Janeiro
TOGETHER THROUGH LIFE três estâncias I Li algures sonhei que li ou li sonhando que os sonhos dão a impressão de que a realidade é mais real. Pensei então que só pode ser exactamente o contrário pois a bordo de um sonho ninguém compete ou combate com a realidade. O que de resto só prova a que ponto a realidade está privada de uma parte de si mesma. II Em sonhos somos amantes e ficamos muito imóveis durante tempos infinitos. Ao contrário do que parece não o fazemos para não espantar a caça. É para conseguirmos olhar um para o outro sem termos de abrir os olhos. E se lá voltarmos ainda não os abrimos. 252
III No fim de um sonho tu lavas-me pacientemente com a primeira gota que transbordou do vaso. E ela basta-te. A tua voz de mulher em homem aguda e lancinante entoa uma melodia com todas as vĂrgulas no lugar. AtĂŠ eu adormecer fora do sĂtio.
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NOITE INICIAL Passado morto como pássaro pendendo de mão e mão pendendo de mão? Não. Passado na outra mão. A voar.
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NOITE INICIADA Chove a cântaros. As bátegas soam como risos de galdéria afugentando do chão toda a matéria suspirante. Devoro pão olhando a chuva e sei que deixei os animais dentro de mim à solta. Depois devoro o teu silêncio de livro com os mesmos olhos e com outros. Com estes e com outros. Sei que este mistério não te salta à vista.
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Os mortais só sabem ler os maus sinais. entendem como eu plenamente a condição de nem ser estouvada, nem ser criança de longas horas. entendem. como eu entendem que são teatro anatómico com gente a mais e gente a menos – dobre-se o lençol e mexa-se no cadáver enquanto está frio. os mortais descobrem, após anos de trabalhos forçados esforçados, que os anjos não têm cérebro. e tapam-se.
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SEM AVISO de súbito a única frase que soa e me serve de caminho é curta. ela diz-me o cheiro que a presa solta, o aroma de morte que obriga a que o bicho seja executado. é a frase da boa consciência: soa de rajada e encurta a dor de quem perdeu o direito a sofrer. é uma frase cata-vento. é uma frase ciclone. etílica. torpe. e eu devo preencher o seu tempo forte. porque se nasce por e contra alguma frente. porque se nasce de ninguém a todas as desoras da desonra. porque se estava do lado errado e sem uniforme. – isto é: sem forma nem fogo. nem cinza. nem mesmo o fumo do facto.
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Visões e divisões até à saciedade de ficar a doer deste lado do espelho. se me fogem palavras e me sobem à nuca, melhor calo as que descem e me agarro às que não. mas ignoro a razão de ser abandonada e não visto abandono quando uso a palavra – pago caro o que digo e até me cobrarão o amor em segredo ou flagrante delito, o seu grito abraçado a outra entoação.
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O QUE uma vasta seara dentro de um saco. ondulando. denunciando-se. assim ele quem quer que ele seja está no meio de nós entre. eé essa sensação de cor de cor sabida de cor que interrompe toda a acção. deliciosamente.
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DESARRUMAÇÕES em Maio de 2004 eu escrevia: «até onde posso compreender esta morte de mim por ti morrida? vejo-me cercada e sei que apenas conto os pontos que separam a derrota de outro fim mais confidencial» em Maio de 2004 eu escrevia isto que me parece quase estranho num papel que eu quase rasguei para abrir caminho à vida. e ser tudo o que sou e não sou de coração mais leve.
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Se corro atrás da lição dos sonhos acordo exausta e é a possibilidade de não acordar que me desperta completamente. esse único pensamento esse não pensamento matinal quase bruto e maternal cuida de mim. com a estranheza de quem virou o vestido do avesso para que a cor do tempo não desbotasse para que o tempo não se esgotasse numa só cor, recordo então os instantes em que imaginava que as minhas rugas te seriam mapa e o cansaço da carne envelhecida avalanche.
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Se entraste dentro de mim sem dar por ela que eu sou, o que é que em ti me restou que queiras até ao fim? à soleira não me esperas, nem te move a impaciência de tocar e ser tocado – eu te digo, bem amado, que não moro onde pensas só moro onde me pensas, nem habito onde não estás. às vezes ouço alguém a chorar dentro de mim e é como se não fosse eu – mas tu não choras assim. se entras dentro de mim que porta deixas aberta? faz frio: o dia desperta. a gente não nasce assim.
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Olho até onde houver céu até onde o azul sorve e o negro escarra até onde o cavalo de batalha avança a galope pela página sem cavaleira e sem ideia de feno no calor da estrebaria não falta quem estime quem estude o texto metralha e a frase do cavalo como exemplo e contra exemplo já não de felicidade mas do motivo festivo pois que no fio da navalha ninguém nos valha quer venha montado numa mentira ou montado numa manha dir-se-ia que um dia a coroa de espinhos havia de florir
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Ó língua dos padecimentos tão apta a soletrar ainda a alegria bem vinda e breve. Contudo se a escrita escolhe o caminho mais longo e tortuoso, o corpo minado e desfigurado de novo inventa atalhos que o desviam de si: não mais paisagem, não mais imagem, não mais página que desfolha o que não fomos e somos e fomos. Agora falamos baixo para nos ouvirmos melhor. E entre dizer e escutar eu desejo que possamos mur mu rar.
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POEMA DE INVERNO entre o c達o que chove e o gato que n達o, os anjos e seus diabos podem imaginar que t棚m bem a quem sair. assim o que vai sendo: defeito de nascente, talento de poente e toda a luz derramando aquilo que eu n達o entendo.
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ZEROS com olhos insanamente abertos tentamos ver o que é muito mais pequeno do que eles. alguém chama barriga a esses olhos. e é como se escapássemos à margem de erro que para nós mesmos previmos mas não se cumpre neste caso acaso ocaso. é como se quando. em vez. é como se viesse a lume uma fluência de fala na visão capaz de correr ao arrepio da torrente muda e governada da palavra.
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Ser tão-só o rosto grave da montanha que se move sem que ninguém se comova e a cratera sorridente do vulcão quando se afunda ou simplesmente se cala há seres que são mais breves a cada instante seu
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As palavras desfazem-se em promessas que se cumprem e se traem a um tempo abrindo porta a porta o pensamento, servindo ao que nos leva à sepultura. de que vento somos feitos, de que vez? e que vento traz à boca o que dizemos? se limpamos a cinza de outros dias, se varremos com cabelos desgrenhados a finíssima poeira das ideias mais alheias, espevitamos o sussurro de ser lume, aguçamos sem saber chamas ocultas e gozamos o prazer de violar segredos que nos foram confiados. usamos, sem pudor, até ao fio o denso véu de mistério que morava em cada nome.
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Com uma s처 m찾o consigo tapar o sol. mas n찾o consigo esconder-me.
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Ser o bicho imitador ou outra forma de dor que apenas se parece? o que é mortal ao mostrar-se sem luz ou aviso prévio me vem talvez ensinando a ver, a sobreviver. sem talento especial. nem dom de musa amestrada. coisas de cheiro e comer na mesa não sobra nada. mexo sim no que não posso como osso furando a carne. ouço e mexo, mexo e ouço de coração apertado. ser a besta embalsamada ou apenas essa palha de enchimento, de achamento, monstro sempre que mostrada?
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A sombra deste corpo que foi teu cultivou a imagem do jardim num tempo em que isso lhe parecia proibido por excesso de licença. pulando a sebe, saltando por cima do anjo, ficava à guarda do seu cansaço e cada dia beijava o chão esperando que o pisasses. assim o anjo sonâmbulo explicava longinquamente explicava a quem de direito: cair no sono e levantar-se, sacar da espada ou colher o fruto, mas deixar cada lugar como se nunca tivesse sido encontrado. de tudo quanto não sei, esta memória é ainda precisa, preciosa.
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Esse jogo de adivinhas que as coisas jogam sozinhas e sempre fora de prazo. esse jogo – que desgosto! – de sentir e pressentir o que todos já sabiam, inventando pontuação para que cesse a conversa mas as frases não acabem. esse jogo escavação cova na palma da mão e buraco onde me esconda. essa ração suficiente essa razão de tormenta que enche e não alimenta dar-me-á volta à cabeça. penso mas penso depressa: se é certo o que já existe e seguro o que persiste ora na primeira linha ora numa retaguarda, algo de nós não dirá. pois custa levar à mostra esse só tudo que é nada no qual magreza de cão mijará de perna alçada. 272
Dizem que falta se sobra – se aqui margem movediça, além margem de manobra. atormenta-me essa imagem de um olhar capaz de crime e até mesmo de o lavar. porém, se olho lavando a confidência de um texto à voz anterior me prendo. sob as camadas da frase corrigida, rasurada, grita um texto mais antigo. não sei se brada comigo se me esconde, se me nega, se lhe sirvo de mordaça. fecha-se trémulo o punho que escrevia o invisível como se fora enxovalho, como se fora vergonha vexame de fogo posto ou pura cripta de fumo. fecha-se o punho da louca e o pano que tapa a boca também lhe serve de venda. quem escreve só tem emenda. quem escreve não tem emenda. 273
LEVANTES E POENTES largar o que já queima o que já brilha esgueirar-se entre chamas entre danças correr às arrecuas frente à luz dormir na mesma cama que as crianças largar o que já pesa o que já verga entre fardos só guardar o que se come entre bocas só calar o que dá fome pressentir porém que um certo contra-poder decorre de haver ainda os que respiram desse ar que fabricaram e também os que se esfumam no ar para que alguém inspire para que alguém expire para que alguém suspire
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Uma mulher quase não perdoa a si mesma ter nascido com barriga ter nascido de uma barriga uma mulher quase perdoa ter sido espancada por palavras vãs que são as mais úteis por palavras sãs que são as mais insanas por palavras sem acções por palavrões e ela é doa a quem doer quase uma figura que salta de uma tela sem prevenir quem olha e logo se estatela no chão onde ninguém a colhe para que ninguém a colha
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Não há erros há sinais só erros só sinais só eu e lê-los até não poder mais mas sem este delírio de amor eu não poderia lê-los e não saberia que sou incompletamente analfabeta
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Luzes baixando o ouvido espiando o escuro o escuro espiando o ouvido. uma chuva furta-cores derrama esse arco em íris sobre os olhos cinzentos da calçada de súbito tão terna e tenra e dada feita à medida do teu pé nu do meu pé ante pé. e o livro da estrada só se afasta inexoravelmente debaixo de um braço desconhecido.
