem escorrem pelas paredes como tédios que não limparam as lágrimas nem assoaram o nariz. Algo e alguém assim quis e se quis, enquanto eu, em longo queixume de lume sobre o qual se lança água gelada sinto que não fiz não me fiz nem me faço à ideia feita de fazer sempre por menos o que me dizem ser nada. Em noite de tormenta à pressa se despe a criança ainda atordoada. Algo ou alguém decide que a criança não está no seu lugar nem há lugar ao qual confiá-la. Dão-me conselhos: mais vale vigiar o que sinto em vez de pensar o que me escuta. Mas seria esse tributo obra de pessoa delicada se a criança já está morta sem nome sem sepultura? Morta e desenterrada. 7


Está aberto o caderno do regresso. Quem nele escreve não se atreve a roubar o cheiro do começo nem marcas à páginas viradas. Está aberto, o caderno. Mas a escrita trai a mão aflita que mal chega ao fim da linha se sente rasurada pela lâmina segura de abrir na pele clara escura a cicatriz e a sutura certa. Está em aberto o regresso, e o caderno tem a brancura irreal de um Inverno sem pegadas em sua neve leve e espessa, está aberto onde a dor começa nos rins e abraça o ventre até aos confins do sexo desconexo de sua serventia e da alegria de seus humores de vaga e mastro e maresia. Porém, quem escreve poemas de amor deveria ruminá-los e engoli-los como mensagens secretas. Até que alguém se lembrasse desse pão de cada dia e do forno sempre aceso onde a farinha crescia na indistinção das cinzas e das brasas.

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Nasci sem porta embora de mãe. Nasci sem porta e isso causa ódio talvez repulsa – distância certamente. E como me sinto nascer de mim por amor de quem me olha de alto, não sei se resistirei ao sobressalto desse sexo sem costura zona de sombra da sombra por onde nascer é duro e dura.

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TRADUÇÃO Antes de adormecer o meu neto diz-me: escreve o que tens a escrever e não disfarces as palavras como se elas fossem mais velhas do que são. Diz-lhes que esperem também com impaciência amestrada para que não prevejam a vertigem antes da vertigem e assim possam sem rodeios amparar a queda com a esperança de tocarem terra firme ou o que resta do chão. E eu respondo ao meu neto que já dorme a sono solto: sempre achei que o castigo de água mole em pedra dura não presta.

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Tu que despertaste magoado por entre farrapos de lençóis cheirosos como as flores mais suspeitas de o serem e se valerem de seu cerco Tu que acordaste mais agitado e exausto da paixão que tolheu as tuas mãos e mirrou a tua boca de mulher – cerrada a madrugada onde duelo de morte lábio contra lábio sábio contra sábio... Tu meu amor que me regressas regressas ao meu corpo em seu atraso, dizendo que lado a lado, aresta contra aresta, a véspera é sempre véspera. E embora tenhas madrugado o teu gado está espalhado pelo avesso do prado pelo sítio do teu rosto ter sabido o que é ver-se espelhado em floresta, mais floresta, mais floresta.

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Agosto


Trabalho hoje e ontem que foi noite em diadema com vista a esse texto escrito às escuras, esse que eu mesma não possa ver, nem ler, e que o resto me seja não imagem ou fim de estação mas difícil decifração. Entre as palavras, há falhas de memória, e dentro das palavras, uma história que elas mais não querem que guardar. Fora da página, as palavras que não cabem, as que sabem escapulir-se à medida que a obscuridade se adensa, ninguém tem mão nelas – não que não prestem, as palavras em fuga, apenas não se prestam a encher a ruga da linha e a estreiteza deste branco onde cada ferida se ri e se julga recompensa. Quando as palavras deixam de ver o que têm à frente de seus olhos em bico, quando os olhos já não conseguem ler as palavras que têm diante de si e de nós, a escuridão e a escrita são livres de ganharem contornos comuns. Na palavra cama, por exemplo, que eu sempre preferi ao leito, há ama seca ou molhada, e leite certamente, leite ofertado à majestade da vida. 14


Muito se fala, toca e ama na palavra cama. Enquanto o leito tem o travo ĂĄcido do seu a seu dono do leite derramado do limo do rio que parece parado. Diante do abismo de Agosto nĂŁo busco os prazeres do paraĂ­so perdido mas antes os recantos de um jardim sombrio e abandonado.

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Com os olhos vendados buscas às apalpadelas o ninho do pássaro cinzazul. Esperas que ele tombe do céu na hora em que a terra sorve as aves já tontas e as meias tintas se entornam no rumor fosco das ruas onde eu falarei sozinha onde tu me desencontras. Porém, o que cai do céu é o próprio céu ofegante atrasado gigante como um presente chegado do outro lado do mundo.

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A crianรงa desenha um dia feliz um dia cor de ferida. Mas por muito que rabisque nunca conseguirรก cicatrizรก-la.

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Obriga-me a ficar, a focar; e verifica-me. Na verdade, cada vez que volto atrás, deixo lá alguma coisa. Olha de perto os poros de deserto da minha pele sem olhos pura miragem sorvendo toda a mágoa. Secura de página. Torrente de rodapé.

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CONTUSÃO 1 Olho por olho dentro por dentro – a maldição deitada a nossos pés como um cão. 2 O sujeito da sujeição caminha pelo seu pé e sofre por sua mão. Corpo de aço temperado pelo verbo de avançar às arrecuas e por esse cansaço embaraçoso que dá forma quase igual às pernas e às ruas. Se cais não passas do chão e nenhuma consequência é mensurável. A cada acto, seu perdão. A cada queda seu chumbo e seu algodão – seu desvio imperceptível do padrão. 3 Basta juntar os pés e olhar o chão como se fora o caos mais populoso e pululante para que abra um vazio donde se soltam à vez ora ecos, ora cães – os sete para um só osso. 19


A quem torcer sem pensar o som de um longo pescoço? 4 Pássaro de debicar nuvens, meu amor, luva adejante, acorda-me deste sono terrestre e tão fatigante. Acorda-me, luva que infinitamente se descalça e faz do meu corpo apócrifo uma sombra do teu céu tatuada dessas luas invisivelmente novas. Seja o comum despertar primeira necessidade. 5 Notre vieux lit est recouvert d’impressions à corriger de tes textes et poèmes. Jamais l’envie d’y coucher n’a été aussi urgente et extrême.

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Sentei-me à mesa com sonhos ruminantes inofensivos. Eles provaram de tudo, repetiram, quase não mastigaram. Eis uma bela lição: agora que ficaste na beira do prato, podes partilhar a gamela com a fera que tens dentro de ti. Podes devorar os números indigestos, sentir-te forasteira na jaula, tua pátria primeira, e vizinha do mundo em terra alheia. Podes trocar olhares e comer com os olhos já que se diz que também se come com os olhos. Podes levantar a mesa ou pôr os talheres minuciosamente esperando a vinda de um pássaro ou de um morcego ou de outros seres vivos que a contra gosto te visitam – te limitam. E dirás à fonte: deste pão não provarei e toda a tua a água me saberá a côdea à mais dura côdea. 21


RETRATOS 1 É invisível quando se trai: três ângulos muito agudos atraem o meu olhar para becos sem entrada e avenidas sem saída. Se traz um truque na manga só fará rir à socapa a criança atravessada na sua bela garganta branca. 2 Nem erra nem se perde nem se engana. Como a velhice da mó que reduz o grão da ira à novidade do pó. Como a velhice da mó que confunde pó de estrela e pó de estrada, ele gira. 3 Talvez possa acreditar que o mundo já soçobrou ao tocar esse limite dos seus negros pensamentos. Ou que esse mundo já outro hesita agora em saltar. Talvez saiba que vacila isso que chega ao limite. 22


A essa linha quebrada onde se indigna escrevendo ele chamou horizonte.

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Dentro do inconcebível, há várias espécies de eternidade. Mas a culinária dos opostos permite a ideia de regresso. Voltar ou voltar-se para si a fim de caber no mundo certo onde o sofrimento nunca excede a imagem nem sabe negar-se à semelhança? Dentro do inconcebível o grão é bem maior do que a engrenagem e o regresso dura muito mais do que todo o desejo de viagem.

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INDIA SONG essa melodia de ciciar estios que puxa pela longa cauda do piano ainda negro e pela cabeleira já grisalha, essa melodia que me obriga a preencher os espaços entre as palavras em branco e a juntar as pontas sem dar o nó cego, essa melodia caminha silenciosa na corda tensa do grito. mesmo assim, – porque falo sozinha numa linguagem de jamais e já não minha, vou separando o inesperado do desespero intacto no qual ele veio embrulhado. e ando à deriva quando digo com ou sem palavras que estou viva. como se isso fosse um palácio e tu minha ácida rainha.

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Imagino-te sondando a noite funda até roçares não sei que ouro negro e é como se saísses dos meus olhos, os levasses de arrastão na tua rede talvez os transformes, pobres peixes, no inúmero cardume das estrelas para matar a fome a quem só olha porque não pode tocar, nem ser tocado talvez te vires numa esquina, numa proa, pressintas quem te segue e me persegue, te detenhas por instantes como dantes a ver que só acende o que se apaga e a noite alevantada como vaga te atire para a margem das imagens onde os teus braços me apertam sem temor por não julgares que me agarro a uma tábua

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O RELÓGIO DA BARRIGA De mim não esperes espírito nem frases finas como ponteiros desenhando o texto a pulso no sentido contrário ao seu contrário. Ontem, vi-me só e vi-me morta: que outra pessoa buscas no lugar da hora e da resposta?

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Há um ouvido que só escuta murmúrios e outro que só vibra ao som dos gritos. Há estilhaços que só eu ouço e brisas que só sopram para ti. Há palavras que ninguém ouve dentro de mim e ninguém a ouvir-me como uma multidão. Há um ouvido encostado ao chão e outro ao lugar no coração. Há um mar de sangue a gotejar da concha colada à minha orelha e uma veia onde o meu amor jangada me chega à boca com o ímpeto de uma golfada e a gargalhada quase náufraga de uma vaga.

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Será que despertei onde não fui sonhada por me ter perdido no beco de um sonho sem saída? Será que esvoacei velho papel amarrotado rente ao declive dessa calçada que só pára de descer junto aos teus pés petrificados? Será que olhei para o lado porque tu desviaste os olhos e já não havia paisagem nem passagem rasgada entre aqui e ali? Se nesse instante te disse que as lágrimas não apagam nem paisagens, nem passagens, mas apenas o rosto de quem se demora chorando, foi porque mudei de cara como se mudasse de casa. E agora quem habita o que não vês?

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Afagar-te com as mãos frias do desassossego. Trazer-te à tona da água mais turva e fulva como fruto devorado pelo verme da cor que teima em flutuar. O mundo pode morar antes da vulva e do ventre e após a necessidade que faz futuro o presente

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KAMIKAZE De tudo um pouco sobeja mas parte fala da falta e até à cama rasteja. A voz que se exclui se exalta vai procurando uma frase que ao silêncio se acrescente que no silêncio se atrase como essa nuvem demente. Ela anuncia tormenta mas traz-nos farinha nova outra mó e outro grão de bonança ininterrupta. Nem se cansa de ser escuta nem cai redonda no chão. Eis o tempo em que ternura se ri de toda a fartura e faz sua a privação.

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Hoje o meu coração canta uma cantiga sem amanhã tão leve e incauta que me faz pairar, deslizar pela calçada e estatelar-me no chão como uma saltadora extenuada. O meu coração canta e bate e o sino do fim e do princípio do mundo agarra a minha nuca içando-me até ao alto camarote onde me beijas e eu não me vejo, não me vejo, amor. O coração canta e bate por ter medo de falhar e quase falha de facto. O coração bate ainda porque terá de falhar. Mas quem não conhece a fundo passagens entre passados pontes entre a velha alegria e a antiga a mágoa não sabe isto que eu falo. Colei a lua ao tecto e fui ângulo de amor. agudo, obtuso, recto.

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O QUE FAZEMOS? Esgaravatamos a face da terra e escavamos o precipício onde perdemos o pé para logo dar as mãos mexer com ambos os olhos onde não é permitido para depois nos tocarmos. Talvez achemos refúgio antes de sermos falados nas bocas, entre os joelhos, nos sovacos e na cova dos rins. Não buscamos sombra ou rasto sem termos cheirado o pasto molhado da escuridão. O que fazemos, então, perguntas tu porventura? Mas eu não tenho a palavra que ao mostrar-nos se mostra. Há uma língua de fora e uma língua de dentro na míngua da sua ponta, cada sorriso é resposta. Com alfabeto de garras todos os dentes do corpo cavam o abismo do abismo cativos buscando o túnel tremendo onde a ternura foi epicentro do sismo.

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BAILE Não roçam o chão os espíritos e os gritos não arranham o céu. São espasmos de marioneta escapadas à mão transformadas noutras mãos e dedos que se picam nos espinhos das rosas mais musicais. Elas eles enfiam-se por decotes sucessivos para os rasgar na vertical e arriscar alguma carne algures na pista de dança. Marionetas minimais fugidas à lei da perspectiva que se despenham despenteadas e se despem a correr dentro de nós. Elas eles vão bailar longe e fora agora. A cada despedida.

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A INTOCÁVEL Este hábito do hábito curva a curva Este hábito e seu desregramento Estes farrapos de linho e burel presos no mel da colmeia sem rainha Este hábito de escrita fora do papel Este hábito de afugentar a fúria e a injúria a jura e o juízo. Este pequeno empréstimo da escuta e a trela curta que me esgana a tripa Este fôlego que sopra e apaga chama a chama todos os nomes todas as formas de clareza e claridade Este corpo detrito atrito de fruto desmedido quase podre já tocado em sua polpa duvidosa pensa na dureza inesperada do caroço que jamais será colhido.

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Na margem sombria, as grandes árvores miram-se no espelho tenso da água. Na margem onde o sol bate, as grandes árvores meditam sobre o mergulho de olhos abertos. Ver e pensar podem ser acções involuntárias sem que isso altere a sua efectividade a sua eficácia. Mas quem quer bem quem quer muito não escolhe margem não escolhe luz. Apenas decide com que persistência de forma e fundo se lança e se deixa trespassar e atira às ventas do mundo aquilo que da vontade é amor e insolência.

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Passo a noite em cativeiro desfazendo ponto a ponto o alinhavo apressado de qualquer ressentimento. E sou corpo de passagem aos pés de quem caminhou entre presente e passado com o futuro enrolado debaixo de seu outro braço. Com que braço me abraçou e com qual me abraçará à saída deste tempo onde não sou nem estou já? Amor que vês no escuro diz-me em que lugar eu duro e me entrego ao desapego? Nem defronte, nem detrás, avisto essa concessão de ser um corpo inseguro: pois moro dentro de um muro.