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Sofro como dor a rapidez do pensamento – todos esses anos-luz que me correm na sombra com a pequena casa do cosmos às costas. Cada pensamento pensado não pesado nem mesmo leve é expressão magoada e alegre de não poder voltar atrás.
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Como se a noiva fosse demasiado pesada para ser levada em braços e alguém então a arrastasse pelo chão Como numa peça se teatro muito antigo que coubesse inteiramente numa caixa de sapatos há homens de papelão com hábitos gratos e hálito indiscreto que segregam segredos e saliva em lugar expectável. E porque assim é ou assim se fala ser o amor corta o fio dos dias rente ao sexo. Trémula recebo no regaço o teu olhar de silêncios e de sinos. Não sei se estou a mais ou a menos.
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POEMA PORQUE POESIA essa criança que sorria diante destas dores sempre maiores essa criança barricada se e quando o cheiro a morte falava mais alto anunciando que o homem será tão-só o melhor amigo do cão essa criança nadando a contra mão escondendo as pernas vermelhas de pudor e abandono nas águas turvas do sono essa criança resvalando e afagando com a voz as frases cujo sentido que escapavam por entrarem tão depressa no ouvido essa criança deixada a berrar no cesto da fruta essa criança ferozmente adulta essa criança de pertencer a quem a agarrar essa criança de rosto amarrotado obrigada a nascer e a voltar ao ventre sempre antes de sempre não se preocupe ela está a chegar a criança chaga criação da criação descendência errata sangrenta errada 280
ALONE O número tirado à sorte é meu. A isso chamas acaso... Que remédio tenho eu a não ser escrever não ser e arrancar uma a uma as palavras e os dentes às frases adormecidas e às feras a dormitar? Onde me posso poder tocar, trocar, retorcer? Com o sorriso na boca em vão mendigo o que digo. Pergunto de mão estendida donde veio o número errado esse inúmero fechado que me coube no sorteio. Cada resposta se encosta à margem de erro menor. Pois antes dela e de mim tinha sido estipulado que ao erro mais que possível ninguém seria obrigado. O número roubado à sorte é amor. Roubado sim. Roubado.
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POR CONTRA EXEMPLO 1 Toda a gente sabe que no lugar onde se é flor já amiúde se foi fruto. E por aí fora. E por aqui dentro. 2 O reboliço curvo e agudo da criança que se arredonda na barriga em riste. O texto crucificado na página, pronto a ser despregado, envolto em branca mortalha, colocado no sepulcro, ressuscitado. As frases infectas já coroadas de moscas e zumbidos e feridas de olhar, de olhar demasiado tempo, de olhar perto de mais, aqui ao longe... O quadrado quase rectângulo, quase impossibilidade do círculo, quase probabilidade do ovo e do olho, quase mancha, morcego e testículo, eu te abraço, te ofereço 282
como corpo de nexo e súbita bússola sua. 3 perco às vezes a cabeça – só então sei que a tenho algures. ora caída entre os ombros, ora escassa ou esquecida lá no fundo da barriga. acontece ela rolar num longo plano inclinado uniformemente inclinado e isso nem sequer prova que não prova o que não prova. contudo altera a distância entre o vinho bocejando no cálice e a boca ainda entreaberta. tenho sede de retorno do inferno do retorno – bebo água de desejo. 4 o que se escreve sem ajuda de mão humana ou divina por obra e graça da perda dessa pouca sincronia entre estas coisas do dia e o dia a dia a correr 283
entre estas coisas da noite e a sua infiltração o que se escreve então faz-me o imenso favor de não haver quem o leia ou de não se poder ler. aceita então meu amor leituras diagonais como aceitas sem protesto a pura suposição do alto que delimita para que o baixo permita que não passemos do chão. pois só delas parte o canto das almas hoje submersas soterradas, sublevadas, espezinhadas, enxotadas sem assunto de conversa.
284
No papel talvez papoila engelhada até ao rubro e nos meus sangues antigos procuro uma quietude de estômago a meu lado fígado logo a seguir para poder ser bicado procuro com essa coisa aguçada na mão o país anestesiado o país refugiado pois que lá moram e choram todas as partes sensíveis procuro isso como se fosse luz de comer e luz comendo atrás e à frente dos olhos
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As paredes fogem falam face à ideia de Deus como se ele não fora e já não estivesse dentro ou lhes viesse a faltar sonegando esta palavra quando não articulada as paredes escorrem correm contra a linha horizontal contra os fios de horizonte em sendo tarde se colam resvalam entre veludos entre corpos ou buracos são e não são sexuadas as paredes só de sangue e de suor só lágrimas virtuosas virtuais as paredes serão sexo esgrimirão argumentos de amor
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Lume e ci炭me em excesso amante vestido de manh達 amante despido de amanh達
lavra-me cada palavra mas sou terra terra a terra v達
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Como peça de roupa que levasse infinito tempo a ser despida como canção das chamas que levasse infinito tempo a ser acesa como caos de cabelo que levasse infinito tempo a ser toucado como luz que não furasse as trevas e espelho que não repetisse quem se mira e luz que não furasse o espelho e trevas que não repetissem quem nos cega assim me vou fazendo cabeça e encimando uma colecção de mulheres-objecto e este crime de ser quase perfeito espera a calada da noite para se tornar castigo
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Silêncio de corredor e dor interminável entre a luz que ao fundo cega e o escuro que atrás devora cada dia mais precisa e indecisa me vou esfumando se ao menos eu pudesse falar de frente e traseiras com esse génio que engendra palavras nas ribanceiras e sai ileso de amor mas a tábua que rangeu a poeira que dançou o lapso de água cantante que me secou a garganta foi quanto não me bastou silêncio do que me espreita beijando sem me beijar diante de mim diante o que parece perece o que é jamais me achou – fico parada perante mastigando a minha marcha com gula de agonizante e encontro aquilo que dei na falta que as mãos me fazem 289
Antes de já ser antigo o mundo não silenciava a história sem um alívio de fim heróis humanos ou não humanos nem sempre heróis recusavam o dilema que os forçava a escolher entre o amor e o amor antes de já ser antigo o mundo não pertencia a quem fazia o papel de dono do abandono heróis e anti-heróis meditavam sobre o fruto como se não fora feito para o seu próprio prazer ou para alheio proveito cada bicho, planta, pedra abriga dentro de si esse tempo que se come antes de ser descascado depois de ser descascado tempo em dever de devir sem prazo de encantamento
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Eu durmo de olho aberto como a criança de outrora como a criança vindoura que não quer abrir a porta do sono ao rumor irremediável porém sei que isso acontece acontece o irremediável só o irremediável acontece tenho sonhos à minha guarda belos e demasiados esfarrapados em sua demasia por isso rasgo e corrompo o dia rompendo em mim com parcimónias de bela e exageros de monstro dormindo de olho aberto
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Entre a floresta analfabeta e o pomar tão culto um homem quiçá mulher aproxima-se de estar exactamente entre entre a floresta de fábula e o fruto já oculto um homem à parte à porta distingue agora mulher distingue agora melhor que não são árvores não o que os seus olhos avistam são apenas carabinas alinhadas enterradas no chão chamaste pelo nome da minha constância e depois chamaste-lhe outros nomes nomes de guerra também quase pantanosos nomes de trincheira de túmulo aberto uma derradeira vez como se toda a floresta que resta se escondesse debaixo de terra simétrica e radical invisual e invisível mas um certo cheiro saído de uma fresta menos que olho fará o seu caminho na escuridão até onde sim 292
REMOÇO parteira de suas dores ela canta e ela corta com os dentes afiados aquilo que pende à porta porém o que pende e murcha logo remoça e se mostra e se dispõe a crescer de um canto que à voz se encosta parteira de suas dores sentirá o cheiro a morte onde quer que a vida assente frente a si ou frente à frente pois é o próprio combate que combate sem saber causando a si mesma as dores em vez de as suspender ela canta e ela corta virando costas à obra diante de si aberta como sobra de fachada
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Há memórias soterradas que afloram não apenas ao sabor da erosão e das lágrimas em vão já derramadas há memórias que empurram para a luz às dores do nascimento parecidas contrárias à ideia de outras vidas há memórias que nos servem de retrato e nos fazem passar por quem não somos feridas com perfume de aparato mas se acaso motivo nos trouxerem para toda a lembrança ser revolta eu mesma entregarei ao esquecimento o corpo que recorda a alma ainda à solta
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Um dia que por excepção durasse mais do que um dia e nós lá dentro a durar não que nos custasse menos a estar e atravessar não que ele nunca vencesse o corpo ali e em si mesmo arribado e derrotado não que entrasse finalmente na cama como um ladrão apenas que em nós durasse por regra de ser excepção até ser interminável até ser inacabado face a face a face a face
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O VASO DE JACINTOS onde o sol sempre te veja e eu te visse entre gumes de bruma e silvos de comboio descendente agarrando com a baba de dois braços o cheiro de um amor madrugador segredando outras mãos e outros dedos que do corpo me caíssem aos pedaços onde o sol sempre te aviste e eu te vestisse num teatro só de nuvens e biombos sabedora de uma luz sábia de sombras fazendo e desfazendo companhia como se fora tela e ao lado dela a espera quase eterna num só dia
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Fevereiro
LEGENDA em espera e em demora permaneço remando contra vagas tão iguais que a crista mal se forma se desfaz. assente sobre estacas tábua rasa confundo pensamentos e feitiços. nos sonhos troco o mar pela jangada e logo dou à costa lazarenta no frio dos cabelos embrulhada farrapo que não tapa nem destapa. desperto porque o sono em mim resiste e durmo se no escuro não me vês talvez por me trazeres tão escondida que esqueces o lugar onde me deixas amante desde sempre adormecida no quarto do boato minguante. apenas lua uivando aos cães.
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Queres tu que eu queira e saiba separar as fundas águas onde sou fogo e me afogo? sim. assim o soubesse com plenitude insolente. contudo a cada fundo que toco uma pergunta me faz regressar à superfície: será que esta promessa a que chamo poesia é mais que aquilo que vi, que ouvi, perdi e temi? cada imagem que me toca me atinge, tinge e desfoca, contra o nada disparada, te devolve os céus abaixo fulminando os céus acima de uma paisagem cansada. amor, eis que as árvores maiores avançam mais devagar sobre o corpo de horizonte vertical quando caminha. amor, eu tento entender o que faz o mercador sempre capaz de vender 299
e de achar palavras certas enganando-se no troco – fogo, eu me atiro ao fogo de outro e de outro artifĂcio.
300
Coisa que me causa tão grande e fera. coisa que consagra ao saque. eis que bate a porta e a porta bate derrubando a casa que lhe serve de moldura. eis que o bicho esvoaçante defeca sobre o pássaro pousado e entregue ao canto. eis que a fala se gaba de fabricar a palavra escorregadia como dócil sabonete. eis que o cabelo estrangula a folha dos olhos seca e o peito endurece trémula armadura. coisa que me causa de surpresa em calafrio. coisa que consente onde não é consentida. causa que me coisa, coisa preta pretérita preterida. 301
Dizem que precisam de ar as feridas para sarar. que farei então das dores se moem às escondidas e doem como lembranças até não haver mais carne de que possa recordar-me? até onde descrever seu mau aspecto e costumes as cores com as quais me pintam e o requinte com que sangram incapazes de mentir dispostas a que lhes mintam? frutos que fedem a estrume lume do lugar do tronco flores em forma de raiz inextricável madeixa sorriso de cicatriz que se abre e não mais se fecha vermelho sobre vermelho estampado em rosto de gueixa. mas quem atravessa o espelho para buscar seu amante na outra imagem da margem não se queixa de haver barcos que rasgam o baixo ventre e no lodo se desfazem carne morta em água viva sem parto ou porta que empreste rumo ao rumor da deriva. 302
ROMANCE pé ante pé de paisagem em debandada e derrota desfilando como imagem o soldado raso marcha entre o passado que acha e o pouco tempo que tem até que a terra-mãe já não se verga ou agacha e ao soldado acerta o passo rangem as botas do gajo biqueiras de duro aço seu calçado de abandono ao soldado custa o sono eterna a noite lhe chega condecorada de estrelas ele é vê-las e tocá-las deixá-las beijar-lhe as mãos enquanto o corpo sossega ó corpo sem hierarquia caído onde não pertences, a quem vês e a quem vences?
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Na cama faço meu ninho com ar de quem se desfaz porque a manhã se anuncia filha enjeitada da noite e sou – atente-se nisto – a pobre canção que entra e sai pelo mesmo ouvido falta-me tudo e só falta dormir em mim nos teus olhos sem colchão nem almofada se me desses cama dura jamais feita ou ajeitada com ar de quem lá se deita e estreita o que não se agarra a mais não mais sentiria que sou pura demasia à falta de fazer falta
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Sim se to digo é porque tenho almas várias e todas elas indomáveis todas elas enjauladas sim se te digo assim é porque mudo de corpo de cor, de corvo também quebrando o gelo e o agoiro não se te falo então com gentil acanhamento é porque livre estou apta aos dias do cativeiro não se acaso não tens receio ou meio travando o fim e nem me vês borboleta perseguindo o caçador não invisível sim à vista desconjuntada e tão junta pausa impoluta do tempo em que se arde e pergunta e sinais de solo portanto atrevimento de entrave eu sou a que não te poupa o chão chama a chama chão 305
eu te sopro e eu te sofro te interrogo à queima-roupa sobre o que não tem resposta e a toda a hora se mostra: quantas baixas, meu amor, haverá a registar e com que dedos gelados haveremos de contar?
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OVULAÇÃO se a noite já não abriga à noite nos obrigamos dizendo entre novos dentes enterrados nas gengivas que as imagens nos obcecam e secam até deserto e desastre porém dessa frescura adiada entre a fartura das coxas nascem areias de texto espalhadas pelo vento com todo o mel do desleixo – interminável passeio de dois amantes errando na orla do pensamento
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AS SETE PARTIDAS aquilo que ferve à tona flutua e logo se afoga já no centro ou no recato de uma frase como olho que ficasse pintado em parede ou cara gravado em carne de pedra cada vez que se abre e vê e isso posto ao serviço das coisas que não mais servem é tudo quanto me molha me bebe me suga e enxuga antes de ser renascido regressado de um aperto recém recém existido porque trovejam as trovas fulminando os trovadores e a ira do céu é cópia desta volúpia terrestre de nos sabermos amantes em fuga
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Rumino a mesma luz que me rumina e o acaso da menina que em mim se perdesse preferindo estes caminhos de mãos dadas em primeira mão fui a primeira a saber que as ruas empalidecem quando tocam lá ao longe o horizonte e o sol a peso de ouro se faz monge era tarde para desmontar a arte poética, o seu atrevimento e o seu imediato malentendido era tarde para usar a atrofia do silêncio que no verbo se espelha como velha luminosa e se agarra ao verso como a lágrima ao lenço e um eterno adeus às dobras do pensamento era tão tarde e que cedo tombáramos da cama sem que isso nos acordasse ou pelo menos despertasse o mundo 309
Para que algo fale é preciso que alguém trace círculos de silêncio e os apague com a língua para que o gume se mostre ferindo de ternura a casa orelha e a cova de uma boca nunca ouvida e a coisa oca e cheia onde se ecoa é preciso de se espalhe no palato todo o mel que cola a língua à outra língua toda a baba das palavras minguantes toda a frase inacabada em sendo acto porém amantamigo eu me combato com sussurros e suores de outro cimento livrando o meu lamento letra a letra aos dentes que esfarrapam alimento cuspindo o texto disforme na forma tão redonda de ser prato
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O SOL OCULTO DO SOVACO os teus pés tocando o céu e os meus roçando a terra e nada mais que não lute contra o dever de haver sempre tempo de folga e fracasso caminho por esta rua como se andasses agora ainda à minha procura vês, estou certa que vês, o que te quero dizer... entregas talvez aos cães coisas que cheiram a mim coisas que cheiram a ser pedaços do que eu farei bocados do que não sei assim te chegam às mãos e aquilo em que eu haverei de dever e de falhar te não poderá faltar pois na hora de me achar oculta me imaginaste
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FORCLUSÃO não sei se erosão de Psique talvez psicose de Eros ou talvez simples errata que alguém acrescenta à vida forçando entrada e saída numa casa onde se mata com a mão mais trémula se puxa a ponta do arpão cravado em miragem de alma e com mão da firmeza se verifica o nó cego da venda ou da mordaça ó boca que não beijas boca e da cara te retiras como se apenas sorrisses ó olhos que não vedes olhos e de vós mesmos fugis como bichos acossados pela lei da perspectiva à vossa inesperança me confio e sangro em pouco fio em quase voz criança e não desejo de criança criada e não desejo de criar
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Há então que deter-se em parecenças gritantes e porém silenciosas traços de gente inexistente e de outra também como eu fora de mim essa gente tirada a ferros busca os modos espinhosos da beleza saboreando os dias grandes dias sem meios sem meio sem fim amor, ouve-me ainda, antes de pareceres e adormeceres a evidência é um vinho envelhecido à custa de todo o novo açúcar a evidência, amor, mata e só depois se oferece em forma de mortalha ao entendimento lembra-te de que eu levava na manga sucessos sonâmbulos ascos e casos e sacos cheios mas deixei a vontade de narrar nos braços já tão longos do desejo entre a surpresa de um beijo e o jeito quase infantil de rir no pestanejar 313
Hoje mesmo a cidade era brinquedo e eu senti-a tremer dentro dos olhos era de novo noite e dia ao mesmo tempo sementeira de teus dedos e outras flores era rua abrindo os braços esbaforida e o teu cheiro a cada esquina mais intenso era cara carimbada na barriga e o imenso sol da mĂŁo menos distante se me deixasses dormir no teu bocejo poderia sem temor atravessar a ponte que se escreve com a lĂngua se me deixasses despertar estremunhada saberia sem pavor de madrugada regressar de estranha terra em terra estranha
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O pássaro como o amor é portátil paira acima de si mesmo e até voa à porta fechada o pássaro diz falando de amor que quase não aprendeu a voar o amor prende-se ao pássaro que lhe solta as asas como se as não tivesse ele próprio este é um mistério que por ser insondável nos ensina a repousar no céu no céu diminuto no céu imenso onde tu me pensas onde eu já não penso
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Meter as mãos na massa do amor sim assim metê-las na massa até ao pescoço meter-se até ao fundo como se como se poço e amassar, amassar até que a massa descole das mãos e a matéria descole da matéria até que forma se forme mesmo que extinta
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DA FADIGA música única tangente tocante e fora do pensamento todo o esforço de ser música de ser musa todo o zelo no arranjo de casa do tempo se esfacelou e esfarrapou porque a palavra foi precisa às poucas mãos que esvaziavam o mundo ali fazendo breve morada música punida e imperdoável esta que é de frase finita e saia encurtada esta que espeta as unhas antes de as cortar rentes e coçar a sarna das paredes música bússola reduzida a um só ponteiro e a dois braços abertos como certas árvores mais frondosas do que a palavra nunca antes de serem olhadas e fulminadas música massa a pão jamais destinada puro aroma de fermento ácido lento 317
em secreto tubo digestivo música banquete a branco e cinzento onde o azul é menos casto sobre o azul menos lascivo para onde rola a cabeça música entregue ao desuso de pôr cobro ao pensamento e de conceder ao corpo o direito a estar absorto aquém de ser pensativo
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VISITA DE ESTUDO Nº Em poesia rimas são ecos. São precisas paredes de várias sortes para que possam existir. Rimas são fantasmas. São precisas paredes de várias sortes para que possa haver assombração. Aqui me rimo. Aqui me não redimo.