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Onde me levas, meu amor, quando me deixas dobrando esquinas até me perderes de vista? onde me deixas, meu amor, quando me levas vendando os olhos para não te arrependeres? Onde me vês, de que lado, de que frente, combatendo o que não tem nome nem rosto sem saber o que me nasce no poente nem o que é levante em teu sol posto?

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Passeias dentro de mim quando passeias comigo embora eu não seja abrigo nem sombra onde te deleites. Cada olhar me trespassa como uma mão que alumia; tudo o que vejo me inveja tua andante companhia. O mundo despe os enfeites frente à infinita graça com que passas no que passa água quente em pedra fria. Ao mundo acrescentas mundo entre palavras e pausas, roubando formas ao fundo, forjando fundos às causas.

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CANTIGA DESENTERRADA no milheiral azul noite asfixiado entre espigas o espectro da camponesa desenterra uma cantiga que faz corar de vergonha cada folha, cada cana, cada grรฃo da maรงaroca e o prรณprio vento soprando entre as coxas de quem foi velha sem ser rapariga se faz rubro quando a toca

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O QUE A MÃE DIZ I A Mãe diz: – Irás de decepção em decepção, saltando a pé coxinho e, as vezes, de cabeça. Mas um dia podarás a copa das oliveiras como se fossem caniches. A Mãe diz: – A quente, olharás a quente, todo o sangue do poente como uma torre a ruir. De sorriso na lapela mascando flores outonais não queres perder pitada dos teus pequenos desastres e do que é derrocada. A Mãe diz: – Darás muitos passos em frente e muitos passos em falso. Estarás em falta e de folga e eu irei no teu encalço. Mas todo o mal que fizeres não será por mal ou bem. A Mãe diz: – Se encontrares um ladrão debaixo da tua cama é porque a tua fé é tão imensa e profana que só verás quem te chama. 41


A Mãe diz: – Porém, não esquecerás que dar a palavra a alguém é confiscá-la a quem não ousa tomar a vez de falar em teu lugar daquilo que parecia ser tão-só os teus porquês.

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CORTA-MATO Há formas de felicidade que me são estranhas por me serem infamemente familiares e me ferirem no pouco amor próprio de que sou capaz.. Porém, tanto o desejo de absoluto como a fúria da contingência me forçam a buscar outras formas de felicidade ainda mais distantes. Desentranho-me sem mesmo estranhar o que não me acontece e onde não aconteço estar, de agora em agora. Vejo de tão perto o que está longe de ser que as coisas perdem toda a nitidez toda a obscuridade de que me faz e fez apalpar caminho, encontrar atalhos tactear, tropeçar, tratar por tu galhos e gotas de orvalho.

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BASTIÃO Falavas de uma dor intensa e difusa, uma dor indolente, insolente, insone, uma dor com mais dentes do que olhos e mais olhos que barriga, presa nova e garra antiga, uma dor matadora, longa lide em labirinto sem touro nem tesouro, uma dor a reboque da alegria, uma dor de bastidor onde o dia se maquilha e desmaquilha, uma dor ao portador, entregue em mão alheia por mão própria, uma dor de mercador e ela apenas ela como mercadoria, uma dor julgada à revelia por quem não escuta, uma dor agravante e atenuante, caracol em corrimão e quantos degraus para chegar ao estreito patamar de não haver consolação, uma dor órfã criada em vão de escada, uma dor baba, uma dor suada e toda sua, tua, uma dor de engarrafamento no corredor entre o quarto e a rua, com carros brincando e buzinando 44


num mundo sem passeio – deixem passar o bólide da dor que as cidades são tão só cenário e intriga, enredo de elefante e desenlace de formiga – uma dor calada e segura de si, colada à calçada gutural, unha com carne, carne com osso, e o teu belo pescoço curvando-se, em penumbra de cisne ou sombra de canto escultural, ó meu amor, grande é o meu espanto que não oiças essa dor ecoar dentro de mim. Pois o meu rosto é o último bastião contra o escândalo do pranto e o sussurro do sexo segundo.

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O OUTRO LADO Do outro lado não há lá. Mas do lado de cá há quem só queira ter olhos para o que não está. Do outro lado não se começa. Mas do lado de cá há quem só possa cismar no que não regressa. Também não há sim do outro lado. Mas cá não falta quem gabe esse fim sem fim onde todo o nada cabe. Ninguém deixa recado do outro lado. Mas do lado onde se espera há muito quem se convença que este é o lado de lá do lado do outro lado discreto, quedo e calado.

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AS CONDOLÊNCIAS A casa é visitável e aquele que ousa empurrar a porta não sabe se chega em hora de construção ou em hora de ruína. Quem vai além da soleira traz ficções de felicidade prontas a não serem usadas e contempla as rachas nas paredes, o pó, o bolor, as teias, as aranhas, como se vigiasse uma empreitada com a leveza da brisa que arrebata véus de noiva e lona do estaleiro contudo tão pesada. Quem porventura vem de mãos vazias e melancolias fora de uso caindo em catadupa de suores e lenços, verá com maus olhos a novidade das paredes a crescer brancas, aprumadas e brutas segredando argamassas entre frinchas e outras aberturas que ordenam sem pudor as verticais quase levianas em suas vénias frias e ocas. A casa é visitável e visitada. A casa é inabitada por visitas habituais e o princípio faz as vezes de morada. Cada um se rebaixa à realidade. A de dentro. A que se encosta a si mesma e contra si. 47


OS MONSTROS DA SENSATEZ O verso em português é do avesso, concreto e incorrecto. Em francês, o verso tem um rumo lá dentro e aprumo de estaca zero. Tenho medo do que escrevo em português e do português em que escrevo. A língua leva as minhas forças quando eu me queimo no fogo das formas ditas primeiras entre a perda e a presença – qual delas a mais imensa? Debato-me com a língua e mordo a minha – mas não o seu isco. Combato com a língua para não sufocar disto e disso. Pois não creio em tudo o que ela pensa a montante e a jusante do fluxo da consciência.

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O pequeno outono deita abaixo as primeiras folhas mal elas se desprendem da dureza nova do galho e da velha robustez do tronco o pequeno outono espanta-se de as ver caídas, inertes mesmo quando afagadas pelo vento o pequeno outono de verão ainda não vê nenhuma ruindade nessa brincadeira de arrancar e derrubar folhas ao livro das árvores cansadas na rua ouvi distintamente alguém dizer: «Amor!» virei-me; mas não eras tu

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O FOGUETE NA MEIA DE VIDRO Lembro-me das senhoras usarem meias de vidro e de haver mulheres que reparavam os foguetes, horas e horas debruçadas sobre uma espécie de pequeno bastidor – com mão direita e destra apanhavam as malhas. Cuecas, meias, camisolas interiores, novelos de lã e de algodão, linhas de coser e de bordar agulhas e alfinetes de picar eram coisas que se compravam na retrosaria. Na nossa, a «Dona Branca», havia uma menina – ou seria uma senhora? – que apanhava foguetes a um canto. Perto da porta, por isso permanentemente exposta, como os soutiens na berra ou os lencinhos de mão (em baixa). As únicas palavras que recordo ter ouvido na sua boca doce têm a ver com a história de um homem – o seu? – que morreu fulminado por um raio, à beira-mar, numa tarde de tormenta estival. Chamuscado. Carbonizado. Esturricado. 50


Eu tinha uns cinco anos, se tanto... Só mais tarde apareceram os frangos de churrasco, à angolana, como piri-piri a gosto. E então essas palavras passaram a ligar-se aos galináceos e já não àquele homem. Quando troveja não durmo – troveja, vejam bem, dentro de mim.

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Das máscaras sobra o fio que as prendia e um certo jeito de erguer ou baixar a testa consoante o peso do momento e não o da cabeça. Os olhos quase saltam das órbitas cansadas porque outras os chamam à razão demente de ver e reparar. Mas os ouvidos derretem querem fundir-se na massa maior do pensamento ainda informe, esfomeado de escuta. A mão de cada emoção põe e dispõe dos meus órgãos desorganizando a casa fechando e abrindo portas forjando falsas saídas, atrasos imperdoáveis, entradas intempestivas em cena. Dos camarins já só resta um forte cheiro a bafio e algumas rosas secas presas ao fio da voz.

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ESCALA E REDUÇÕES Atrás de mim, rente à nuca, rente ao ombro, alguém se despe e se veste como se eu fosse um biombo. Não é espectro essa figura que atrás de mim se desnuda e muda de indumentária. Não é duplo, nem é outro, o peso morto do corpo o peso oculto da sombra que ao mostrar-se tudo esconde. Se me precede e persegue sofisticando o seu trajo como um mapa movediço, é porque eu não sou só isto e quem é não é só isso.

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Rasguei a carne como se fosse uma fotografia velha ou comprometedora. Pedi-te estrelas silvestres e beijos que não comessem na palma da minha mão Li na tua cara um leve tremor de terra e tomei essa tremura tão discreta por um sinal de ternura. Se o meu corpo te foi sendo cova aberta, todavia nunca foi segredo devolvido à sepultura. Desperta, meu amor, aperta, o nó cego da cintura e abaixo era uma vez dura uma fruta madura. Aquilo que a boca diz na boca não se desfez.

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Os bosques dormem já de boca aberta, moribundos em câmara sombria, tentando respirar mais um instante até ao romper de um novo dia. Entre as coxas, pelas fossas das narinas, entre troncos, por umbigos da madeira, escorre sangue da raiz até à copa, flora e fala do início, viperinas, interiores anteriores às flores às cobras, e à vez de nomear talvez primeira.

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Estão mudas as frases e surdo o bobo que as mima, as profere e se fere proferindo. O gesto delicado verga as costas e o sol das gargalhadas tem o gosto da mais propositada grosseria. Estão frias as frases e as mãos – como Édipo já cego antes de cego frente ao grande enigma de haver língua. Ora, o legado da língua só relata o que outrora não se via mas dizia.

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Setembro


Passar por ti onde amor forçoso me foi passar. Apenas eu me detenho, apenas lá me demoro, deixando esse céu inteiro entrar pelos olhos dentro. O teu céu. O lugar onde não vejo. Onde não choro. Saibro afogado em luar, eu te sobro em sol nascente, carregada de não estar e de estar em ti presente. O teu céu. O lugar onde tremo e coro. Onde temo não temer. Estrada de pó palpitante, penumbra densa entre seios, nenhum não, nenhum senão, nenhum fim, todos os meios. O teu céu. O lugar onde se esconde. Onde tudo é onde tudo. Calçada de opala quente, longa berma alucinante, silvado e sumo de amora, fora de mim ao volante. 58


O teu céu. O lugar a que me prendo. Para não ser cativa. O teu céu. Para viver-me se viva. Para soltar-me se presa. Passar por nós onde amor sucedemos ao que passa, sem asa, casa ou causa, trocando a graça e a desgraça por um olhar que nos prenda ao desejo de tocar.

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Vapor de ti e cheiro de mim – a que mistura nos destinamos? – a que entrelaçar e quais os ramos onde balança este breve olhar? – com que cor da cor nos combinamos e a que hora regressamos a meio de ser noite de ser dia?

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A ARTE DA CANTIGA 1 Pus uma canção na cave, o meu amor na mansarda e dei-lhe a chave da entrada. Caso um dia a casa arda, ele virá libertar o desejo de cantar colocado à sua guarda. 2 No recanto do recanto a ti confesso e confio, sapateiro remendão, o que está atravessado na minha velha garganta. Possa a arte do conserto de almas, tacões e solas, ou biqueiras de sapatos ir para além desse passo – pois que não se trata apenas de remendar uma coisa que cola ao corpo por fora. Cada pedaço de pele e cada naco de carne precisam de ser cosidos depois de alinhavados, precisam de ser cerzidos, pois que foram esfarrapados. Assim sendo, ó sapateiro, eu te peço a ferramenta, ementa e modo de usar para que eu possa guiar por entre fendas e hiatos o meu amor sem sapatos. 61


TABU Não ousar meter o pé no prato da balança onde o mundo vacila e o corpo dança embora o baile tenha acabado. Dançar então – se eu me atrevesse... sem luz, nem música a altas horas fora de vista – a cada passo a mão conquista mais uma nesga de carne mais uma nesga de chão. Dançar, roubar movimento ao nosso mundo, roubar mundo ao movimento.

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LA PORTE CONDAMNÉE Impossible de se réconcilier avec le miroir. Car ce serait comme donner raison à une porte fermée. - nul ne sait si pour toujours si depuis toujours.

63


DÉCROCHAGE Le masque se décroche et tombe. Il en est au niveau du nombril. Les trous des yeux évidés nous regardent plus fixement que des rétines. Ils nous retiennent et suspendent l’idée même de chute.

64


Mon cœur s’ébroue – il a du mal à se mettre en route, il a du mal à se mettre au pas. Mon cœur crie fort mais ne s’écoute pas. Alors, il est hors combat et se pose des questions sur toutes les manières publiques d’essuyer une défaite.

65


Tu comprendras mieux que moi le sens de ma mort. Autrement dit: toutes les façons dont j’ai porté la vie en moi. C’est sans doute cela, la mort.

66


A BARBÁRIE A luz como um bocejo de prazer virou do cinzento ao rosa e eu colhi todas as auréolas em torno do teu corpo adormecido. O desejo é um despertar sucessivo com olhos sempre diferentes e o sexo somado e subtraído acende e apaga faíscas. O amante traz em si clarão e sombra: ele vê na escuridão e desenha o horizonte com a precisão do lápis azulazuli e a dispersão da bomba que não se abstrai nem tomba. Moribundo acorda de um pesadelo horizontal e por detrás da pele do lobo inventa o trajo de passeio e o tabu do cordeiro.

67


Irás por entre sombras, entre espinhos, dissolvida em pensamentos tão doces e distantes que o caminho ficará vazio de ti e cada vez mais estreito – julgarás, sem razão, cortar a eito, quando havia largueza, talvez mesmo alimento para formas de beleza corroídas por rajadas de alegria. Irás como quem não volta atrás esquecida do caminho de regresso porque o vento leva e traz beijos, vozes, baralhando as noções de afastamento e tornando mais espesso o que é fugaz. Terás medo de esmagar os tenros frutos ignorando com toda a convicção o sabor da refeição que te estava destinada. Irás entre tremuras da folhagem, tremendo tu também, sem saberes o que em ti treme. Pois fala o chão da raiz se arrancada mas cala a oferta que se esgota no sorriso breve e murcho da flor cortada.

68


Alguém arrancou uma fotografia intrusa e inofensiva ao álbum do fim de Verão. Alguém disse desde então e cruzou os braços, flácidos e tensos como bambus entrançados. Porém quem viu e ouviu podia abolir sem dor nem pudor todos os pontos de partida. Alguém disse nessa altura: a partir de agora.