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Lembro-me de guerras de travesseiro e de estar atenta pela noite dentro ao que não iria acontecer lembro-me do medo de não me lembrar e de ser essa a forma primeira da falsa ingenuidade como cheguei eu então à impossibilidade de esquecer de escolher entre ser rascunho de mulher e mortalha de flor murcha? como se espinho como se espetada na garganta como se pústula na face do mundo como se espada e esgrima nula como se esquina esbarrando noutra esquina como se gosto a esgoto como se esgar de desgosto e gota a gota a correr em sentido sempre oposto
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OS DIAS CONFUNDIDOS teu beco apenas língua e só saída mais do que errante errada e tão antiga à mão já muito inchada a terra obriga que agarre em sua enxada e cave ainda teu beco de enganar a quem se engana da índia segue a rota americana e a boca aberta em barco de quem ama é vaga em vez da alma prometida raposa e logo lebre se corrida maré sugando lua em cada coisa teu beco de olhos gastos e outros gostos onde me dano e estranho o que não vejo fazendo minha a roupa das olheiras e cinza das felinas borralheiras meu baile em borboleta ultra-violeta meu baile sem sapato em terra incerta
321
CAMALEÃO XXX numa espécie de sonho – daqueles que prosseguem os hiatos entre imagens –, um amigo camaleão com cara de amigos vários de poucos amigos diz-me que é preciso calçar luvas de luz e é isso mesmo que faz ao falar-me assim. de súbito tudo me vem à cabeça tudo me vem à garganta e é como se despertasse de noite em pleno dia. noite de arvoredo e tiro ao alvo paredes meias com as longas diarreias de deserto. noite com noites a bordo tristes passageiras dispostas a não descer nunca na próxima estação. noite gratuita e fria. a que custo o dia ser o fazer dia?
322
O PREDADOR PERDEDOR como se não conseguira descravar o desejo de ser garra do nome de uma presa já antiga assim quem é incapaz de soltar causas de corpo recolhendo a longa rede onde me morro e socorro saberás o que respira no que já perfaz escrita o que mente sem verdade e o que vale uma mentira pois quem receia mas ousa ousa mais o que receia ousa sempre o que recebe é tarde a conversa é uma vela que se apaga e se agarra à cera quente desta ideia é tarde a cabeça não se queixa de estar cheia e a cama cheira a galope a sombra do falcoeiro cresceu até não ser dia há um jogo de crianças em que alguém chega primeiro entre corridas e danças
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ENTRE FALSOS PASTORES se o canto nos pesa como albarda rente ao pêlo de haver besta bela em bela, quase fardo, quase farda se nos sabe a frase já rançosa se saída do fedor da salgadeira e se a gente se dobra para apanhar do chão o que sobra de uma oferta verdadeira se desejo que me encontres fora de mim ou de nós a sós contigo somente na bainha de uma aldeia e não no tempo presente onde tilinta obsessivo o som mal agradecido de quem permite uma esmola se te desejo sem ver-me e percebes de que falo neste reverso de espelho ou apenas de estilhaço é porque a escrita me diz que a palavra se desola do verso em que se conquista como se fora infecção mal de amor em invenção tido como oportunista
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O ESTADO SÓLIDO estar quase tão presente agora quanto alguém pode também ausente estar mudando estas palavras de lugar trocando pelo texto o que era manto sorrir ao adjectivo matinal seguindo as intenções sempre segundas esperar que haja água nos teus olhos bacias de cristal onde me turvo me curvo corvo salvo me dissolvo e lavo o pouco sol das mãos imundas talvez um passo à frente um passo em falso me seja mais fatal do que o passado mas como preferir um só destino ao caldo de teus olhos entornado e às margens indistintas do caudal?
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MAGIA se encontrares uma pedra branca numa mão fechada, um barco vermelho num quarto crescente, uma boca murcha numa flor despida, uma grande agulha num palheiro em brasa, uma casa andante numa rua às costas e uma cabeleira ao virar da esquina, a sombra do lobo ao virar da folha, uma pobre rima com cara de fardo, um lago profundo com cara de caso, um perfume a vento no fundo do bolso, um olho de peixe ao sul da barriga, um vestido às pintas dentro de um jornal, uma bruma a bruma na cova dos rins, um riso e um regato entre os teus joelhos, uma sombra ossuda encostada ao muro, um mapa do mundo na vez de um chapéu, um beijo rolando até à valeta, é porque eu sou bailarina de chumbo e tu soldado de tule a minha chama azul
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Roubei flores nos jardins puxando o fio à meada que era de arame farpado e era porque as palavras queriam ser castigadas e escolher o seu castigo que ninguém notava o furto do que em redor florescia fora de rumo ou desnorte e era porque as palavras se deixavam esmagar pela falta de haver fruto que ninguém me perseguia na condição de ser ladra do que estava à minha guarda talvez por haver riquezas cujo roubo é permitido as palavras se permitem talvez por haver licença de furtar tudo o que murcha elas não façam sentido nem as flores nem as palavras nem a frase que descreve outra frase que definha quanto mais vivo mais breve isto que eu sirvo e se atreve a dar tudo por não dito 327
Marรงo
A INDÚSTRIA DE SER entre padeiros e pescadores como que perdido na multiplicação ou entre e dentro o corpo toma a forma de uma noite interminável o meu amor deixa-me dormir até tarde o meu amor deixa-se dormir o meu amor deixa-me dormir até sempre mas não sei se ele dorme neste acordar tão pesado de que lado velado e certo andará o que respira a meu lado? eu sei jardins suspensos de silêncio e uma fonte lá no meio donde mana toda a água nenhum rumo apenas um ramo enlouquecido
330
L’ARRIÈRE-COUR je te donne rendez-vous là où ça fait un détour là où ça fait toujours un détour mon amour fais-moi la cour
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PETIT POÈME DANS TA LANGUE ÉTRANGE je me suis couchée sur la page et je me suis froissée il paraît qu’il est toujours temps mais de quoi
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PEQUENO POEMA ILÓGICO E VERDADEIRO que os fantasmas atravessem as paredes e as vozes também sim que haja quem se esgueire entre gotas e viva gota a gota também não eu de que lado estou dentro de mim se o coração me ensurdece como palavra a retardador? e os braços que a mim trago agarrados são os meus ainda desembainhá-los para que sejam espadas tuas?
333
A terra natal é aquela não nascida dói pelo canto do olho e vê-se talvez de esguelha pinta-se como parede e tomba como cortina permite pensamentos pequeninos daqueles que se trocam por miúdos e autoriza cada um a acreditar que um dia pode trocar a liberdade pela liberdade a terra natal é sintoma de pletora e privação conhece-se por dentro parece-se com mal estar dá jeito tê-la ao longe sempre que se chega e faz corar de prazer quando dela se fala porque na terra natal é moral escorregar e a moral escorrega
334
Sonha-se então que se é ladrão com cem anos de perdão na algibeira e prevendo um súbito esquecimento do motivo de todo o motivo há que tomar de assalto o que se pode roubar sem encontrar resistência na minha língua diz-se dar erros e tirar dúvidas na minha língua diz-se estar a caminho e bater com a porta na minha língua está-se morto de vontade... como alguns lêem saltando páginas ou mudam de passeio quando o sol bate assim eu não.
335
Não se dorme como dantes ou melhor não se desperta o sono é agora sorrateiro emboscada e presa retorta destilando pensamentos sublimes e vãos é janela estar atrás e à frente dela ser aceno amoroso desejo de que amante passe por entre esse impossível face a face é tiro e ricochete colete dourado à prova de bala é dor de ser bala disparada para dentro silhueta traçada no cimento e o dever de contorná-la é refeição esfriando à cabeceira e esse sentimento de estar à beira daquilo que alimenta o sofrimento aprofundando a fome ou corroendo o tempo é figura de amor em seu cântico amarelo e anil entre finíssimas folhas sufocada mas figura ainda assim inseparável pois o sono não vence nem se dá por vencido apenas se oferece como se outrora o tivéssemos recebido 336
Respiro com meus dois braços olho por olho te como talvez possas perdoar-me o que não deixo de lado escrevo na cova dos rins aquilo que é rascunho de outro rascunho e rabisco palavras a pontapé e na nuca guardo beijos que ouço dentro da orelha correndo em fio de voz como no estio da fonte olho com mãos se me dói o que se esvai entre dedos e esmurro com mil segredos as paredes do meu peito vá, tenho falta de jeito para tudo o que requer saudade de vocação e talento de esquecer mas cada poro te escuta contando o ritmo dos passos que já deste ou que darás fazendo de mim torrente estar mais só ou mais somente ferver em água nenhuma ensurdecendo a sereia aquém de um espasmo de espuma 337
eis que de amor me permito incompetentes feituras pois que lonjuras e alturas não ecoam este grito repito, pois bem, repito a mesma fraca figura lançando sombras imensas em vez de lançar a escada por onde a alma liberta das origens de ser corpo se sentiria segura
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Regressar já tarde ao terror da casa estremecendo de antemão e tiritando embrulhada numa chuva muito negra falar alto, carregar na voz segunda o refrão do outro mundo sem agudos ouvir soar a ordem de expulsão a cada instante lançada regressar para não ser recebida voltar para não mais ser chamada tremendo como nome que se esgota saber esse caminho gota a gota e também o que me vem em contra mão ter no charco o espelho fero e derradeiro onde os raios de sol já não se atrasam
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PEQUENO TRATADO DO INTRATÁVEL essa coisa que a custo se descobre nós a medo destapamos e ela a susto se destapa. e sendo quase luz a milhas e sendo muitas léguas de trevas ela nos entra pelos olhos dentro. amor me diz sem rodeios que cada coisa pequena esconde uma coisa maior e mais longínqua decerto. nem tudo o que hoje existe persiste em seguir à risca consiste em seguir à letra esta lei da perspectiva. pois se a desigualdade é gritante é preciso que ela grite. e que grite desigual.
340
Eu sou aquela que tu não procuravas minuto após minuto já danada nada te sou fulminada e imprevista faísca a que não procuraste e te encontrou onde não contavas e porque não contava não contou e não sendo por onde calculavas aqui me tens e estou ou estava tão perto de acreditar que se morria de amor melhor e devagar e esperas talvez sim que eu me dissolva por detrás da janela onde te espero vidraça pequena e baça pouco mais do que estilhaço nem sequer mantenho o brilho de ter sido peça solta aqui me tens escura sou desse desejo inexplicável de vestir a roupa toda velha e suja toda a roupa por humanos encardida toda a roupa do corpo em fuga ousando algum repouso alguma injúria.
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LANTERNA MÁGICA Entardeço refreando a música que trago dentro. Sei de memórias futuras, de falsos passados, de enganosas profundezas e de aparências tão mais verdadeiras quanto palavras agora descalças que colam já não à página mas ao pé. Sei de haver sombras de estrelas e num abrir e fechar de olhos confirmo que ainda sei como criança verificando que está acordada se isso lhe valer de alguma coisa. Sei de um refrão que baloiça e de uma trave para pendurar este e outros trapézios. Sei de um refrão que incita SOL E CEGA NÃO TE BAIXES, MIRRA! e ele soa entre os muros da cabeça como uma longa birra. O resto é metateatro de vão de escada e a luz que cada olhar entregue a si mesmo coloca em tudo o que não é. 342
Meu velho amigo casaco o mais antigo de todos irmão de labores e ócios lavado em águas de amores só tu me entendes talvez quando tento proferir uma frase que não fica bem na boca que a diga – dormir, vieillir peut-être... preferes pronúncia antiga à fala pronta-a-vestir e aceitas o que eu sou quando ando longe de mim e ferindo preferindo eu mesma antiga me sinto miragem entre paredes finita em deserto infindo
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Para onde ruma o amor quando torrente se faz e nos deixa para trás? agora em tempos de outrora recebo infinitamente o vestido cor de dia se não me julgas capaz de usá-lo até ao fio como falar-te em nudez? encontro perdidamente sementes de escuridão na bainha do vestido porque me visto de vivo de roupa insubmissa ao corpo e ao desejo de despir por onde voga o amor quando a vaga traz de volta a barcaça em que partiu? pode essa trémula boca essa forma navegante ser carne do meu amante? seja eu lama de margem água entre braços de terra e corda de arrimação seja eu esse vestido recém cortado e cosido que se contorce no chão seja eu vestido vela seja eu vestido sopro segundo e sexto sentido
344
Surpresa de uma frase inacabada, a frase ouvinte e preterida e adiada presa inesperada ou caçador nenhum apontando a sua arma para o que foi fôlego apenas uma dor de flor arfando apenas uma fissura de fruto em sua queda invisível apenas uma coisa disparada que me fala com ênfase de pausa de causa tu cá tu lá sem calma porque sou convidada e intrusa convidada e intrusa como decerto a alma
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O coração dispara pelos olhos e os olhos disparam pela boca agora. vergo-me agora para colher a rosa de papel amarrotada. e há um rio que corre sem correr ambulância lenta e estridente. como bebê-lo a ele rio de me não veres rio?
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PARTIR EST-CE DONC FAIRE LONG FEU? será este o som dos meus passos cada dia mais incertos nas artérias de uma cidade pequena de uma cidade sem coração? será esta a minha noite a noite de joelhos esfolados gritando como criança que assim se imagina em bando? e serei eu quando e onde o veneno do sangue assustado me rói os pulsos e me ensurdece a ponto de ninguém poder falar mais alto falar mais baixo? será esse o amor com amor se estraga de todas as dores a mais concreta e vasta e vaga? será essa a tal esquina que me espera tão aguda e impossível de dobrar tão escura e nítida como a mão do vencedor afagando o espólio e a mão do vencido perdida de seu braço?
347
Bom fora que o coração me enganasse. Ou talvez não. Pois entre duas frases que se desdobram cava-se um vazio de desfiladeiro onde dançam negras nuvens até à extinção da sílaba até ser dia sibilino até ser gago o texto. Talvez me responda com firmeza uma voz vinda de uma horta pobre ou de um jardim de aromas ou da infância desdenhosa de o ser. Sim, eu sei de sítios e sendas que ainda vêm até mim sem eu lá estar. Sim. Salve-se quem não puder. Salva-te se puderes e se me queres.
348
Em sonhos visitamos jardins suspensos e jardins interrompidos. Em sonhos vestimos jardins contraídos como uma doença jardins esvaídos como mais uma convalescença. Sim. Façamos de tudo e contudo amor. Pois essa noite que cai batendo portas é um mal menor.
349
Frente às figuras em perpétua mutação da tapeçaria de céu que me começa do chão não farei nem já desfiz os nós mas seguro as pontas infinitamente perplexa e grata por ser tão longo o fio
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Das parecenças entre sonho e realidade retiro para meu uso pessoal um castelo de cartas um beijo de espada um castelo de claras um beijo de gema das parecenças entre o sonho e o sonho retiro para meu governo o sentimento de não ser real o que não é real a ponto de ser sonhado da feliz incoincidência entre mim e ti nada retiro pois que devemos sonhar até sermos mais implacavelmente reais
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I KNOW NOT WHAT THE FUTURE WILL SING sob um céu de cinza obesa sob um céu riscado de invisível sob um céu de terra prometida sob um céu solene de insolência sob um céu mais azul nas entrelinhas sob um céu de costura tão grosseira sob um céu de sobremaneira sob um céu de cuspir espinhas sob um céu na cauda de si mesmo sob um céu e sobre a terra sobre um céu e sob a terra sobre sob e sobe mas não sobe
352
MIND YOUR HEAD O estudo estafado e o estudo finito de algum infinito O estudo de irmãs as irmãs na estiva banhando nos olhos de seu humor vítreo A forma assertiva de haver primavera máscaras a menos carrascos a mais O estudo de irmãos ter irmãos ao longe que trazem degelo na febre das mãos O estado em estudo e a estima precisa para ser preciso Tudo isso confuso em lugar devido vítimas de um lado e mortes ao vivo Tudo isso à cabeça e a cauda na boca só não mete medo o que já não conta 353
Tudo isso contado no modo assassino a cobra e a cabra trincando o destino O estudo tormenta ciclone de estufa e ave agoirenta
354
FOUR LETTER SWORD dir-se-ia então que a criança vem molhar os pés no texto antes que ele seja caudal antes que seja causal em seu modo categórico ora dúvida e demência ora ilha flutuando ingénua renasciência dir-me-ás com indolência de palavra viajante viajada de palavra vigilante na vingança que a criança foi espancada porque se enganou de texto porque se enganou de casa – fala de boca molhada porque já molhou os pés dir-me-ás o temor de haver um texto palavras de inventar vento outras talvez de apanhar em voo nada diz a retaguarda da frente onde se cara e do fundo onde eu destoo ah quem me leve e me traga ah quem me leve e pesada se avanças porque não danças e por um triz não me deixas deixando-me para trás. 355
CITANDO que hábil minha mãe me foras sendo por não me teres dito que eu nascia quando e onde e como se abria o vasto mundo entre pernas onde havia de fechar-me – assim mo mostram agora faz pois de novo o milagre ó mãe de não me dizeres a morte quando e como a toda a hora e onde agora já se me vê a cabeça a nuca desta cidade submersa num mundo tirado a ferros ó mãe faz-me bem não me dizeres que não escrevo nesta língua de ninguém
356
O DESPOTISMO sob o modo do silêncio e da redoma por entre números de penumbra e alguns dedos de conversa imersa, o amor quase soava a empecilho mendigo de seu próprio tempo pedinte frente a seu próprio templo em ruínas. porém a música do descalabro o recorte exacto e exigente da derrocada só sobre céu azul se escrevia plenamente tão plenamente que quem olhava e lia não sabia se por motivo de pedra ou por razão de gente ali se desolava e na verdade o próprio destruidor já ignorava se cada dor lhe era já futura ou lhe seria então passada.
357
ARTE TRANSFIGURATIVA Procuro então o grão como estares não estares neste silêncio de copos e corpos nesta travessia de deserto servida à mesa. Procuro então o grão que não semente a imperfeita sublimação déspota contra déspota a dança quase e dentro da barriga. Precário então o grão a dança de engolir sabres e cuspir um fogo frio como se fora cálice já vazio de dor como se fora criança de criação anterior. Precária então a criança e a sua pança esculpida fome a fome – ó monumento enorme esse nome que nasce das cinzas debaixo do céu que era apenas este telhado de vidro e uma chuva de pedras.