69


De súbito, o espelho da pequena poça transforma-se na pupila do poço negro e o corpo em marcha do mundo atraído por profundezas desmesuras é tão-só sede premeditada. Ele toca o fundo como um balde cuja função é trazer água à superfície e trocar uma imagem pela outra. Água de sonho, sim, não devolvida.

70


Mudar de casa ou de roupa interior. Mudar de ideias ou de cama. Prestar-se às palavras que por vezes nos emprestam, aos sentidos que nos foram confiados e nos confinam em lugares por nós mesmos desde há muito inabitados. Se os olhos se habituam ao escuro, à miragem, à faísca, por que não pode o escuro, a miragem, a faísca habituar-se a nós? Mudar de folha ou até de letra mas escrever do mesmo ao mesmo cada dia como mama na mama quem é cria. Quem se cria.

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Não saber por onde e como acabar de começar sempre que um olhar se prende ao espinho de outro olhar, ao seu fio de horizonte em infindável novelo, ao seu galho quebradiço de Outono azul mais venoso, à sua fonte a montante das falas torrenciais, à sua ruga cavada na demasia da carne, ao seu pavio que arde até ser tarde de menos, aos seus beijos tão pequenos entre a sevícia do voo e a vertigem do ninho por essência inacabado.

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A INVERSÃO DE DADOS Entre a pálpebra pesada e a asa do parapeito, o olho assoma ao centro vindo de fora e de dentro. Escapa-lhe o que se vê montado em cavalo ruço – o real foge a galope afastando o horizonte e alinhando um discurso. O olho, em seu vitral fosco, fabrica azuis e castanhos e tira o verde da forja. Depois flutua e fractura em sua laguna omissa. Da água, o olho cobiça a estranha capacidade de se espalhar totalmente, – submissa mas insubmissa a um corpo de cidade.

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OBRIGAÇÃO DE RESERVA Aquilo que se vê chegar vindo de longe. Aquilo que se vê ao longe. Aquilo que vem de tão longe que parece não querer ou poder chegar. Aquilo que não chega ver ou esperar. Aquilo que vem mas não vem na minha direcção. Aquilo que vem comer à mão e come a mão.

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Les oiseaux sont lourds quand ils pèsent à l’envers – tirés par le ciel, happés par les cimes et leurs ficelles intimes, puis faisant mine de tomber. Les oiseaux sont plus lourds qu’on ne les imagine et plus légers qu’ils ne le croient. Les oiseaux chutent et chantent comme de vieux paquets qu’on aurait jetés d’invisibles fenêtres. Les oiseaux ne s’écrasent qu’une fois.

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O PENSAMENTO POR TENTATIVAS Nesta rasura onde ex poente de razão, o teu co ração não re conhece algo que tenha visto, lido, ab raçado, como uma missão breve e sem final idade, nesta sagração das h oras vagas que se agarram ao c orpo como conchas, a guardando a carícia de uma água futura – de uma água dura –, junto a esta sebe toda ela silva do e or valho, – toda ela densa pest ana de uma senda que ora dormita, ora desperta em sobres salto –, junto a esta barreira onde me vi sitas sem dizer ad eus e por isso os céus se tapam e des tapam, desenhando sumptuosas pen umbras na tua pele tão fin a e tão fê mea, quero dizer-te que te amo contra a explosão das estatísticas. 76


Agora, lágrima, dorme, no olho onde já não nasces, nem ousas ser embrião. Não toldes o que eu avisto, o que me veste, o que é visto. Não apagues os contornos deste disfarce de bicho, – a sombra colada ao chão, mancha de vulto postiço, besta de belo, mas besta, mostrando a sua barriga e a faca lá cravada, entre o alvo do umbigo e as primeiras costelas, ditas ossos flutuantes em memória dessa ave, ovo e voo, fole e fala, sopro de antes dos dentes safra de antes de dantes.

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L une Honte à moi qui ai frôlé plus de folie en un jour que je ne sais embrasser. Cette lune portée à dos ne quitte pas son croissant stérile. Cette lune une à une sans rancœur et sans rancune en quête d’une nuit d’été en quête d’une nuit d’étang, sur les rives de cet il qui m’est tu au fil du temps. Prince, comme je suis crapaud. Prince, comme tu es charmant.

78


DIAGONAL Fechem tudo. Deixem-me agora lá fora. Abram tudo deixem quem mora cá dentro. Ensurdeçam quando grito por socorro pois visto a pele de pedinte - digam que corro e não canso, digam que morro por gosto. Todos os santos ajudam, todos os anjos aplaudem, se de entre as pernas me cai um filho já nado morto. E com razão todos riem se o pensamento enterra o seu machado de guerra. Mas tu, amor, faz de mim aquilo que for mais útil ao que, sem pose, se opõe. Faz de mim o mais sagaz àquilo que me é oposto. Pois que és todo o meu bem e eu todo o teu desgosto.

79


ARITHMÉTIQUE Une de perdue dix de retrouvées. Une de retrouvée dix de perdues – c’est quoi donc l’éternité et ce rendez-vous manqué de la mer et du soleil? Si l’on veut s’y repérer, il faut gommer le début. Mais au cas où l’on préfère s’égarer une fois de trop, il faut faire du mot à mot, placer le devant derrière et laisser toute sa peau là où il manque une cible aux flèches lancés par l’arc du franc-tireur qui défend la caserne du visible.

80


Ao correr da pena não se esgota o sangue ao correr do sangue não se esgota a pena... É música inaudível a que teme o coração em sua interpretação do corpo e sua estação – Inverno terno e rebelde, Primavera quando ferve, Verão de púbis imberbe, Outono de sono em sono. É inaudível, vermelha, e música. Porém, ao correr da pena, tu navegas nesta veia meu amor, contracorrente, da mesquinha inspiração. E a poesia podia dar a si mesma a função de fazer ouvir o sangue inesgotavelmente outro.

81


CARTA À MINHA VELHA AMA A paixão duradoira, minha velha ama, é tão rara e rastejante quanto voadora – como ave que desperta o desejo trivial da imitação. O cinismo, por exemplo, velha ama, é um exemplo perfeito da destreza e do desprezo que a longa paixão suscita. O desdém imita muito bem – como nenhum outro sentimento – o mais ardente amor. Pois o cínico usa o pé coxo, o pé dormente, e uma língua tímida e expedita para fazer descarrilar quem entende colocar noutro carril, quem decide enfiar noutro funil. Será, minha velha ama, que a vida tão curta e pouca lhe sobe à boca, quando o amante incauto se revela em apego e desapego? 82


A chama, minha velha ama, queima a cera e o pavio, e o amante, preso por um fio, carrega em si o tule da bailarina e o chumbo do soldado apaixonado, ambos derretidos, na vela única que vela por dois. Se o tocarmos escalda. Só copiando o seu empenho em queimar as horas e os mapas e as etapas, é possível vê-lo esfriar. Ou, pelo menos, tentar.

83


Quando baixam os teus olhos e cortam o fio tenso dos dias, não sei se deva esconder-me para que eles me procurem entre frinchas de soalho entre fissuras de muro. Quantas vezes nos curvámos, nos virámos, revirámos, em busca dos teus olhos sem descanso – azul, cinzento e negro sobre um leite rosa malva a puxar para a órbita do branco. Preciso dos teus olhos e do fora de alcance do olhar para pousar dentro de ti como a ciência censurada do impulso. Como esse segredo sufocante entre as garras afiadas de um soluço.

84


O que era de comer secou no galho o que era para olhar foi camuflado o que era de escutar não foi gritado. Há quem diga por engano e avidez que é feio amar com boca de dizer, falar com boca cheia ao mesmo tempo... Porém, entre comer, olhar, escutar se aprendem certas formas de afagar sem servir de repasto ao sofrimento. Se desejo o que vejo e dou ouvidos às entranhas enroladas no pescoço buscando do amor conhecimento é porque nessa forma de tormento a fome não se esgota em meu jejum e a sede não sacia o teu olhar. Pois aquilo que se cheira e arrepia, aquilo que se toca agora a medo faz as vezes da primeira refeição. Os olhos endurecem como pão, os ouvidos não se viram para dentro e o corpo a cada esquina estende a mão.

85


A QUESTÃO DA UTILIDADE O passado deita-se no chão e estende-se ao comprido a nossos pés. Em horas de grande movimento serve ainda de atalho ao esquecimento de quem por convicção não admite que só nos valerá sofrer em vão.

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A LÍNGUA COLADA AO CÉU DA BOCA Sonho que perco os meus dentes e com eles a aptidão de falar sozinha em sonhos, de sorrir sem motivo também. Crescem-me os olhos até dispararem como balas e se esborracharem contra uma parede deixando marcas difíceis de limpar.

87


A NAU NÃO Sésamo Platão entrou na caverna de Ali-Babá e perguntou: – O que vem a ser esta pouca vergonha? Os quarenta ladrões choveram-lhe em cima como ouro na latrina do dilúvio. Platão ainda assim não mudou de ideias e ousou perguntar: – Dividimos a meias?

Lingerie Sobre um poente rosa cabaret rosa carne rosa charme rosa alarme, a renda negra das árvores subitamente despidas. Aquilo que vês não é, por isso passa a ser intensamente.

88


A parede onde bato com a cabeça é menos dura do que o osso imagina. À medida que eu avanço, ela recua, com rasgos de elegância bizantina e gestos de fazer corar magalas, trolhas, marçanos, carroceiros, marcianos. Não faz parte do visível que me enquadra, nem de outra dimensão criada à pressa... É isco que atrai e subtrai à falta de matéria na promessa. Só quem muito caminha se descai em falas incoerentes e sobe até mais não poder trepar. Quem espera que o sol se ponha e a noite cresça sem luar.

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PIANO PIANO Queres conhecer um pouco mais da prisão aberta dos olhos quando te fazem sinais de fogo? Eu te acolho na cela húmida, no catre infestado da pupila, no postigo sobre íris de céu, e também atrás das grades que caem como pestanas diante das sobrancelhas sobranceiras. Queres lembrar-te dessa vez em que olhos nos olhos nos prendemos aos humores lacrimais e nos perdemos por bermas e ribanceiras? Os que padecem dos males mais reais são ou não objecto de repreensão enquanto forma possível e impassível de realidade? Piano? Sano? Lontano?

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CURA DE BRANCURA O meu amor encontrou a lua presa a um galho do tronco que eu não sou em mata onde eu não estou. Não sei se talho esse ramo fazendo rolar a lua com sua voz de gazeta para o fundo da valeta. Não sei se página branca falha de tinta e de letra. Não sei se branca na preta por fim me quebro em encanto revendo preto no branco escrevendo vento no vento e atando a lua ao fio das fugas em pensamento. Claridade de papel oculta a raiz da voz. Onde houver céu, diz quem diz, por baixo estaremos nós.

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DU ELO A este distância bem medida, comedida, não se pergunta quem mata quem, mas sim qual será o primeiro a sorrir?

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Toda a poesia atirada pela janela Todas as palavras atiradas à cara da esmagadora minoria Todas as palavras roubadas à minoria esmagada Todas as palavras esmagadas pela maioria nos pedem gritam as mais exigentes pontuações. Menos o ponto final.

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Tu sabes que eu sei que sabes quantas vezes faço a festa lanço os foguetes à pressa e apanho as canas queimadas. Mas a festa acaba em pranto. Há foguetes que não sobem e me rebentam nas mãos. Nem sempre nascem rebentos de folhas e pensamentos nas canas que vou espetando no corpo amado de amante a mando de quem não sabes a mando de quem não sei.

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Se não te aperto em meus braços, nos meus vivo embaraçada e a nada vivo abraçada, errada mais do que errante de meus enganos lembrada que não de um rigor amante. Consta que o fulgor constante se apaga aos olhos que pairam asas de voo planante acima de toda a dor. À sombra mudo de cor, ao sol pareço corada: face ao meu próprio impudor, não espero ser impoluta, não tento ser perdoada, apenas me sinto ouvinte embora pouco escutada, eternamente seguinte, pela surdez derrotada.

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Fuga de ideias ao despertar: sou eu ou quem sou eu que não consegue abrir os olhos e caminhar? Parti um dia em busca da beleza e encontrei o belo indiferente em quase todas as formas que tinham modos de gente. Ainda ando à procura do belo diferente. Porém, não sei cavar as olheiras das freiras, nem percebo a sedução das frases mancas que simulam quando ondulam das brancas. Sou de cor como se diz e de corpo para todos os efeitos práticos de desnaturação.

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A carne abandona os seus espíritos para não ser preterida e derrama este Outono sem sono esta tensão de estiva esta secura estival para se manter viva. Derrama-se ela, toda ela, a teus pés, ó caminhante, pois que calcas todo o piso como se fora ferida. Ó pés cujas plantas não rastejam, ouvi o que vos digo ao ouvido calejado: a carne fala sozinha como se só soubesse ou pudesse fazer assim. Não fala em solilóquio como o Príncipe melancólico, mas como a criada de quarto e o sapo agónico.

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OS SINISTRADOS Pode alguém retomar o seu sorriso no exacto ponto onde o deixou, o texto do que é rosto, do que é traço, a partir do instante calcinado a partir do momento monumento a partir do silêncio em que partiu? Pode alguém retomar esse sorriso que roçou o real e se sumiu, sorriso de lado a lado extremo sem ser extremado, que ninguém vê, ninguém viu?

98


Outubro


MELANCOLIA Onde nos leva sem guia a divisão deste mundo e quem nos traz divididos entre o saque perpetrado à distância e a oferta sem procura dos sentidos? Se cai uma manhã, já sobe a noite. Se uma vénia enfim remata a cena muda, logo corre um burburinho de actriz nua na plateia do teu peito que se aperta no corpete de um abraço ou de uma briga. Minha dama e cavaleiro em seu ginete, meu refrão a galope na cantiga trauteada contra o fel da melodia, contra o mel de toda a flor em quarto escuro, contra o sal que destempera esta iguaria, servida à mesa e no leito de agonia de quem foi proclamado vencedor: Pois toda a dor combate e se debate diante da surpresa de outra dor.

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Entre os despojos das palavras poderias colher as mais rasteiras, as mais ávidas de colagem ao papel que, por derrota ou vitória, lhes coube. Nas pausas entre as palavras, meu amor, poderias descobrir plantas informes, as mais dispostas a tornarem-se vorazes, e, por desleixo ou renúncia, enormes. Na nassa rota das frases, meu amado, talvez possas – quem sabe? – descobrir o desejo de remendar os dias com fios de mim, com nós fabulosos e cegos, antes de me lançares ao mar. Porém, agarrado à cauda da sereia, do meu canto te afastas ou te isolas e julgas ouvir as ondas debaixo da cera com que tapas os tímpanos e moldas a concha rósea das orelhas. Por que não sou eu espuma apenas? Por que não me desvaneço em mil olhares breves e leves?