358
impassível leitor mais amável mais fera
A teus pés deponho um sonho um pó de primavera condoída uma camisa de varas uma trôpega cantiga uma coisa que se conta pelos dedos de uma mão e de uma só depois é só cantá-la cortá-la espetá-la num canteiro como recado de amor entre o cheiro a embrião e o perfume a flor roubada ao cadáver que por ali passou depois mas depois durante um manto de haver amante que nos deixe os pés de fora depois mas depois agora o ramo chorando o tronco na raiz queixa de fruto e tudo o que nada diz
359
Há lugares talvez sagrados onde anoitece mais cedo. Há também recantos onde amanhece sempre inesperadamente. É neles que um certo homem joga contra si mesmo. E contra si não pode perder. Sucedem-se longas partidas sem que o resultado aconteça em plena noite ou em pleno dia. Esse homem certo olha fixamente o seu adversário isto é tudo o que envolve a parte adversa até que nada do seu jogo – mas seu de quem? – seja passível de avaliação ou do desejo de ser jogado. O homem – qual deles ao certo? – pensa: Nada mais fiel do que uma sombra. A não ser eu. Não.
360
Desperta-se a dor como se fosse urgente ou simplesmente imprudente acordá-la. Nas horas ímpares que um sino ao longe dissolve antes de serem tocadas eu não me habituo à sombra e outros não suportam a luz. Sabendo com todas as garras da ignorância que cada homem persegue sua vítima e apenas a deixa retomar fôlego para que corra à sua frente e lhe mostre o caminho do caminho. Eu não me habituo a esse plano inclinado onde se corre ainda mais depressa onde se abre e se fecha o abismo entre as pernas. E fica tudo entre pernas da mesma maneira que os segredos inúteis morrem entre parentes.
361
ALICE AU PAYS SANS SOMMEIL À la simple lecture de la petite étiquette MANGE-MOI son lit était devenu à la fois grand et trop grand étriqué et trop petit. Impossible d’y dormir et vain de se l’expliquer. À la première lecture de la petite étiquette EXPLIQUE-MOI son lit avait disparu à la fois sonorement et sans bruit. Impossible désormais d’être présente au réveil se dit-elle en se lovant sur elle-même. Et elle reste suspendue comme une larve à ses pensées insomniaques. Elle s’épuise à désirer qu’on lui fasse encore une fleur qu’on la saisisse en passant qu’on la prenne pour une autre pour un flacon par exemple pour une boisson pour l’exemple. 362
A SERPENTE DO DIA ASSOBIANDO O ruído tão discreto e tão concreto de uma página a virar – vastidão ilimitada desse livro amarelado e sempre aberto do lado ímpar, impresso, livro de andaime, estaleiro, frontispício do deserto. E o deserto transbordante do livro que assim se furta a ser usado e ousado é vago como um retrato devorando o seu sujeito. Livro escorrendo das mãos onde levas os meus olhos que não me vejo onde leio?
363
Talvez contando em voz alta até escorraçar o infinito Talvez sussurrando frases aos farrapos até compor os novos corpos espectrais Talvez escavando longe da mira como criança ou bicho escondem seu tesouro e sua ração e sua razão de combate Talvez tombando em abismos pressentidos permitidos Talvez buscando órbitas abandonadas pelos astros Talvez mas ainda assim me dirias quase irado que estou onde não devo e devo e devo
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O PENSAMENTO DUPLO Amar desejar amar mais ainda do que ser amada. No tapete de cinzas recortar novas aves para velha madrugada. Amar querer tecer a teia de uma aranha enlouquecida contra a cegueira do muro contra a lucidez a pingar do tecto contra o brilho autofรกgico do escuro. Amar e sem querer querer tudo e tudo apenas. Desenhar decapitar o que subia como sobe o leite morno e ausente o que ficava latente entre as coisas mais urgentes de um passado e outras coisas cada dia mais pequenas.
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O PENSAMENTO DÚBIO Com que palavras já descarnadas por um uso continuado e competente descrever isso que por obtuso engano foi olhado como heresia? A incomodidade de acordar a incomodidade de adormecer a incomodidade de comer a incomodidade de digerir de espreitar e de ser visto de escutar sem ser ouvido de cheirar e deitar a perder de tocar e desencontrar de ser criança e bênção ou seja maldição.
366
L’IVRE Ao invés do texto soletrado gravado sobre pedra e finalmente sem outro propósito que não desafiar a erosão, o fio da voz primeira procura o de outra para tecer uma matéria amante e pronta a ser esfarrapada. Essa existência que talvez não mereça o nome debaixo da língua e ainda menos os nomes de uma língua domadora no circo das verdades feras Essa existência que não é traficante das origens nem pretende fazer coincidir os começos e os princípios Essa existência acredita, meu amor, envolve tudo o que se oferece com o fino véu da descrença como se fosse por si só a maior das oferendas. Diz-se a dado passo numa história antiga: «Põe-te mesa!» E logo a toalha se desdobra se desfralda 367
fazendo surgir manjares e paisagens, velhas comidas e velhos caminhos, o desejo de agir e a vontade de repousar. Ao invĂŠs do texto gravado entre pedras, entre dentes, eis as maneiras ardentes de uma eterna gratidĂŁo.
368
L’ENFANT GIGOGNE Inúmeros os gestos que se pensam e não passam de pensamento sobretudo os da meiguice calados como se cala ora enguiço ora feitiço uma crença envergonhada. E de súbito quase nada quase se nada em nada – os longos rios parados no mapa do corpo a corpo e as praias cerceadas por mares muito interiores. Concede-me três desejos: o desejo de me desejares o desejo de me desejares o desejo de me desejares
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EM TORNO DO SIM E DO NÃO Poder ou não poder sem medo de fazer batota ver presságios de mundo e anúncios de fim através dos olhos de alguém. Verificar ou não entre os tempos mortos que o preço do íntimo subjuga a gratuidade do público. Então já não o torso mas a túnica já não o dorso mas a albarda já não a canção do ventre vazio mas uma frase flatulenta já não a máquina de sorrir e morder mas um ruído de locomotiva rasgando a grande noite de cima a baixo.
370
RETAGUARDA agora audível cada vez mais audível e ausente esse murmúrio de odores essa canção esbaforida do que foi já não ser nada agora vertebrada cada vez mais vertebrada e vã a ponte de espasmos entre noites rectas o enigma das cidades sobrepostas e do sono para sempre periférico porém agora não não mais não menos eu to confessarei como mãos debaixo de mãos como desejo sem apoteose como desejo sem mãos eu to confessarei irada e dada uivando contra o potencial que nos vigia e asfixia acolhendo o que respira boca a boca o que dilata e desloca o possível
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Esse instante dilatado em que não sei se abro ou fecho os meus olhos flutuantes se tu mos fechas para que eles cicatrizem ou se mos abres dizendo noutra língua o que eles não dizem na sua São remotas as certezas e as casas erguem lados que parecem ser de lá e os que sobram por cá soam a estilhaços impensados a espelhos muito incompletos onde nada se mirou apenas céu Mas as casas e as certezas como odres matam a sede a quem passa refrescando os olhos se fechados com as lágrimas doutros olhos que se abriram negros e novos
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ADVÉRBIO Menos curto e menos raro do que o sonho cor de rosa e o pesadelo protector Menos curto e menos raro do que sorrir e sumir Mais intrépido em sua prosa rota e seus remendos de poesia é este modo que o dia tem de cair deixando um pouco de si ou de nós por toda a parte Ora eu apenas queria perguntar-te para onde voam os pés e as palavras?
373
Adiando quanto pode a hora de adormecer a criança luta contra o sono para não perder pitada do sal da vida entornada que não mais será servida. E nesse combate insano ganha e perde algumas penas alguns medos a si mesmo predizendo que tudo acontecerá quando menos se esperava. Entre o futuro ali perto e o passado que não passa ela nada em roupa larga porque o corpo cinge e aperta essa coisa agoniada que em si se mantém desperta. A criança reconhece as bermas de alguma estrada que começa em sua boca e se estende como língua até se perder de vista a serpente em carne viva o verbo em forma de cauda e o céu de uma dentição. A criança reconhece no tom, no timbre e no tempo um convite e uma recusa. Só a criança é capaz de usar o que não se usa. 374
Abril
Há talvez entre a fobia das alturas e o temor das profundezas um teatro clínico com força de lei. há talvez o papel que lá representamos ou uma falta de vocação demasiadas vezes apontada a dedo. mas há sobretudo esse instante sem ribalta ou bastidor em que digo o teu nome em voz alta e o digo mais uma vez pela primeira vez. e há decerto as sombras das chamas as sombras que não são o negativo das chamas as sombras onde nos queimamos e as chamas chamadas pela primeira vez.
376
Fala-me e falta-me uma cegueira de violino uma cegueira de esquina um violino de esquina e a mão calosa em repouso sobre a face do mundo como sobre uma fachada derrubada a mão calosa e pedinte porque a tudo abandonada fala-me e falta-me a frase que avança em sua paisagem lenta purulenta a frase que dança em seu fio de horizonte à navalhada em seu conflito de sintaxe vertical em seu cordão já pronto a estrangular sem memória nem desenho umbilical e porque não existe arte de dizer que não seja de lacuna, pausa, brecha que não seja fresta e flecha que não seja invisibilidade e estação a meio caminho entre o corpo que se deita e o corpo que se ergue pois cansado de seu ócio tão rebelde ainda se sujeita a caminhar e porque não existe também não arte de guerrear que não seja o deleite da derrota igualando o vencido ao vencedor num só texto corrido e poliglota 377
e porque é atroz o feixe antes de ser archote antes de ardermos em nossos livros na intimidade de uma praça pública e porque não se partilha a vida em seu nascer e morrer nem na dúvida, nem na dívida e porque não há ah
378
Je prends tous les torts sur moi et tout d’abord le tort d’être devenue cette femme qui ne se coiffe pas devant un miroir
379
MEZZO alguém bate à porta algures e algures já ninguém atende e é como se ela estivesse desde sempre escancarada ou cerrada desde então e é como se ela existisse bem antes de haver fachada ou chave na fechadura porém será quase certo que entre parede e parede se escuta porém parece provável que às paredes derrubadas sucedam novas paredes e que sirvam de encosto às orelhas a todos os medos a todas as ideias assim o amor cunha a sua moeda em terra estranha esperando dissipá-la em trocas mágicas até ao último tostão alguém se esconde atrás da porta alguém se esconde em frente à porta como diante de um espelho sem avesso 380
Les lèvres roses closes comme un pardon impardonnable les livres grand ouverts et les grandes lèvres fermées les couteaux à double tranchant taillent des vies à double tranchée
381
A poesia era poder adormecer em cima da mesa onde se trabalhou onde quase se escreveu e se escreveu de mais era ser encontrada já em sonhos num lugar pobre e luminoso onde os caminhos têm mais de dois sentidos e as palavras banham duas muitas vezes no mesmo sangue onde a água se dá a beber sôfrega como se brotasse dos olhos apenas e era ser trazida até ti morta ou viva ainda quente
382
Toutes les lumières de la nuit m’ont saluée en haletant et j’ai marché inégale à moi-même c’est-à-dire
383
AFEIÇÃO E FACE se as palavras não tocarem não tremerem se não se esfarraparem frase a frase se não forem apanhadas de surpresa se não forem derramadas na secura se não premeditarem sem recato se não pressagiarem sem certeza se não fizerem jus ao que não são se não derem a vez ao que não foi quero ser cega na rua dos olhares e que me pisem as pupilas sem cautela cada rima me destina ao alçapão – de seus e meus senãos não nasceu bela
384
LA DÉCENCE vide de sens avide de sens à vide à vie avis
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O texto esconde bem o seu rastilho. como um carrilhão ele soará indefinível mas inegavelmente desafinado perdido em seu palácio de reflexos que não ecoam nem espelham nenhuma intenção primeira leva água na boca e areia nos bolsos o texto é o seu próprio esconderijo o lugar onde deflagra é uma equidistância que separa a luz da luz viaja leve sempre de regresso sempre regressando do regresso o texto esconde aquilo que não esconde
386
FÓSSIL caída nas malhas lassas daquela meia estação eterna mas não interminável eis a Casa e eis que nos cabe visitá-la com os olhos infantis de esquecimento com os olhos pueris do pensamento para apagar todo o rasto de lá ter havido estado e no cimo do telhado os anjos de asa rota trocam entre si sorrisos e abraços e galhardetes antes de caírem obrigatoriamente a pique e a nudez fora de prazo de olhos cravados na nuca de unhas cravadas no osso conspira sem dar nas vistas contra o quero mas não posso e outros modos de habitar
387
O EFEITO a dança mais que possível é dança mais que perfeita de arder neve e também fogo entre ventres cambaleio como pesa a borboleta antes de ser fuzilada eis que a vejo estatelada pois a bela menos bela em seus cabelos tropeça amor, nem fogo nem neve apenas chuva caindo por onde a noite começa seus mil vestidos despidos deslizam sobre a paisagem não sei se corpo ou cadáver seus mil vestidos desenham o caminho menos longo e pés pensando esse mapa ó noite negra da ruga que se cava na palavra quando o céu semeia a fuga noite branca sob a capa o que lá estava não estava e quem via consentia diz-se que a luta se trava, que nenhum lugar escapou a ser campo de batalha mas eu de que lado vim e de que lado não vejo e de que lado não estou? 388
Sim, amor eu medi os braços e os remos pelo tamanho do barco que me fez sentir ausente e assim me acorrentei entre margens dividida a desejos de corrente as unhas desfazem nós nas cordas que ninguém toca cravam silêncio de pregos na grande parede branca onde se forjam as sombras daquilo que já foi voz onde disse desmedi-me abracei e debati-me como se fora abraçada... quem se não tu poderá esbanjar ouro de sombra se da luz não sobrar nada?
389
O MANUAL DO APAZIGUAMENTO 1. Todos esses que se lançam de cabeça todo esse que me infesta que me afasta todo o amante se persegue e repudia – 2. Todos sabem o que eu ignoro ainda. Eles sabem onde me acaba e começa o choro, o caudal, a cabeleira, porque a raiz me resiste e existe apenas se arrancada. 3. Mas como num velho romance policial todos os segredos serviram de álibi de discreta cobertura a um segredo maior. 4. E debaixo dessa tela que se enrola às pernas em sua euforia de reza ou de caminho crescente, o segredo ora remoça ora envelhece, inalterando-se. 5. Rompem-se o véu e o sapato a promessa o juramento fura-se o fundo do tacho remenda-se o firmamento. 6. A despeito de nenhum despeito. A respeito de nenhum respeito. Assim me não sujeito. 390
Certa noite chegará como comida fumegante acabada de fazer uma clareira desenhada por galopes azuis e poeira de centauros será a nossa cama a nossa mesa o nosso olho enorme e míope e haverá amoras e ametistas aranhas e agapantos arminho e arroz doce amêndoas e albatrozes adufes e alaúdes almíscar e açafrão haverá decifração
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Em tempos que já lá não vão agarravas nos meus seios como em bombas e elas rebentavam ou caíam ou falavam a língua da mão e da explosão. E porque os gostos sobretudo os gostos se discutiam, havia uma história, também erótica, a reescrever por entre destroços e entre nós que destroçávamos. Nestes outros tempos o corpo serve de presa e serve de rapina, carimbado de nomes para não chegar anónimo ao açougue. E se é verdade que suja o avental e pinga signos pela rua fora, não é menos certo que pende e faz montra quase cheia onde não se ouvia desejo de fachada nem porta das traseiras a ranger. Mais tarde será tarde ou será apenas mais? 392
A alma no paiol e o corpo em obras ou atravessei a cidade de bandeja na mão ou o coração tremia como tabuleta ou as pernas só me levam onde nunca ou a partir de agora ontem não terá pressa ou estrelas debaixo dos dentes quando beijas ou um espelho caçador de olhares vazios ou a eternidade está convencida de que acaba quando muito bem entender ou quem mete os pés pelas mãos fica sem pés ou ninguém consegue deter quem se detém ou contar de cabeça até voltar a precisar dos dedos
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DE CHUMBO Dou voltas na cama como se um planeta me girasse dentro da barriga e a cama me girasse dentro da cabeça e a cabeça já desligada do corpo rolasse por ruelas se enfiasse em bueiros e chegasse às entranhas de um corpo maior que o meu. Dou voltas à cabeça e o planeta transpira nos meus lençóis enquanto ao fundo da rua se assobiam bocados de canções dessas que só existiram aos pedaços e foram carne para canhão de tantos sonhos e foram primeiro alimento ao despertar insolitamente suficiente na sua insolência clara. Dou voltas à cabeça e a cara fica sempre virada para o mesmo lado – é uma espécie de valsa descalça bailada em lamaçal de primavera, uma dança que arrasta consigo a paisagem e a impossibilidade de abrigo o descampado e a promessa de intempérie elegâncias de batalha perdida olhares indivisos debandadas. A bailarina de chumbo está abraçada ao soldado de tule e isto não é falta de sono mas sim o vento que abre sorrisos e janelas. 394
TRÊS CANÇÕES DE AMOR I O Pássaro é toda a coisa reduzida às suas cinzas. II O Sol vazou-lhe os olhos negros. O Sol sugou-lhe todos os suores. O Sol secou as lágrimas nascentes. O Sol chamou a si todos os seus passos. E perante o Sol apenas a sua sombra vacilante o seu justo vaticínio: a prata escura abraçando o velho oiro do dia. III Ouço música nas costas como se fora apenas eu a ouvi-la. Ela caminha em bicos de pés como eu caminharia. Ouço música despida até à cintura e ela toca-me como se eu fosse alvo e instrumento arco de carne e ideia de flecha.
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TO STAND AND TO UNDERSTAND, AND Não sei se a língua corrompe ou se a vista conspira contra a fala que delira mais perto do coração. Como faro de farol lambendo a berma da estrada ora ouso ora recuo em manobra desastrada. A cada não me desgasto a cada sinal me arranco – usando unhas e dentes catando o sol das sementes roendo grãos e grainhas até à palavra infértil. Assim rumo a sim devolvo a terra a quem me trabalha.
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TERMINAL E PARTIDA essas ofertas tão leves tão concretas que não passam a fronteira do sonho nem mesmo para sentirmos que se desfazem entre os nossos dedos ou derretem mal roçam a pele essas ofertas como figuras pousadas nas encostas infinitamente ascendentes infinitamente ascendentes essas ofertas que se recortam tão nítidas e intocáveis éramos nós inteiros e já oferecidos inteiros e já indefesos inteiros e transbordantes de instantes
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O CALDEIRÃO DA GARGANTA a cada instante se espera que algo role e nos caia caia do céu e caia que algo se eleve da terra e assim nos faça pairar temos os braços abertos e esse jeito de apanhar coisas que escorrem fluência e divina diferença ai amor de quanto vale voarmos secretamente até aos campos em flor desfolhando a confidência do amor após o amor certo de sua imprudência...
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Le poète Mallarmé a froid au dos sur la photo le poète Mallarmé a froid aux pieds dans ses poèmes et dans ses stratagèmes moi si j’ai froid pourtant j’ai chaud car je pense trop souvent à ça c’est-à-dire à ce que je ne pense pas là où je ne pense pas
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Mas em nada me receies se sentires que a sombra de uma m達o empurra e trava ou sol em sol se desvia de sua rota passada o travo a melancolia. Pois que amador se alimenta do que amor n達o diz ainda lava escorregando sobre lava ladeira de frase infinda.