101


No fundo deste meu poço quem bem ouço não me ouve... Flutuo como um destroço do navio do ouvido e a bordo levo o desgosto e as queixas de um foragido. Se és de carne, rói o osso. Sé és de osso desumano, chupa o senão do tutano desenganando o engano do destino e seu remoço. Porém se tu me trocares por carne fria ao almoço e por carne requentada em jantar à luz das velas, como medir as sequelas que me mantêm calada, carne de ser quase nada, casco sem leme ou cordame, sem mastro ou tesão das telas? Fabrico as minhas janelas e forjo as minhas marés que vão morrer a teus pés como se fossem tão belas como duvidas mas és.

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O fruto que se despenha desse ramo inesperado como planeta fugido a uma idade de ouro à órbita de uma ideia O fruto que se acanha e sangra e sua e suspira e assenta em sua queda luva no lugar de mão óleo de olho em fechadura chave de furar o mundo boca e buraco e esfera O fruto que não apanha impossivelmente fútil impossivelmente verde perante quem o desdenha O fruto que se desenha entre pernas longa espera maduro e tenro e duro

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CORDA PERCUTIDA A primeira das perguntas tem o peso de uma náusea e, caso a caso, a resposta devolve à entoação nódoa à nódoa se junta... Lua, não cabes no céu. Rua, não cabes em ti. Pessoa de amor, não cabes na porta de sol e sombra que bate no coração. Ora, a primeira pergunta à sua intenção retorna ao tempo que a luz se entorna numa frase de fachada. Voz que não cabes no ventre, Nós que não cabes aqui, Pessoa em peças já soltas, não faças pelas traseiras o que não queres para ti. Uma resposta endivida quem não nasceu devedor: desgraça nunca vem só, assim me vês meu amor... E graça sempre traduz língua de perguntador.

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Acordo muitas vezes para olhar a seda fluvial cor de marfim que corre entre os teus ombros até aos rins. Uma brisa entre dois sonos, um suspiro, um silêncio crepitando atrás do ouvido, um sim de folha seca ou de outra fonte já bastam para eu logo despertar. Desejo ser a margem que te estreita ora o leite, ora o leito onde te alargas, cavando a planta em sol do labirinto no menor pressentimento de lugar. Desejo ser o delta enlouquecido pelo cheiro de haver mar. Desejo desejar que me desejes, desejo que me chames pelo nome e chamar pelo teu de amante amigo imenso como só a mansidão – palavra abocanhada pela fera em frase incompleta, amansada e único sinal desconhecido.

105


Eu sou sem luz e sem rede entre troncos sem baloiço com desejos de entre pregas persianas e carne de penumbra em calaboiço suspiro de sofá sob lençol cama coberta de folhas derretida se me olhas e se me ignoras sem rol eu sou depois da hora e embora vás embora embora venhas, após diante de ti

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GRAIN DE BEAUTÉ Mais salgado que o mar de rosas mais agridoce que os rios de sangue mais soldado que o desconhecido mais descalço que afro afrodite mais agravante que a circunstância mais forçado que o fim de estação mais fratricida que a origem mais falso que o ego e os seus meios termos com os seus meios todos eles tu de tudo todos eles eus

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OS SEMÁFOROS Quem é meu único bem todo o bem em si transporta e mal me quer se o espero. Cilada na vez do sono, presa e faro num só corpo, ora trono e terramoto, ora mar morto, rei mosto. Quem é meu bem e também meu melhor adormecido não dorme e sonha comigo, faltando ao desencontro, troçando do que não é porque vai sendo e foi sido.

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Não ouças o que já está – por lei do menor reforço – livre das juras de amor e da palavra em perigo. Não ouças quem já se diz sem beijar o chão que pisa e o céu riscado a giz como ardósia da taberna. Se austera te soa a voz que te reduz à garganta e te confina ao sufoco, pouco salvarás do pouco que ontem serviu de tábua rasa da lei rosa a rosa em seu perfume afogada. Mas se ecoa um silêncio bordado a cinza e a prata por mil mãos que foram tuas grande tela emoldurada de transeuntes e ruas, abre então o coração confessa o que já esqueceste em actos e pensamentos. E com os dedos imundos e com ideias imundas faz-te ao avesso da estrada e ao preciso contrário da tua eterna chegada.

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O CICLO REPRODUTOR DAS PALAVRAS Têm mais olhos que barriga as palavras. Quanto mais sibilinas mais directas e cansadas, logo que delas fazemos um cavalo de batalha ou um belo exército em debandada. Se por inteiro nos falam e dizem por atacado, nada resta que nos tape e nos proteja do frio. Hoje vieste vestido de velhas correntes de ar. Não abres os braços nem a boca. Apenas te interrompes entre dois silêncios. Têm mais boca que barriga as palavras prenhas que dizem as curvas nas rectas.

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EOO bis Falavas da tua língua aprendida e ensinada na urgência entre a parca penumbra da barraca e o vulto informe do pelotão de fuzilamento. E eu sonhava uma língua tão só nossa, tão rebelde a forçar o esquecimento que todos nos ouviriam como o campo aberto escuta as frases soltas do vento. Uma língua matutina e firmemente indecisa entre a coisa que é precisa e o fim a que se destina.

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BABA 1 Puderas tu emprestar-me a escrita apesar da vida que por cima do teu ombro fiz correr à contra mão e escorrer e escorregar até me sentir assim de mim mesma empobrecida – pobre e mal agradecida. Puderas tu não contar pelos dedos de uma mão aquilo que só se narra de mão dada com a voz como se toda a beleza coubesse nesse senão. 2 Se entre nós o dia rompe, a mão não corromperá. A carne é pano que tapa, hora breve em seu tecido – cobre, descobre e maltrata quem fica fora do mapa. Mão casta, meu amor, nada lhe basta...

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A outra vida não tem merecimento nem começo que se possa augurar. Só nos resta prosseguir demasiando... Abri portas ao desejo de deserto. Baixai pálpebras, descei persianas. Escondei o leite dentro das mamas. Olhai o passado como presente incerto. Por cima deste sol já se adivinha uma conversa na posição deitada. E a terra, sempre pronta a ser pisada, recorta no seu manto a nossa fala e as folhas de pudor da velha vinha.

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Velho tapume, o corpo encobre a obra onde se pintam mãos primeiras mãos segundas à cadência ansiosa de quem tem falta do tempo que sobra falta do tempo que vem. Se as paredes só me sobem devagar, se desmancho a longa frase que me diz, é por não encontrar essa palavra que de mim te dirá um fim feliz e não hesitará em dilatar o prazo de dizer sem acabar. Eu sou toda eu indesejável e já não desencanto esconderijo atrás deste meu corpo que não fiz.

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L’AUTRE INVITATION AU VOYAGE ce serait parfait si je n’existais que comme un fantôme pas d’yeux, pas de seins, pas d’os, pas de chair privée de ces traits qui sont sans attraits et te pompent l’air ce serait parfait si injustement j’avais le bon mot celui qui veut dire qu’on ne dit pas trop mirage de rencontre contre le désert... ai-je assez souffert les affres d’orphée et de son aimée? tu parles d’enfer et tu m’y égares... hélas je regarde ce qui me sépare d’être regardée chassée et châtiée je cherche la case d’où l’on ne part pas

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Debaixo da cama como a pequena ladra que rouba à trama dos sonhos uma velhice passada Debaixo do colchão como o pé de meia talvez a inocente guloseima ou o mudo desuso da moeda Debaixo das molas rangendo na planura estrangulada do soalho tão-só tapete de poeira Não corre sopro não ri lufada de ar fresco, – apenas uma forma exacta a forma sobre a forma e a fome de espreitar aquilo que o tempo come Exceder é já ceder. Ceder-se. Eis a experiência-limite.

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Excita, o cheiro do sangue, ao que não dizem os cães, nem as reses, nem as presas, mas quem guarda sem cuidar. Excita e corre à margem, esse perfume do verbo lentamente transformado numa carne que só volta ao caminho já traçado. Se do lobo e da ovelha o pastor veste o disfarce para defender a pele, há que procurar o fio que é cimo da serrania e gume da sua faca exposta ao celeste impasse ao ritmo de um frente-a-frente. Há que procurar o fio que é história da cumeada da terra pouco pisada, ruga rara e rascunhada na origem do que vemos e damos nome de face.

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DIRT DIRT DIRT enforcado nas palavras balança o texto em seu poste e o poeta em seu posto. atrás do céu quase branco brilha um sol já quase fosco: dizem que escrevo por gosto... mas nem toda a gente pensa que corro contra a ofensa borrando o meu próprio rosto.

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Se é de noite sangro a negro. Em nenhuma folha virgem se pinta a preto no branco aquilo que todos sabem mas para mim é segredo. Escrever, escrever na cabeça, derramar obscuras frases que mudam a toda a pressa para não serem fixadas. Assim o pouco que resta é uma espécie de nada que resiste como nada a um nada de outra espécie. A noite despe o que veste roupa escura e transparente até ficar açaimada pela rede remendada que entre as malhas captura desejos de madrugada.

119


Tens a arte de dizer não venhas vem de dizer na cara sem abrir a boca nem baixar as calças nem usar aquelas alças que servem para erguer o tronco acima do ventre e do seu sistema a quente. tens a arte rara de rarear por onde faltas de calcar calar por onde te escondes em breves falas hábil prestidigitador preparando o falso fundo e a cena de outro mundo onde pousas tuas malas que dão para os bastidores parto sem sombra de luz parto sem sombra de dores

120


Tu me disais viens contre moi pas vers mais contre si je ne me trompe mémoire d’éléphant c’était là un morceau de poésie avalé imprudemment travail enfantin et clandestin combat à perte de vue pour chasser les pires bévues du destin, ce triste sire, et de sa mire... pas de duel au soleil pas de duel en solo mais course contre la montre grande ourse et toile du matin

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INIMPUTÁVEL Molhando o pico da pena na água turva dos olhos, não se chega ao fim da linha. Toda a luz se vê sorvida pelo desenho da letra. Toda a sombra se concentra numa nuvem de pimenta. Escrita no banco dos réus, ó céus que não caminhais, ouvi o que não se canta até romper a cantiga como se rompe um sapato. Diante da pele do urso, da retórica da venda, do argumento da caça, faz-se um silêncio ao contrário desse tempo que não passa e vira estado das coisas e vira estado de sítio e vira estado de graça.

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ÉTÉ INDIEN Fumar os lápis cigarro após cigarro Desenhar na calçada instável a sombra e a ideia fixa do passarinho letal Antever a justeza desse tom de quem sabe entrar em crise como se abrisse a gaiola e pedisse esmola Convalescer da mágoa rude e oca, quanto mais leve e cantante mais profunda e verdadeira água de levar sujeira Viver a felicidade por surtos – pura epidemia com sustos e recaídas chagas, chaleira gelada, delírios, unhas compridas de gente que acamou e foi esquecida na cama Vivê-la soprando a chama para voltar a acendê-la Ficar de sentinela à cabeceira e logo de alerta aos pés, dando mais voltas ao sono que uma criança de colo tombada no precipício do lençol branco no escuro 123


Ficar agarrada ao galho fruto tocado, intocado, fruto podre de maduro – em paraíso primeiro em paraíso segundo em paraíso terceiro... Trepa, meu amor, o muro que cresce frente aos teus olhos para abanar este ramo

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A TEORIA DA CULPA Dizem entendidos na matéria, arremessando argumentos contra mudos pensamentos, que não há fumo sem fogo. Por certo não se recordam das volutas de vapor que as águas frias emanam furando o véu da manhã. Da culpa que não resulta em livre arrependimento, da subida mais abrupta que não acaba em descida, se faz o fumo sem fogo, se faz o fogo sem lenha, quer venha logo ou não venha um pensamento discreto indomado e insolente onde só cabe o motivo de estar vivo o que está vivo.

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Reaver sem olhar ao que não volta pois do fardo flutuando à flor do sangue algo ficou, vivo e cativo, noutra margem. Para barqueiro o coração fora talhado... Porém, em lugar de se enredar no nó das veias, de sulcar o seu caminho de regresso, de ser motor da travessia a são e salvo, ele parou e abismou-se na corrente sugado para fundos indizíveis. Ninguém se mira na torrente e no entanto a velha amante prefere o turbilhão ao encanto sem ruga dos espelhos.

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Aquele a quem falta um dedo o do tacto aquele que deitou fora uma forma de sapato e o sentido do medo aquele a quem sobram olhos e obras e margem para manobras aquele a quem nada falta nem mesmo a falta que faz aquele de quem se fala aquele que não se safa nem se apaga nem se paga aquele por quem se chora e cora até à raiz aquele que te conhece e te acende se te ignora e te acende se te atende aquele por quem além para o mal e para o bem aquele por quem se curva a recta entre dois pontos aquele que te comove aquele por quem se move a montanha e a planura aquele que em ti perdura e que perdes na lonjura perto tão perto de ti aquele que parte o prato depois de comida a sopa aquele infinito parto aquele que rasga a boca e não se afunda num beijo aquele sete partidas aquele farol e cais 127


tropeçando na promessa aquele que tão depressa e tanto sol de tristeza aquele que agarra a mão com que escreves e lhe pedes perdão mil vezes perdão aquele que é céu e chão e faca de ponta e mola e faca de ponta e lua e linha que tudo liga numa frase interminável aquele que sempre amável acima de tudo amado aquele que lado a lado trazes em ti trespassado aquele fulgor e fúria cor de jura e cor de injúria aquele que errante e raro aquele que nunca erra se diz que morde não ferra inferido do que fere induzido do que mata aquele que desacata e te transforma em desordem e te dá fome e fartura aquele que é ombro nu barriga vazia e cheia seda azul amarrotada marfim pau rosa maremoto aquele que se faz outro no lugar onde demora aquele que te faz corpo prestes a desfalecer aquele onde és cabeça aquele onde queres ser 128


sua figura de proa รกgua vela viga e vaga suor em sua almofada aquele que te faz tarde e arde por onde sopra aquele que tu e tu que tudo e tudo

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PEDIDO DE RESGATE do desejo e da vontade me concebes deserdada, da minha escrita refém e pela vida ultrajada, reclusa onde não estás, finando-me onde não fores, boca de um rio amarrado à náusea de ser corrente incompleta absurdamente.

130


Virás com braço de brisa como se ela soprasse do teu lado, inchando o coração e a camisa que não vestes do avesso ou por acaso porque é tão alto o preço da desordem... virás com mil efeitos capilares que usas como motes e refrães, temendo o tom das rajadas de improviso, virando contra todos o juízo que pareces formular contra ti mesmo. virás de braço já dado a torcer para outro e outro lado. talvez... mas não eras obrigado.

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para baixo todos os cantos me acudam

Se buscasses lugar onde pousar a cabeça e não o pensamento, se foras ao conforto pouco dado, ao comércio menos apto, ao confronto mais sedento, outra visão terias do que é posse do que é cobiça e ciúme antes não fosse e não seja a faca afiando o gume em boca que me não beija.

132


A quem falavas ao certo quando mentias com tal convicção que a minha solidão não perdoava os instantes de deserto em que de ti duvidava? A quem falavas, amor? A mim não, seguramente, pois eu te pedia formas inauditas, improváveis de uma verdade menor? A quem falavas então se comigo não falavas, e se, para além do mais, desconfias das palavras e não confias em ti? Com quem falaste estes anos? Quem usurpou o meu corpo, a voz da minha mudez, a minha nudez também até eu não ser ninguém? A quem deste força e facto furtando tempo ao meu tempo, roendo frases ao texto que me servia de ponte entre o que via, não via e o que vi antes de ver? Perdoa este meu perder que julgas mau perdedor... Devolve a ti mesmo a dor de que te fazes sujeito. 133


E se acaso nos enganos encontras consolação ou ilusão de consolo, não digas que existe tinta por haver mata-borrão.

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QUADROPEDIA Por ti ninguém pagaria um triste tostão furado nesta feira de gado onde acordaste inesperadamente presa e rês e reles perdida sob as tuas velhas peles até mais não poderes mirrar. Não consegues distinguir – desgraça tua… – o remorso que te assenta em quatro patas do fardo de arrependimento que te vai servindo de ração – como o jumento que julga roubar seu magro sustento se mordisca uma mão cheia da palha que transportou. Onde vais, perguntas tu, em lugar de perguntares aonde vou, em lugar de perguntares aonde estou, em lugar de perguntares aonde OU.

135


Falavas do princípio burguês da separação de corpo como se inventasses a pólvora seca e estivesses sentado num barril explosivo. A teu bel prazer podias confundir a altura do trono e a necessidade do ponto de vista. Aludias por meias palavras à satisfação como uma conquista e nem por um segundo te ocorria que insatisfazendo se vai fazendo um mundo interior a percorrer. E na tua boca a verdade derretia qual terceira idade do rebuçado, o mel e a baba, a pimenta contrafeita, antes no papo que na montra da sinistra mercearia. Nem sequer te via estampada no rosto a careta de quem duvida antes de comprar uma ideia feita à pressa por muito apetitosa que ela pareça. Tenho comigo, meu amor, uma quase incerteza que te destroçaria o coração; mas tu não desejas explodir, chega-te o simulacro de seres combustível e o papel gorduroso embrulhando uma encenação de caça: a corça sangra na ara e a seta alguém a dispara antevendo uma ceia suculenta. 136


Tenho comigo a coisa que me falta e um desânimo animal que não se verte num molde mental ou sexual, nem se cose com linhas nem se descose nas frases, mascaradas de adivinhas. Em tudo isto vês, por culpa talvez minha, uma forma enjoativa, serôdia desde e para sempre. Porém se falarmos da fisga rigorosamente, percebemos que é de ciúme do pássaro e de voo que se trata. Com uma pedra não muito grande se mata aquilo que não rasteja pouco acima da cabeça. Não te importa saber por onde vou já que semeias nos caminhos do passado as ciladas onde caí, presumindo que ainda lá estou, bem abaixo do nível do solo, enterrada viva; todos os meus olhos se abriram e os vermes vieram devorá-los até que os olhos vermes se tornaram.

137


Era um caixão, o Cavalo de Tróia, e Ulisses media forças com os vermes. Ainda assim, posso perguntar-te à queima-roupa, (sabendo de antemão que só eu ardo neste lume e neste terra a terra) de que nos lembramos quando nos lembramos de que nos lembramos. Ou seja: onde fica o meio de uma cama?

138


Se embalar um menino por entre uivos e gritos se afagar meu amor com o silêncio da mão a mim mesma embalo, afago, e ao mundo inteiro declaro sem palavras que se digam a emoção de sentir a outra em mim despertada o outro em mim mal dormido. se nada pode a palavra que sempre diz a distância se nada pode o silêncio que sempre diz a presença, qual o lugar deste corpo ruína fora do sítio roído fora do tempo pela feroz impotência – fonte habitada por foz supurando pensamento? eu busco a margem que abraça a confluência que engrossa o oceano que engole o vento que nos respira ligando o negro pulmão à mais ébria transparência e o farol que alumia sem olhar à luz que gasta nem à origem do barco nem ao tom da intempérie. na vez do sol e da água vejo a cara e sinto a carne de que sou apenas parte e à outra parte me leva fugida à lei e à treva. 139


AUTRES TRANCHÉES l’horizon sourit – il aurait, à ce qu’on dit, changé son fusil d’épaule; mais moi je n’ai jamais appris à tirer dans tous les sens – je crois bien, mon bien aimé, que je préfère la pensée à toute forme d’aisance. seules les pensées nourriront un amour qui se prolonge contre cette tentation qui porte un fardeau de noms jusqu’à la fosse commune. ce trop plein d’éternité se déguise sous une brèche faisant des mines de lacune. ô armure grinçante et lourde quittant sa dame au tournoi et prenant la clef des champs, jamais un amant sincère ne désire demander au fil ténu et fragile qui le lie à ses pensées d’en être un jour délivré.

140


Si l’horizon n’offre plus la même teinte la même feinte la même grisaille, il faut coucher sur la paille de l’amour pour chercher la belle étoile derrière l’effet de muraille

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A vaga de sono salpica primeiro quem passa por perto. apagam-se as marcas e as pernas das barcas incham as marés. areal deserto pronto a ser descrito, a ser desescrito – juncado de ouvidos no lugar de conchas de seixos, de espinhas... o texto é molusco monstro de moleza e de lusco-fusco. por fundos sugada cuspida entre espuma, a frase não fode nem me sai de cima. se morde quem ladra não ferra quem lê. a mim se acrescenta me serve de fardo. vai perdendo forma ao tempo que eu ardo no que não se foca, no que não se vê, 142


no que nĂŁo acena, no que nĂŁo se vira se a cama Ă deriva cheira a lenha seca. ruindo, crepito, e fabrico cinza antes de ser pira.

143


La bergère folie s’invente des moutons. son croûton de pain, son couteau rouillé, son fromage puant s’étalent sur l’herbe verte du pré. se mouchant aux nuages plus bas, elle est parfois happée par le ciel. et la voilà qui vole au-dessus de ses brebis... le monde lui semble bien petit. pourquoi se donner la peine de compter les têtes? les siennes, peut-être...

144


Pão de outono um travo a pudor um escuro mais denso se penso dispenso o de cada dia... se paro porém cravo a mão no ventre e o pé no presente pão de outono imundo veludo e bolor de vulva como ele endureço nele quebro as garras e os olhos dos dentes pão de outono migalha a migalha miolo viúvo ruído de rua estranha levedura que corrói o sono pão de outono bocado de boca ázimo e azul paredes ruindo ao ritmo dos passos de quem é bem vindo 145


p達o de outono guardado na arca onde cabe tudo entre duas chuvas passei desbotada e nua das cores que usei no passado para ser usada

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A MÃO E A PALMATÓRIA sublime a invernia mais do que eu capaz de cidade e ferocidade de sentimento e consentimento. prazer de ser metal cravado em carne até à quintessência dum tormento atroz e original. breves visitas tão breves como a quarto de hospital ou parlatório de prisão... qual dos dois mais incomodado aquele que visita ou quem é visitado?

147


SLEEP NO MORE fechada mas não fachada – frente a isso que não isto, ouvir-se-á gota a gota, qual suplício, aquilo que faz as vezes da crítica ou da razão obscura e do sol de pouca dura brilhando por entre troncos. cada coisa se recorda do ser muito, do ser horda, de ser pele de uma figura, de ser carne de uma forma pura e da vontade suspeita de mudar de sistema, de satélite, de planeta, de terra, de tema. cada coisa se recorda da dúvida insistente, sintomática: sim ou não não poupam a vil decência de mais uma equivalência. onde o tronco esconde a floresta 148


escarra e hĂĄ lugar para quem se presta ao jogo antigo do esconder, das escondidas, de estar escondido de si, de estar escondido consigo, eu te vejo, eu te persigo, eu te perco e me persegues. se ouso logo te atreves a nĂŁo ousar nĂŁo usar. e o fogo lambe os ramos reduz a chamas as folhas reduz a cinzas as sombras amenas. apenas falando apenas como se pode acertar? como se pode falhar?

149


Le parfait état de manque c’est quand il manque seulement cela dont on nous dit bien qu’il ne faut pas espérer qu’il faut donc s’y attendre rendre les armes rouillées la chair dure et la chair tendre. le parfait état de manque fera dérailler les trains tomber les yeux de leurs trous hurler les loups moribonds huiler les gonds des humains et crier les pierres du port encore encore et encore on a faim et le fin mot n’assouvit pas!

150


NU PARA UM CONCERTO No alto e no baixo ventre uma só voz se afunila se faz minúscula pupila sensível à luz e à escuridão. sua moleza de colchão novo arrepia fere os tímpanos refreia os ímpetos. entre a voz e a visão, uma indivisão de campos onde impera o sulco a cicatriz a secura de fruto petrificado lançado à cara ou à coroa, deixando um rasto de arpejo no desejo de haver terra mãos que a cuidem talvez a colham e a recolham. se fechares os olhos diante do teu amante antes de lhe já lhe contares o porquê de ser segredo e confissão, verás um bicho malhado cujas manchas alastram e não se bastam – continentes à deriva, 151


gordas cerejas no bolo do oceano da dor. não poderás decidir se o amor te tornará troféu vivo ou troféu morto. por isso ou sem ou com isso NÃO MATARÁS e numa incerta desmedida serás como te descrevem bicho abaixo de cão

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CONCERTO PARA UM NU Haveria um instrumento de sopro um fagote, por exemplo, e um bosque de carvalhos abotoados até ao pescoço alguns torrões de musgo suando veludos de som e ali jacente como sobre um escrínio o esqueleto elegante de uma ave uma cadeira talvez com o assento de palhinha arrombado e um casaco triste no encosto esquecido de ter sido agasalho de alguém no chão, haveria também, uma partitura de folha caduca e uma gravura representando esses músculos a que se dá o nome de gémeos e que a marcha triunfante deseduca haveria vontade de mexer nos objectos mais abjectos de produzir o milagre de uma natureza menos morta alguém tocaria à porta surpreendendo o desejo de um beijo 153


a pairar entre quatro paredes borboleta lenta, barulhenta ninguém se daria ao trabalho de abrir ninguém se daria ao trabalho de fugir dali e cada coisa seria a sua própria plateia uma espécie de ideia ora fixa ora prolixa no lá fora do cá dentro rebentariam foguetes da cor das árvores azuis e do céu primeiramente castanho só se ouviriam vírgulas na vez dos pontos de exclamação e nós estaríamos entornados num andante molto vivace a sós com os nossos passos e o eco que os faria parecer atrasados mudos de um corpo ainda por nascer todo ele afogueado porque viria a correr

154


O fantasma não se agarra às dobras de um só lençol. pairando pesadamente assombra as eras da casa, mora debaixo de armários como criança escondida esquecida no esconderijo que cheira a suor e mijo. puxando por uma ponta da cama um dia desfeita, logo o lençol vira tela lua a lua amarrotada... o fantasma não se amarra, se assombra é porque o enxotam mostrando falso terror diante da ausência ingrata de quem despe o desamor e faz trabalho de sapa.

155


CÉU E GINECEU Fora do tempo me salta a tampa – contudo nem caixinha de surpresas, nem caixote, nem caixão, nem caixa de papelão me servem de arrumação. É na garganta que vibra, sufoca e desobedece uma risível esperança, uma praga e uma prece. É na garganta que fibra de não ser mãe dá-me a mão, de não ser mão dá-me a mãe, e dá-me corda também.

156


Não contas como nem quando mas trazes os bolsos cheios de trocos, grãos e calhaus, areias do outro mundo, coisas que vão chocalhando no fundo do meu ouvido e do meu sexo esquecido. sou esposa calamitosa, rosa espinhos toda ela, bocejando e trovejando entre quem deu e quem dera. flor de rumos e rumores ao caule arrancada à bruta murcho em mão ininterrupta. nem me dou na água choca das jarras de estimação. nem nas sebes penteadas por varinhas de condão. só no canto dessa boca onde mirra o teu sorriso me sou em flor sem aviso. se me recusas a água que entre teus dentes brota leva-me pois no teu bolso como moeda de troca.

157


Será que vais madrugar, amor, – e que bem esse verbo soa entre rápidos de água muda e carícias sonoras de canoa? Será que puxarás pelo fio da estrela do pastor em seu exílio como quem chama o céu à terra e a luz a capítulo? Será que à pressa despirás as roupas de que a noite se traveste, os brilhos a que o corpo se submete, para saíres à rua nu, antílope doce e baço, cabra cegada pela claridade e pelo meu embaraço? Num sonho de aeroporto aterram ideias negras. Só tu me sossegas. Só tu não me sossegas.

158


Novembro


A COMÉDIA DA LITERATURA Se no começo era o verbo, noutro começo era a letra. E logo o verme da escrita se introduziu na maçã que inchou como a tal rã bovina até às entranhas pois o verme não tardou a transformar-se em serpente. O que se sabe portanto de fonte muito insegura é que a pura literatura se envolveu completamente numa aventura de inchaço para a qual até à data não há nome que nos valha nem memória já futura de uma cura insensata. Se no começo era o mal e o corte pela raiz, quem nos disse e quem nos diz o lugar onde se pensa a dieta adequada – nem sal, nem sol, nem pimenta, açúcar ainda menos... – e o tom da convalescença? Numa frase muito curta se deitou a paciente que se queixa a toda a hora de ter o corpo dormente e boa parte da alma privada de cobertor destapada até aos pés a dormir sempre for fora. 160


Em pátrias silenciosas sem língua a bater nos dentes e cordas de esganar som, que seria deste inchaço de ave reduzida ao papo letra a letra, grão a grão?

161


Cheiro a chuva, cheiro a mofo, alegria de clarete que canta em copo de pé e embacia essa lente que faz ver tudo mais perto. perfume a terra revolta quando se pisa o torrão e a sola se cola ao chão como carícia na cara ou selo beijando carta. aroma de arrancar vermes ao solo invertebrado, tempo de contar os ossos e calcular a jangada a fabricar com destroços. odores sem santidade, calor debruado a frio, verso inverso do vazio renunciando à qualidade de ser berço de outro verso. fedor a roupa obscena que o céu pôs a arejar tão suja que até o bicho a espolinhar-se no lixo já consegue afugentar. fragrância a luto cerrado a cera e a carnes rijas a flores na flor da idade, o facto contra o olfacto de uma fonte autorizada. 162


porĂŠm entre nu e nuvem uma aberta se desenha e logo o corpo se empenha em suores, em arrepios, em torrentes de ternura.

163


Dizem-me que já recebi as asas para voar e o fogo para as queimar mas que não soube dar uso ao muito que me foi dado e que disso não me acuso. porém quem ousará desusar isso que já recebi? isto é: às minhas custas e costas quem pode ser-me voando e arder dentro de mim, longo pleito incinerando a carne de ser sujeito e o verbo intransitivo de viver e de estar vivo ...?

164


Este sítio onde as águas se separam esta água onde o sítio desagua esta margem já tão perto de outra margem esta fonte já tão perto da secura se te abeiras, logo foge o teu cenário, e na cena já vazia não te enfrentas se te afastas, não conheces quem persegues, e talvez só te persiga quem inventas por baixo da fervura desta rua há um mapa que te serve de lençol, e, à escala, uma cabeça que calcula a trama em que o sol enreda o sol sumindo entre as pedras da calçada, nem passos, nem suspiros deixam rasto… as casas cabem numa só fachada e o céu não passa de uma pincelada eu mancho, tu apagas, eu alastro

165


OS SACERDOTES Tão doce, a irmana noite, que nos rói o pé e a perna e faz ranger como porta um coração quase velho e um velho quase quase coração – meada de algum perdão perdida do seu novelo. Tão doce, a noite marmota que entre gorduras e brumas perto de um bico de gás busca um irmão arganaz, rastejando e ruminando – mais um acto, uma palavra, e a alma quase se lava, a quase alma se vala, quase tudo tanto faz. Perto do fosso dos olhos, e da cova nos olhar, ora raros, ora ratos, boca de tigre nos beija e nada de nós sobeja. Todo mundo nos inveja. mana noite, mana noite, ai que a ternura te aleija. Caídos numa sarjeta, de água choca inebriados, vivemos todas as quedas. E todos os desencontros nos foram embriaguez. 166


E toda a sobriedade nos era de antemão mais ébria que a bebedeira para sempre passageira sem malas no meu porão. Amor, bagagem de mão, anterior a ser eterno, fora de sua estação pino do estio em inverno avesso da duração e tão directa viagem. Se morto uma vez te viras a quem viravas as costas para que mostrar o que mostras? Ao cais, ao porto talvez, onde te espera esta fera onde te espuma, te ferra, onde te peso, te pluma, onde te capa, te espada onde te vão e te escada onde onda és

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Os gigantes não reparam no que pisam levam carne agarrada aos seus sapatos, e caca colada aos pés quando passeiam descalços. para beijar os pés brancos de um gigante é preciso plantar um feijoeiro e trepar muito depressa, folha a folha, chegar antes de quem já subiu primeiro. os gigantes são tão ternos e tão tontos que adormecem como pedras inocentes no seu próprio regaço maternal sorrindo aos anjos e arreganhando os dentes. se despertam de candeias às avessas, a fúria dos gigantes faz tremer o mundo que não sai do seu lugar por muito que o façam estremecer. os gigantes só soletram em voz alta porque não guardam segredos para dentro porque não sabem segredar no timbre certo porque não podem dividir o pensamento. quando um gigante se agiganta logo teme que outro gigante lhe venha fazer frente escondendo o sol, fazendo recuar a sombra que nasce para toda a gente.

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ANDA LUZ O CÃO A ternura do vivo e a rigidez do morto não explicam a quem ousa perguntar a doçura de estar triste quando ainda se resiste quando a tristeza inconfessável se verte numa cova onde não cabe nem consegue transbordar. É essa tensão tão luminosa que anima o que caminha devagar sentenciando e penitenciando, forjando uma energia dócil e doente, prolongando as pernas e encurtando a estrada incessantemente. Mas também existe a luz do nado-morto, a ternura do dividido e a rigidez do divino. E ainda o sol nascente, o sol poente, o punhal do sol a pino, a noite desde nunca, o uivo desde sempre.

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À QUELQUE CHOSE BONHEUR EST BON? O abandono tem os seus rumos, os seus aprumos, e a companhia capricha também no trajo que veste, entre o seu desnorte e o corte e costura – em cima do corpo se prova esta roupa e o veneno de medeia, o puro veneno de uma ideia. Eis pois o anjo vaticinador, anjo guarda-roupa com espelho embutido... Quem nele se mira logo se confia à lei do descuido e do esbanjamento. Eis pois o que resta dos homens prodigiosamente sós: será que só zelam pela nova companhia essa que o espelho anuncia como norma e forma? A matéria, há que dizê-lo, tem esgares de transparência que não flectem, nem reflectem. É ela que o anjo combate aos socos e aos pontapés, quando o olhar vira as costas. 170


A LAGARTA EXCURSIONÁRIA nem o tal gosto frugal que me gabaste e eu gabei, nem o gosto pela troca que me deste e eu te dei ainda menos o gáudio de ser parte da partilha... antes guerra declarada, estado de sítio e de susto; só se pára a muito custo porque o corpo não aquece quando se está de abalada. e os danos colaterais: rugas que nunca sorriem regras que nunca nos fogem saltos mortais, piruetas, e um travo a restrição que põe a salvo o excesso. ó céus, por onde começo a descolar desta terra quatro quintos de água mole um quinto de pedra dura? por onde rasteja o sol que longamente supura?

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Porque era noite cerrada e nem árvore nem humano podiam estender-me a mão, fui caindo no abismo da mais feroz excepção. Porque era noite cerrada sem a barrela de lua para lavar mancha a mancha o desejo de ser tua, sou fera ordem gritada por alguém que não recua. Porque era noite cerrada devia fechar os olhos e manter a ilusão de andar anestesiada até alguém decidir de que hei-de ser amputada. Porque era noite cerrada que escolha louca ou sagaz encontrava pela frente a não ser apalpada por todos os meus fantasmas ao longo da caminhada? Porque era noite cerrada os meus passos ecoavam na cabeça apedrejada pelos olhares minerais e as palavras serviçais de quem lá dentro morava. 172


Não faltes, meu amor, se te sou carne à fala que me dá conhecimento, fora de assuntos de sala em tom de racionamento e dentro do pensamento. Não falhes, meu amor, o que desenhas fora do alvo e da vista, de olhos febris e fechados como cartuchos queimados pelo dever de conquista. Pois se cada calcanhar de Aquiles veste a fraqueza antes saber que vencer começando pelo chão e pelo fim da conversa. Metendo os pés pelas mãos e correndo todo o risco de enredar em nossas redes falenas atordoadas pelo fulgor das palavras namoremos, namoremos com os pés e as mãos atadas.

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Tempos houve em que eu sentia a casa e a necessidade cada ser quando acordava cada coisa adormecida debaixo do nosso tecto como saber nesses tempos os olhos de águas paradas as orelhas decepadas e os narizes sangrentos entre as frinchas do soalho se me baixo ou me rebaixo para apanhar os destroços escutando o canto dos ossos é porque perco o sentido de viver na vertical assim colhendo o que aflora me vou tornando infecção e morro de indistinção entre o que ama e o que mora entre o que estreita e o que larga ferindo tudo o que abraço com estas garras de fora

174


O que vês? Em que acreditas? pergunta o espelho a si mesmo. Se não crês nisto que vês, se não vês sombra de crença, por que motivo não partes, não te quebras e te espalhas e não te fazes pedaço, pó de prata e estilhaço na vez de vidro inteiriço até que toda a imagem da terra leve sumiço? Quem tudo põe em comum nunca se perde de vista por muito que não lhe assista a razão de ser mais uma nos braços de ser só um.

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A VERSÃO EXPURGADA Talvez se possa dizer que vamos, vimos e fomos pela mão do abandono e a trela agora mais longa do cão que mordeu seu dono até ao infra-instante da infracção já sem nexo e do nó cego do sexo em lugar do cruzamento. Talvez se possa dizer que mantemos por enguiço os pés assentes no céu sem sequer darmos por isso. Talvez se possa emprestar segundo e sexto sentido a quem teme adivinhar o que viveu sem saber e o que ignora sem temer não ter de facto vivido.

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A cabeça busca o seu lugar entre as pernas apertadas e doridas e não uma almofada onde pousar-se nem sítio entre cabeças conhecidas mais perto do segredo do que a boca mais dentro do segredo do que ouvi-lo os olhos bem cerrados fazem força para darem à luz uma palavra liberta de ser estampa e de ser estilo pois aquilo que é dito natural na maior violência se perfaz rumando contra o pouco que se lavra no barro ora submisso ora fugaz na carne ora voraz ora verbal

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O LOBO DENTRO DO CURRAL assim te faça cantar língua mais terna e externa língua toda menos minha grainha, bago e gavinha cacho roxo e cepa torta atrás de uma grande porta que dá para o universo verso a verso em expansão troçando do seu limite e do sol da inspiração

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A criança ri da forma dos seus pés de quem lhe esconde as mãos de quem lhe serve de espelho ou de espantalho. Como dominar esse esperanto essa escrita dos olhos que tropeçam em cada estorvo aberto a ser estudado numa língua renitente a ter assunto? Hoje, como quem não quer conversa, afirmaste num tom de conclusão, – tema e também variação de ti em ti oculto – que só crês no tempo limitado. Porém, a crença é talvez precisamente o que fica muito aquém de uma certeza embora seja mais persistente e capaz de fraquejar sem perder firmeza.

179


FALA REI E FALA RAINHA falarei muito baixinho ao teu ouvido coisas que não farão sentido mas te farão sentir tal qual serias antes de teres adormecido de repente ao colo embora a solo com a grande bola em que chutaste colada à barriga lisa. falarei a frase não concisa infinita e aflita de ser quem toma a palavra antes de tudo adormecer. falarei aquilo e uma bola na garganta crescendo até à asfixia me fará desfalecer entre o mais inaudível e o menos inaudito. falarei é possível que saltes por cima do que não for dito prevendo uma rasteira e uma ravina. falarei e esperarei que o teu ouvido se desprenda e se acenda como fogo-fátuo no charco do meu corpo todo ele barco em seu desejo em seu desejo do desejo em seu desejo de embarcar.

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Cada estação se atreve à novidade assim se estreia a estrela de este Outono toda ela agulhas e agudezas, adagas, canivetes e punhais, espinhos e espinhas tão dorsais que o céu se verga e aplaude – quem diz que chora por mais?

181


PORQUE OS FILMES SE FAZEM DENTRO DE NÓS O nosso mestre – um quase baptista, pícaro e andarilho – contava sorrindo como filho que nasceu pródigo a invenção da morte e da palavra entre os supostos primitivos. Havia placidez e alarido na sua narrativa. Agora os pensamentos, as palavras e os actos parecem desirmanados. E nós parecemos que parecemos e não sabemos ainda colher vendavais. Perdemos o pé e o travão, embora nos sintamos petrificados.

182


Aguardente da paixão não se evapora e aquece até quem olha de fora porém a voz do desejo implora a mão que quase nos cobre a palma que quase tapa o sexo que quase oculta e a pele que nos escuta

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A palavra vã e anã vai secando em seu aquário uterino em sua via intravenosa. se fechada, – se fechar, digamos, os olhos, sem se deixar arrastar para os limbos da vigília – ela será como uma onda que te lambe os pés. e essa pequena vaga caminha sobre invisíveis andas caminha sobre sabres e não é dócil nem esquiva. apenas se desfaz de sua muita água em sua pouca água.

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Ouço no fundo do ouvido esse povo das alturas que sussurra a sua prece antes que a noite lhe caia antes que o dia escondido debaixo de sua saia nasça desobedecendo ao tudo quanto obedece. ouço mas sou por vocação ou despeito da raça de certas ervas inteiramente ruins que rastejam pelos pátios serpenteiam por paredes e por esses não lugares perdidos no vão afã de parecerem afins. sou da racha e da brecha da fenda e da ofensa contra terceiros e quartos. não fulmino, só me resta fuligem para escrever branco no pó e no preto. sou do raio que me parta e do parto demorado. desfaço-me em livro aberto: leio entre pernas palavras que se corroem por dentro.

185


Atrás da minha vergonha tão néscia e despudorada outra vergonha sem ronha estrangula cada palavra não chega a ser labirinto nem sequer contra-verdade este embaraço sem rede onde baloiço e estremeço não posso nela embarcar pois que é infinito cais onde mudo de abandono e me abandono a esperar

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Esta noite, o meu pai morreu mais uma vez. estava deitado no chão, morto ainda sem sepultura, e era difícil adormecer ao lado dele. quando te disse, ao ouvido, ele morreu, tu disseste, em voz alta, ele já estava morto. e com tantas razões de viver ou morrer como sabe uma pessoa para onde se há-de virar? assim eu conseguisse ter esse género de pensamentos e de sonhos que acabam bem num lugar quase neutro quase distante.

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Sim, eu quero ouvir outra vez a mesma história até conseguir ouvi-la ou entendê-la ou nada disso nada. chamamos sobrevivência à saturação do instinto e à sua, sempre prematura, obsolescência. ora, a despeito do que parece, a luz é o exceptuando da sombra e não o seu contrário, o seu produto ou o seu galante substituto.

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Partindo do princípio – difícil de respeitar enquanto fim ou talvez não – de que existe uma gramática do grandioso e uma baixeza a céu aberto, a mão coça as suas feridas até as infectar para nada se escrever e se esconder há esse hábito mau maria – verdadeira máquina de ver e ó quão bem oleada – de escutar às portas fechadas e espreitar pelo buraco da fechadura entre a dor sentida como superior ou, pelo menos, como mental, formando a sua lenta estalactite e a polifonia terrestre de mil estalagmites distraídas porque apontadas ao coração a mão não a mão dada a mão esquerda e lerda e ensanguentada a mão fechada e arrancada ao torrão do corpo jamais será plantada

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Il faut imaginer l’Eden qu’un ange défend – un ange armoire à glace à son corps défendant il faut imaginer l’Eden peuplé de gentils carnivores et de vieux arbres ployant sous le poids d’inutiles fruits il faut donc imaginer l’impitoyable paradis devenu impénétrable devenu idée je ne cesse de causer avec toi et je t’entends dire de bonne foi que je suis la cause unique de ma propre solitude ah, tu m’en diras tant – je n’ose proférer cette réplique qui indique à quel point tu as raison et moi non plus... enfin, pas plus que ça voilà

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FERVER Recuando neste tempo, não se recua no espaço. Puxando pela cabeça, não se empurra o pensamento. Nada se encobre ou descobre mediante a aplicação de argumentos que afinam por um só diapasão. Nada se encontra ou se afronta por meio de silogismo que assente numa exclusão passando ao largo do abismo. Assim pensando cativa do meu livre pensamento, me entrego aos anonimatos, e às sombras do guarda-costas. Porém, cair na esparrela da dura realidade é lição de anatomia que na vaidade se esvai. Recuando neste tempo, recordando neste espaço aquém de toda a distância, me esgoto nisto que faço: esconder-me atrás da criança a quem tiras o retrato.

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L’instant pour l’instant il n’y est pas les images défilent se défilent encore plus vite que moi. elles me devancent me retardent sur cette piste de course pas le temps et pas de place pour un peu de danse hélas! je suis passante et pas sage une gitane sur le quai m’a décoché un sourire très large très appuyé on aurait dit qu’elle lisait les lignes de mes deux mains ainsi que celles du train

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Para que servem as sobras do pensamento? Quem delas pode ou sabe desfrutar busca um tecto para o afecto e um céu aberto para quem se desunha no esforço de habitar sem habitar. Para que servem as sobras, quem as sabe aproveitar? Cheira a lenha já queimada no frio da madrugada e um acorde de guitarra talvez acorde essa garra que cata o que deus não fez. Cheira que cheira a sem faro a si mesma repetindo o reparo que lhe fazem e leva água no bico: «Só te sobra o que não pensas.» Para que serve o excesso e a quem se encosta o bordão do poder de sugestão? Senão de cada senão, eu me perco se começo e me acabo das tormentas, monstro de amuo e de amor. 193


Nascer às vezes mulher fósforo, caixa de pau mil cabeças alinhadas prontas a ser queimadas e corrupta sim corrupta mas depois incorruptível nascer outras vezes barca com a semente na pança, a tal da fecundidade e a da desconfiança em cada mão sua âncora rumo ao romper pelo fundo tanto mais choco e imundo quanto vos for invisível nascer já dentro da urna azeitona de agonia ralo ou chilreio de vinho e relato de naufrágio ânfora arfando em porão beijada só por tabela cardume e depois cardume frio após frio após lume

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CODA sobrevivendo ao episódio a heroína dos meus sonhos perdeu o poder de procurar o altar onde imola os pensamentos porque os sonhos rasteiros trepadores flutuantes voadores lhe vão soando como delação e já não como relato de um porvir e por vencer a heroína dos meus sonhos avança sob a ameaça do trabalho forçado do sonho – rema com os pés e com as mãos lutando contra a água pesada e contra os modos de um mundo transformado em músculo onde ela vê vela e mastro era apenas mortalha e cordame de coveiro onde ela vê olhar eram apenas olhos em fuga

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DITIRAMBO Eleita de suas vozes entre espíritos alheios e espectros de outros suores, ela busca um sub mundo ao seu alcance entre este e aquele lance entre entradas. No entanto, nada responde à sua exaltação em língua de rã e de nenúfar em língua de água parada em língua de água corrente. Os bosques não caminham trajados de amor e no silêncio altivo não se lê a multidão e esse estar insuportavelmente vivo que faz avançar e recuar.

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Pensar um livro nebulosa e um livro gravitação o primeiro para elogio dos vivos o segundo para seu consolo. Apressar a língua mais corrente até ela ficar esbaforida e ter delicadezas de desmaio, rubores e febres de exaustão. Pensar um livro aluvial lama de verbo em lenta formação e ideias reduzidas a saibro, – um livro não de pão mas de planície. Assim possa este meu livro livre germinar no escuro, sem intenção de troca de troça, ser brando e frouxo e terno. Em livro de capa mole toda a dureza do grão.

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MENSAGEM COLADA NO PARABRISAS Procuro as tuas mãos em estado de estudo em estado de escuro em estado de estrela. É como se como se tão bela e veloz a pedra lançada ao telhado de vidro.

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O SONO DA NÁUFRAGA OVERSLEEPING UNDERSLEEPING OVERACTING UNDERACTING OVER DREAMING OVERTHINKING SINKING

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As coisas convenientes podem deixar de ter cheiro, maneira e peso. atravessando, já não a floresta infestada de vida mas o parque ajardinado entre sátiros, bebendo, já não a fonte que sacia e engasga, fazendo brotar o balbucio, o vaivém entre a pedra e a palavra, alguém dentro de alguém busca o círculo perfeito. ou seja: mantém-se em FORMA à custa do que falsifica. mas o que falsifica cabe mesmo à justa no lugar da verdade.

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MALES E MALABARISMOS são já horas de fronteira de espertina e de mordaça em noite fóssil e óssea escalpe de lua no escuro e ladrão trepando o muro sem intenção de roubar são horas de ver dançar os ponteiros luminosos derrapando na calçada e as figuras inseguras dos amantes apartados bichos em seu cativeiro são também horas desoras de cuspir sombra na sombra de virar lobo a menina na fadiga peregrina de não regressar a casa de ser escuro sem ser quarto horas de cola e tesoura e de recortar janelas em cada parede cega e de talhar um vestido eternamente comprido em cada pano de céu são horas já racionadas são horas já rasuradas rentes à carne irreal rentes à carne ideal são horas quase segundas que nunca foram primeiras

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MON ÂME BY HEART I o cavalo domando o cavaleiro o cão domesticando o novo dono o gato encarcerando rato a rato o rei já derrubado pelo trono a alma ruminando o velho corpo os olhos que venceram o meu sono II les âmes en leur double peine les âmes en leur double emploi les âmes enfermées à double tour les âmes jouées à quitte ou double les âmes à double tranchant les agents doubles de l’âme les âmes à double face à face les âmes à double vitrage les âmes-valises à double fond les bouchées doubles de l’âme les âmes qui se foutent de voir double les âmes à double entrée d’où l’on ne sort que pour chercher à voir leur double corps

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ACHAQUES Encanta-se a velha ovelha com o som de seu chocalho. Maravilha-se o pastor com as respostas do eco. A montanha desmorona para logo se elevar acima das notas falsas sibilinas, estridentes, do pífaro entre as beiças do silêncio entre os dentes. Mas o corpo deste mundo não acata suas normas, nem se verga a suas formas. Até o pé se recusa pisando o pó de um sorriso a fazer-se ao duro piso. Aquele que ama de amor não amará devagar... Sentido da proporção infamemente divina, quem se entrega em tua mão tomando-te por padrão? Não será seguramente o que deu ao que se dá. Medida de amor não há, desmesura ainda menos, apenas olhos pequenos e ouvido subserviente. 203


A HISTÓRIA DEMASIADO NATURAL Eu purgo o pecado da cor. Trago no corpo uma tinta retinta gritante que destoa. Eu purgo a maré de porcelana pintada à pressa num prato do qual só resta uma aresta e a lembrança de um caco. Nem ao diabo se empresta o mal que sozinha avisto pelo aperto da fresta imaginária. Como soldado estouvado, eu purgo o vinho que me serviram nas tripas do inimigo. Debaixo do meu abrigo longas horas procurando o lugar dentro de mim onde ainda se respira, da minha testa fiz mira que o corpo em rigor de vida e não em rigor de morte não me faz cara ou coroa não me faz cara ou querida. 204


Eu purgo. Sobre o lençol espalhados, os papéis nos quais me dispo e assisto àquilo que escrevo. Quebrei o espelho do tecto mas o céu não mora acima, nem sequer atrás da orelha, nem a parede faz frente a uma história tão velha. Eu purgo porque me insisto porque me gente e me ajusta estar abaixo da cintura onde ser gente me custa.

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STREET FIGHTING o que faz aquilo que se inclina por exemplo a barcaça ou a cabeça diante da imagem que domina e da luz por instantes tão intensa que transforma a sua fonte em silhueta? que fazer perante o feixe do farol excepto renunciar a ser recife, encolher velhas agruras e agudezas que davam como certo e necessário ser náufrago e rochedo de coral? talvez o punho bem cerrado só nos sirva para esquecer esse murro que derruba para lembrar esse muro pedra a pedra e o peso da paisagem deslizando atrás da pobre besta que a carrega talvez nós descalcemos pés e mãos talvez nos tombe a boca na sarjeta talvez nos cresça o pátio da clausura até à insolência de ser praça vazando os olhos negros à lonjura saudando em cada desgraça as obras inacabadas nas quais o tempo se atrasa.

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Je suis amoureuse transie de froid. Un oubli me touche, je frissonne encore: je me couche n’importe où, dit-on. On m’a placée aux premières loges de l’hiver et j’aperçois de fausses aurores boréales et des couchants, vrais ou pas. Je suis serai aux abois. Pourtant on m’a mis le feu. Et depuis je ne fais que brûler peu à peu c’est-à-dire éternellement à chaque instant. Je suis amoureuse transie de froid. Un oubli me touche, je frissonne encore: c’est, dit-on, du n’importe quoi. On m’a placée aux premières loges de l’hiver et j’aperçois de fausses aurores boréales et des couchants, vrais ou pas. 207


Je suis serai aux abois. Pourtant on m’a mis le feu. Et depuis je ne fais que brûler peu à peu c’est-à-dire éternellement à chaque instant.

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O RENDIMENTO PER CAPITA forçar o confessado à confissão e logo injectar um grão de areia o modesto desgaste de uma ideia na engrenagem que chia e geme e range e assobia sempre que alguém me retorce recordando quanto vale ser não ser recordação vestir a pele tão lisa da pessoa de sua epidérmica existência parecida ao padrão da parecença em vez de me instalar na bancarrota negar convictamente o que me ulcera fazer de cada não a minha crença doença reduzida ao seu sintoma

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NÉON VACILANTE NA MONTRA RUBRA DO TALHO girar sobre si mesmo e à volta de, eis talvez o rumo, a rota, que nos é essencial, vivencial. cada ligeira correcção – elipse da órbita alterada, ou rotação por instantes suspensa – é matéria prima de amor e conhecimento em bruto. assim, dado que algo se debruça sobre mim e algumas vezes me vergo sem saber porquê, vou seguindo, às apalpadelas, o exemplo das gotas pingando do telhado após uma pouca chuva, tornando-me a meus olhos cegos inesgotável e a meus ouvidos mais curva. da mesma maneira que um par de remos pode fazer esquecer a autonomia dos braços, o cansaço vem a revelar-se uma forma mais ávida de consciência. o que nos faz correr e derrapar não será senão a conversão, em língua turva, do escasso vocabulário que possuímos para descrever o corredor do matadouro.

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Dezembro


CORBEILLE ET ANESSETHÉSIE notes sur mon histoire de la peinture Alors enfance et infamie se relayent pour me faire cracher le gros morceau. Je suis ânesse dans l’âme et très corbeau dans la peau, à chaque fois presque trop proche de l’espèce humaine. Je me laisse interroger mais je m’envole, me laisse torturer mais ne bouge pas. Chaque mot, m’a-t-on avertie, sera gravé partout où il reste des supports et des surfaces, pour bien aggraver mon cas. Et, comme chacun ignore à sa façon, dieu n’a pas demandé au diable de quitter son rêve – il a juste aménagé un coin cauchemar, plus tentant que les autres.

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Corpo ermo, corpo irmĂŁo, galvanizado na espera da faĂ­sca ou da fera, armadura onde fervilham todos os vermes da terra ao burburinho do sangue juntam-se os ossos solistas abrindo estranho caminho atĂŠ ao extremo do estrume de uma nova primavera

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Sobras de obras e conversas de orações, de namoros, restos de olhares que se esquivam ou ficam pelo caminho servem de susto e sustento ao corpo convalescente sem direito ao mimo regularmente ministrado aos goles e às colheradas com que se cuida o doente de um amor não desprezado toda a gente sabe bem o que eu não sei nem mal sei a não ser que há quem escolha e quem não seja escolhido, quem não passe da soleira do sítio onde se é vivido, quem demore à cabeceira da cama onde se é sonhado quem se sirva do lençol para mais uma evasão furando o céu e o chão do desprezo faço roupa do desejo unhas de fome que só na escrita se usam enchendo olho e barriga qual dos dois menos maior e tão despropositado em seu desenho de dor em sua forma e mordaça por onde o traço não corre verte-se o tom do rancor cor do tempo que não passa 214


CRÓNICA DO ESVAZIAMENTO DA AMPULHETA imagino a pequena rota do moço de recados entre a fina flor das albas e a ralé dos ocasos. a palavra que o transporta leva um chuto no traseiro a fim de que mais ligeiro em seus sapatos rasos o moço se faça à vida – como dizem os que não têm que fazer por ela. penso nele e nesse apressar do passo, esse nosso comum apressar, enquanto o sono não naufraga em mim e me leva para o alto-mar onde a gula da água já estrangula e cada frase parece ser última porque absurdamente engolida em seco. e penso na casa em miniatura onde guardamos a nossa eloquência de passo travado e curto; penso no vão de escada onde me é permitida a insolência de não dormir nem velar, escarnecendo das manias de grandeza que são dia sem pão. mas pressinto – e isso percorre-me como um calafrio mais célere e sabedor que o sangue – que só eu hei-de perder-me na certeza quando tomo por pavor a dianteira e me fecho sem jamais pestanejar na ideia de tornar-me ratoeira. 215


Amar como coisa feita à mão agulha em palheiro onde se dorme com as costuras do corpo já esgaçando amar na necessidade amar na privação com a exacta noção de todo o tempo a perder a par e passo e sabendo que se tem apenas a morada falsa escrever cartas e cartas cada dia mais ternas cada noite mais verdadeiras e sabendo que elas levam muito mais tempo a escrever do que levam a ser lidas escrevê-las com a língua com que se lambem as feridas e sabendo a vida virada do avesso e que esse preciso ponto na espiral é o local de onde menos se vê amar então cegueira baixando a visão até ao ilimite – não te vi mas vi-te 216


amar ante após até os esquecimentos que tiras da cartola como coelhos ou pombas ou lenços ou bombas sabendo o que foge e o que voa o que se guarda no bolso e o que pode rebentar

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Nous aurons des lits au bord des rivières et des nuits non lues des nuits diluées dans leur chine d’encre des nuits sans issue nous aurons aussi des étoiles plantées telles de vieux couteaux des étoiles grouillantes aux bras de gamines plus agiles et lentes qu’une armée fringante de jeune vermine ce temps trop étroit pour faire un passage on en garde la croûte on en goûte les miettes d’une bouche engourdie par des rimes secrètes d’une langue collée au palais rosé de notre cervelle dernière des dernières pas la belle, c’est sûr, je crois découvrir que l’idée d’offrir l’envie de cadeau te répugne t’oppresse 218


je prends du retard tu doutes d’avance craignant la morsure tu gardes une dent contre ma tendresse j’ai mauvaise allure tu as bonne mine – nous aurons des lits je te me le dis creusés par nos mains au dedans des yeux nous aurons des lits doux et frémissants comme des poitrines

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O PAPEL DO PAPÃO o músico como eu espera que as garras aceradas de uma certa melodia o venham a cegar lenta e inexoravelmente o músico toca e escuta como se de um galanteio se tratasse aquilo que o maltrata mas não mata aos olhos de quem só vê com os olhos

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Sei da morte o que a vida diz ou cala a conta-gotas e do que em mim já se fina sei que não é meio termo se de amor percebo o extremo o excesso em nós se refina até não haver vontade que lute contra a vontade até não haver verdade como forma de poder pois a imagem do que há o resto nos quer esconder

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Un oiseau à court de bec un baiser à court de langue trop de plumes dans la cervelle trop de plomb logé dans l’aile j’ouvre les jambes et je baisse la tête de telle façon que j’aperçois un triangle et du bleu par inversion des valeurs des couleurs et des formes d’attention si je dois devenir femme par mégarde et par moments, prends soin d’affûter ton arme en la frottant contre un mot qui m’éveillera sur le champ puissé-je par goût du noir et par abus d’arc-en-ciel me diluer dans du gris et me griser sans souci de boissons non officielles je ferai la courte échelle pour écourter tu sais quoi pas de paroi qui ne soit l’écrin d’une oreille aimante pas de parure qui ne soit un signe de nudité dont l’écoute ensorcelante nous a été réservée 222


LES HEURES D’ÉTUDE et des doutes naîtront là où d’autres les sèment d’autres doutes, bien sûr, d’autres gens, c’est certain, et la vie survécue à coup de stratagèmes aurait ce goût amer d’un doute renaissant nourri au jus des jours, à la sève des heures – ô longueurs inhumaines – que sirotent nos yeux foulés par les passants.

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Isso que agora sossega e logo impugna talvez ou por obra de mentira ou pelo seu desmentido isso que faz sol e sombra e outrora nos fez abrigo isso que leva sumiço fora fora de serviço isso que alma nos adentra sal pobre e rica pimenta isso que cura, descura, mas já foi nossa mão-de-obra isso que abriu e me aperta e me livro entre folhas amor, página de rosto, ó meu segredo de estado, ó meu estado de estridência, meu pé em chá de jasmim história à margem da clemência história sobrenatural

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Debruçada sobre o olho do bastidor onde a singelo ponto pé de flor se bordam invisibilidades curvada sobre uma brancura feita de nódoas e manchas sobre remendos sorridentes e pequenas simetrias de sentido, ela reconhece o bragal incompleto da casa as roupas dispersas impressas desconexas e pensa no caso de não usares sapatos de não saberes por isso e isto descalçar a bota estreita a bota de sete léguas e as tais solas do ofício que não te dão tréguas o caso e o caos só coincidem no preciso momento em que murmura o teu nome e se esconde para não ouvir

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Dizem-me que há olhos rasos não flutuam nem se afundam não pairam quando se pousam nem param no seu lugar entre a boca e a raiz dos cabelos dizem também velhos olhos que choram quanto não viram cuspindo como vulcões os mais doces palavrões juras e injúrias de amor no exacto meio do rosto dizem que não muitas vezes porém se tudo se escangalhar e eu puder morar de novo dentro de mim a teu lado e não à beira do fogo que avança em bicos de pés talvez me faças a honra de ver até onde escrevo e onde te levo me levo neve no livro dos vivos e onde infância se atreve a pingar sangue na folha pensando o que não se olha

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DUMA SEREIA QUE EU SEI a sereia em seu rochedo escolhe o degredo da terra. longamente perde as malhas do enredo que lhe é voz trocando o que até não tem pela miragem de alguém poder amar o que cala. cada vez que toca o chão na vez do ritmo da marcha danças lhe saiam dos pés desenhadas à facada - quanto mais bela uma dor mais faladora de dança e culpada de silêncio. a sereia em seu degredo entrega um desejo de alma a um rochedo esculpido pelos seus longos abraços. e essa carne que é de pedra e esse amor adiado e o corpo naufragado que seu corpo transportou não carecem do retorno ao fundo do oceano ou à velha flor do mar. pois a sereia sem cauda trabalha contra o destino e nesse afã se desalma sem conseguir recuar. 227


da sereia resta a língua na boca da feiticeira que dela uso não faz. da sereia sobra um canto comprido, incompreendido, que enlouquece quem o ouve na vez de quem o entoa. e se no fim a mulher que não é carne nem peixe em espuma já se desfaz, é porque não deixar rasto obriga a que haja relato. ou seja: a força maior faz com que a forma se instale. de nada vale o que vale. porém o que não valeu o que não pôde sabendo o que podendo não sabe flutua acima do abismo voga longe do castelo e navega rumo a si. o mar encobre o seu mar como o sangue coagula sobre uma nova ferida quer seja leve ou profunda. o mar encobre uma frase onde a vida se dissolve para que seja vivida em cada coisa que morre. 228


Mãe, como podemos ser tão diferentes nos nossos diferendos nas nossas diferenças imensas e tão perto de nos entendermos sem conseguirmos porém tornar isso audível, palpável, amável, capaz de viajar no tempo dos sentidos? como pode uma pessoa, mãe, sentir-se filha por breves momentos que isso nos custasse ou até nos amarrasse à ideia de liberdade sem exercício, nem arbítrio? como pode ninguém, mãe, sentir-se uma pessoa a mais ou a menos e dar ao sentimento somenos importância? eu saio à rua, mãe, e os meus pensamentos babam enforcados em cada poste, postos à venda em cada esquina. 229


eles esventram janelas que só eu imagino fechadas e caem de varandas abaixo precipitando a ruína das casas. mãe, como podemos ser francos a ponto de não nos escutarem, fracos a ponto de despertarmos o desejo do sangue adormecido sem percebermos em quem?

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Tu não dormes. Sabes que falta alguma coisa. Fazer alguma coisa. Um fazer. Mas não sabes o quê. E isso mantém-te inútil inelutavelmente desperta. Tu abraças o que falta. Sabes que tens de abraçar. De abraçar alguém. Mas não sabes como. Deixas crescer os braços para além do desejável. E isso obriga-te a uma postura incómoda, quase rastejante e até inconveniente aos olhos de quem não sabes. Tu não descansas nem pareces cansar-te. Sabes que tens de redobrar os esforços, que triplicar o teu repouso. De dar um passo atrás a cada dois para a frente. Sabes que tens de repousar na figura difícil de uma pessoa que se parece com não seres tu. Tu não pedes licença. 231


Para. Entras a matar na tua própria vida. Não bates à porta. Não esfregas os pés. Não aclaras a voz. Não te quedas uns instantes à soleira. Não lanças uma saudação que possa ser-te devolvida. Entras de chancas e o teu pensamento ouve-se como um ruído visceral indecoroso. Entras para levar com a porta na cara. Para levar com olhos da rua. E a rua agrilhoada aos teus passos é morada de infâmia, lugar onde serás olhada e infamada, gozando da fama e do proveito de falar como se pensasses em voz alta.

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LADIES FIRST AND THIRD quem não quer ser lobo não lhe veste o quê? – pergunta a palavra-chave essa que não abre e que não se abre quem não quer ser ser não lhe lobo bolo não lhe bela bala não lhe velha ovelha senão ó senão

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LADIES FIRST, LADIES NEXT são estranhas as palavras proferidas tão-só para calar outras palavras – um pouco como se ou mesmo outrora a mulher da alma lhe batesse para ela deixar de ser também mulher e o resto se haveria de ver. alguém diria assim para que se ouvisse mais baixo estás mais viva do que morta e o inverso também verdadeiro, dia a dia, porta a porta; alguém chovendo impiedosamente mas não se molhando – está visto.

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POEMA FALSAMENTE BREVE porque escutei a criança que não quer dormir às escuras, acendi um fogo em cada aposento da casa mas o incêndio torrencial chamou uma chuva crepitante e ela assentou-lhe como uma luva assim como assim ninguém pode dormir sem provas de ter dormido

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Levo os olhos pelo chão e música nas entranhas vou por minha própria mão e sou levada até a mão perceber que foi largada madrugadora, esta mão, em sua não melodia, meiguice sem cortesia fora do tom e do tempo levo os olhos pelo chão e música em redor da cabeça leva-me a vida em mão própria esta que a mão não agarra pobre parra derradeira e vermelhusca já murcha na cepa torta se chama apenas assusta...

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MINÉRIO roubar ruído ao que toca, e ouro à água corrente roubar os dentes à roda da fortuna retirar todo o sentido ao castigo que faz vão e descabido tudo quanto em nós se faz arrumar lá para um canto aquele antigo condão de fechar os olhos cedo e pedir ao sonho certo que viesse e que durasse até ao dia seguinte

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O fato do Inverno posto à prova com labirintos de alinhavos brancos e alfinetes escondidos nas costuras está agora pronto a combater contra a fúria vertical dos futuros habitantes. sobre a mesa, um ramo de rosas friorentas ainda me sorri por entre espinhos deixando-me indefesa – isto é sem motivo formal de acusação como se perdera um filho dentro da barriga ou memória do ser filho fora dela. porém, a razão que tudo corrói corrompe seduz suborna, a razão que ainda dói é uma morte mais capaz de fazer o seu caminho do que eu quando me vejo a caminhar quando me julgo a caminhar quando me julgo.

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Outro eu e outro um nunca se ligam trocam de olho e de ferrolho por cautela o primeiro quase murcho na lapela o segundo quase vão em porta aberta um já outro e ainda eu muito mal lidam com andarem tão sozinhos sempre juntos curando a asfixia dos assuntos com simplificação comercial um a um e outro a outro sabe a pouco vai ser tudo ou não é nada o que invocam fazendo conta e cama separada buscando vocação onde se tocam

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Un mot autonome qui dirait tout juste le trajet la tragédie et l’insoumission face aux images – si tant est que l’on peut imaginer ce que l’on découvre chemin faisant l’air et la chanson le mètre étalon vite déroulé comme un ruban un mot bouffé par les moustiques un mot allumé dans le noir un mot déposé sur le pas de la porte un soir où les éboueurs ne viendront pas le ramasser un mot en passant prêt à courber l’échine pour ramasser le beau mouchoir et voir s’éloigner les pleurs les cernes et la femme qui fend les rues raide comme une guillotine un mot du passé encore sanglant encore saignant mais désormais confié à ceux qui se promènent et traînent le monde en laisse un mot et à qui peut-il bien s’adresser entre deux phrases deux rafales deux rafles 240


TARDE E TARKOVSKI não havia roupa suja a lavar. mas roupa velha a vestir sim. e tu levaste-me. «quase nua» – pensava eu entre as minhas carnes desabrigadas. paraste junto à água. verde escuríssima moldura. sabes bem que eu só tenho olhos para ver ao perto. e era como se cada pequena coisa a que vendo eu me agarrava fosse um meter mãos à obra e pés ao caminho – isso que eu já disse e faço, perturbadamente, como terra que não se dilui naquela ou noutra água. presa ao chão, cativa da anti-paisagem que se nos oferece com rosto modesto de destroço e com face ilegível de presença, divago entre detalhes do nome vegetal e pormenores sem monta do nome mineral, cismando que é belo e útil perceber que o nervo das folhas e das pedras, os galhos quase leves, 241


as areias quase soltas, nos parecem mais familiares do que a roupa do que a carne do que o bicho dentro de n贸s e do cosmos.

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CAN WE GO BACK TO THE FUTURE? Te semblent-elles trop terrestres les nourritures que l’on sème pour ceux qu’on aime? Te semblent-ils indigestes les fruits en fin de saison qui attendent qu’on les cueille infiniment? Te semblent-elles écœurantes les douceurs que l’on présente sans nappages ni glacis et les douleurs que l’on offre sans ornement assorti? Sans doute faut-il bouffer à table comme dans son lit, mon corps-en-croûte bien au centre, lové comme cette autre bête que l’on porte au fond du ventre afin de me rappeler les corps qui m’auront portée.

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GOVERNO SOMBRA em noite de vendaval nascem portas e janelas, aldrabas, umbrais, batentes, até então taciturnas talvez mesmo inexistentes. cheiram a chá e a choro a coisas amarfanhadas a papel de carta azul tiritante e bolorento e o seu arfar violento faz subir o velho sangue à minha pobre cabeça. recordo então com rigor segredos de cabeceira, empenhos, juras, injúrias e aquelas meias palavras que matam mais do que saram. e é como se padecesse de uma doença incurável pois que todos menos eu sabem de trás para a frente o que já me aconteceu, o que me espia e me espera – ai espelho meu, espelho meu, haverá na minha terra verme mais verme do que eu?

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DOIS pus a carroça à frente dos bois, o atalho nas olheiras de uma estrada, os meus olhos na órbita dos teus, uma roupa que não tapa quase nada. porém ainda procuro em vão o ranger de um palavrão de carroceiro o pudor das pupilas dilatadas o osso de uma lua onde me roa e os trapos que me servem de lição. quanto mais longe do meio mais me estorvo em meu deserto despindo o sol da ficção e espalhando pelo chão a

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LAST TAPE entre a hipótese da casa e a faixa de Gaza, há árvores que hesitam em perder todas as suas folhas. é como se soubessem fazer sozinhas o seu caminho até ao inferno sem saírem do sítio. e então rebentam flores nas mãos como acne de aurora como bombas a fingir que não. e então o infinitamente grande parece mais leve do que o resto. não presto. não presto. não presto. apenas estou pronta.

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Há coisas muito baixas como o céu e os beijos que rolam pelo chão até ao bueiro de outras bocas. mas não há ventania que derrube o biombo atrás do qual mudas de quê a beleza atrás da qual mudas de vida. mas não há ninguém que me interrogue repetindo a tal pergunta mais pesada: quem deseja a tua morte a cada instante? há coisas muito francas, muitos fracas, que só remotamente nos revelam o respeito de quem diz que diz respeito. mas não, desde nunca, quase sempre, haverá de amor ardente o balbucio e do cio água que engrosse outra corrente. mas não.

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Nada que liberte do pavor nada que liberte outro perfume e um vapor de passado sem presente. ora só se fala com rigor e comoção daquilo que resiste quando falha e do erro como forma da razão. numa história que não ganha em ser contada Édipo pergunta à sua sombra musical se o dia já nasceu.

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Conversa rumo a jusante como jangada vogando e caudal sempre engrossando – água de cortar à faca. não me pedes luz ou brilho, só translucidez de rua deserta e continuada. e corpo que me atravessa sem ver quem vem tão depressa, sem ver se não se vê nada. e uma espécie de rapina entre outras obediente de falcão que come o céu mas volta comer na mão. conversa de corifeu tu menos eu menos eu toada ou tom mais plebeu e um esforço de afinação. amor fugindo de amor, que o meu eco não descole desse entrave donde mana a distância que se engole e a água ao sabor da chama.

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Espero por tudo o que espera a aparição da aparência e espero até à demência. negro pavio de vela chama que nada alimenta ranger de osso e de mastro lividez de velho barco afecto em tudo extremado rindo à socapa em mar alto e sorrindo em maré vaza de mim: não que eu seja ou fosse assim mas fui tomada e largada, mas fui tomada de assalto na casa dentro da casa. e fui ficando de fora como isso que já não chora quando chora.

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