400
Falemos apenas do que pode sempre ser compreendido e nunca descrito. À sombra dos ramos de pulsos cortados. À luz das ideias que não fazem sombra.
401
DU BOUT DES LÈVRES? 1 e se eu ensandecer dobrando a esquina coloca sobre o cepo do talhante aquilo que me foi cabeça dura mulher me não farei falando ilha a bordo não te achando o que procura – pelo nome do leme o mar responde como oitava maravilha sejamos de desejo e de lisura onde a flauta rasga a boca que a palavra não sutura
2 não vivo na paz dos prazos não vivo na paz dos vivos nem na casinha dos casos nem na caixinha dos pesos expiro fora de obra isso é sem cura
402
THE HAPPY FIOS 1 Eis a surpresa a que se prende como à tábua ora rasa ora mão de salvação, a nossa língua amestrada e a ficção para que tende toda a palavra fechada mentindo por ser clemente onde quis ser misturada 2 As árvores não têm costas 3 Onde apenas Quando existe e a tua beleza em mim me deixa desnorteada 4 Vamos então escolher entre o quarto de brinquedos e o palácio de espelhos 5 Mas não me façam rir que eu escangalho-me Mas não me façam chorar que eu reconstruo 403
6 A coisa que me disseste entre subidas ao mastro da noite e eu ali esfaqueada A coisa que me disseste puxando lustro à calçada para que logo brilhasse como barriga de peixe A coisa que me disseste: são as pernas que caminham e não a tua cabeça caminha pois mais depressa Coisa tão útil, coisa fútil, nada de nada na manga Essa coisa sangra e sangra como conversa
404
Maio
BARULHO LÍQUIDO 1 Diagonal da janela da página do peito do rosto do sexo sempre oposto a si 2 Na nossa pequena eternidade a borboleta persegue o caçador 3 Estarei eu à beira de desaparecer no desaparecimento ou na aparição? 4 Dizer decidir dissidir – a beleza estás a ver não me dá descanso – por ela me arrasto até onde dizer dissipar até me deixar não deixar rasto 5 Eu como com os olhos da boca o miolo, a côdea, as migalhas E todo o pão da loucura está à minha mesa 406
OS PÉS NUS 1 sobre a asa reduzida a cinza sobre a cinza reduzida ao sopro e à dispersão do fogo falar ainda daquilo que se esquece de morrer 2 cicerone e visitante viram a luz do avesso 3 desordenando as palavras logo surgem outros mapas não para crermos que existem poucas terras novos mares mas para que justamente neles não acreditemos 4 numa penumbra de patas posso mutilar o voo ou talvez restituir o voo aos cofres do céu e a palavra em agonia ao céu sem esconderijo 5 se foi preciso prender é porque restava corda vocal
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1 Sim, de certo modo em modo incerto é a esse absoluto obsoleto que me refiro e se por vezes me retiro no relativo corpo em aberto é porque por ti suspiro reparando onde estás e no que trazes ó meu mundo sobre pernas entre braços terra a terra e céu a céu me fazes. 2 À sombra do que não era ou à luz do que será?
408
CADÊNCIA talvez pudesse deitar-me numa estrada como nessas noites de olhar estrelas e desejar ser torrente fora da cama sempre por dentro e lá fora – ou não fora isso o pensamento, do mais claro ao mais cinzento passando pelo mais negro... talvez saiba ainda aguardar que caia a estrela mesmo tendo aprendido que as estrelas não caem – aquilo que se vê é uma espécie de lixo do cosmos algo tombando até ser belo custe o que custar porque o esperamos com toda a força do olhar as estrelas, essas que o não são, não caem para ninguém em particular mas caem em direcção a cada um entendes?
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MOVIMENTO PERPÉTUO 1 Se homem abandonaste tua sombra de mulher para não te abandonares Se em estado de excepção de ti mesmo te exceptuas para não fugires à regra Amor, vem A noite chega 2 Sobem ou descem as recordações e tudo o que tem lugar no lugar que elas ocupam? 3 Conversa de anfíbio esquartejado perante o reboliço quase silencioso de um antigo anfiteatro O corpo esta fora de água mas não se pode dizer que os pés estejam assentes neste pedaço de terra – nem mesmo que o corpo assente na alma que o não procura 410
4 Num quintal dos arrabaldes uma mulher sem idade fixa alimenta os animais alguns seus, outros selvagens Aqui a vida corre sem margens nem leito nem zaragata de ĂĄgua doida contra pedra E contudo corre sim no tempo lento e secreto de juntar sinal de fome com vontade de comer Pois aquilo que separa haver vida de ser morte ĂŠ talvez apenas isso: ingestĂŁo e digestĂŁo de alimento imprevisto
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A dor não é impossível de dizer ou calar dizendo mas dizer sem dor o impossível é a cada passo mais falível e talvez menos audível porque este possível grita ao ouvido que pergunta: quem vem ao longe quem vem? e esse possível este estava bem perto de o ser e de o sermos não é?
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Cega cega a sobrancelha sobrancelha a sonhadora sobre a doce guilhotina da pestana o dia fez-nos a cama onde não nos deitaremos mas este mercado negro esta hora de portão esta hora de alçapão de abraço na escuridão e de olho afastando as pernas leva sapatos vermelhos e escorrega como sangue ao longo desses passeios onde me levas perdida por menos se perde a vida mas esta hora é comprida e sem tocar tua boca ferida sobre ferida eu te devolvo e me entrego no mais antigo dos beijos para que beijes comigo o lugar onde te vejo
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Alguma coisa me escapa isso a que eu mesma não escapo e no entanto me oculta como se fosse uma praga um estrago um rasto de luta olho de fora e de dentro sabendo de antemão que o que eu vejo e desejo colhe a flor antes do fruto fugindo ao meu pensamento e ao meu campo de visão alguma coisa me escapa e atrás dela me leva – sei que me amansa e amadura me entorna em mar de ternura me naufraga e socorre e cura me larga, me ata e desata me observa
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O AR EM 1 a vozearia longínqua fabrica tristeza próxima: eunucos abraçados a tu e eu odaliscas abraçadas a almofadas rumor de quem se desnuda entre o banho perfumado e a noite nauseabunda a alma cai aos fiapos e os farrapos de carne retalhados à medida do corpo enquanto ferida estão desde sempre intactos e no entanto a luz abre a navalha para afiar o lume 2 tu disseste eliminar eu ouvi iluminar - tudo ouvi tudo me ouviu só que de outra maneira
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1 falando já a cinzento num dialecto em tudo semelhante à língua mãe e contudo desviante como convém à língua filha que escorre entre seus dedos quando ela frase mater interminável cerra os punhos da sintaxe 2 ele viu o horror à sua frente chamou-lhe enigma e meteu calhaus no bolso para não pairar acima de uma súbita crença assente sobre nada 3 o meu amor bebeu-me por dentro e depois disse que não tinha sede o meu amor olhou-me por fora como se não me visse e disse que eu não era de beber
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Se mas não apenas se minguasse o espaço entre as estrelas Se mas não apenas se fôssemos como cativos soltos a troco de pequenos crimes Se mas não apenas se a consciência suspeitasse dos toques que a rebate vão soando Nem esta condição da liberdade nem mesmo a liberdade que dizem condicional surgiria enquanto tal aos olhos de quem a espera e nas mãos de quem concede o que não tem Talvez já pareça tarde quando foi cedo e se é sede
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Não basta uma vida inteira para a diferenciação entre o que é primeiro derradeiramente primeiro e o que lhe é parecido aparecido pois a vida em seu recomeçando não tarda a impacientar-se a derrubar entraves. os amantes, por exemplo, como aves olhados de esguelha e alvejados de muita maneira não basta a vida apesar do desgaste sempre inteira há ainda que carregar com os olhos com o fardo dos olhos quando eles pesam tanto quanto pesa o coração dentro de sua gaiola dentro de suas gaiolas
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1 acordei pensando na violência cometida contra o espírito sem poder pela razão sonolenta e veloz determinar se ela se exerce no dever adormecer se no dever despertar porém nessa hora que regressa a toda a pressa a cada instante essa hora de ser demasiado cedo e tarde um outro simulacro de violência nos faz saber por todos meios que os piores receios se confirmam de desencontro em desencontro e de um estranho para um estranho mirando-se no fundo dos olhos com um fosso de luz pastando na barba rala ou no queixo imberbe e o rosto escondido inteiramente escondido dentro da boca 2 sim a boca a de outrora fora de horas como flor banhando 419
no vinho tinto e tĂmido do rrrrosto e um olhar sereno de sol posto de noite incontida de noite incontinente mil vezes mais invisĂvel antes de ser aparente e de cheirar querer cheirar a mosto 3 a ideia ou a vontade ou a impossibilidade de reclinar-se de recostar-se e o artesanato inato de uma certa curva virada para dentro da ĂĄgua tua turva
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Vendes a alma ao demónio mas a qual? e a que deus em deus o corpo? descascas palavras verdes e ao pão limpas a boca. olhas a tua cozinha – a banca, o fogão, a mesa – como um campo de batalha por onde a morte se espalha quase muda quase texto. esperas um sopro uma rajada ou apenas uma entoação. esperas também o que isso te dirá – e o que dirá de ti, talvez...
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Conto meandros e margens pelos dedos de uma mão mas não minha alguma parte da vida se vive fora de mim quando me vivo sozinha e contra mim esbarram imagens de florestas fumegantes e vê-las muito por dentro do verde e quase azulmente desvio o olhar doente sobre o que não estou esperando amor vem e sobre a mente pousa os pés e pesa as pernas durante longas as horas e ante tudo o que passa agarra para que fique agarra para que haja lugar no lugar do tempo
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Pendurada pelas pernas pedaço de carne lunar sem exemplo ouço ainda os que falam da arte de calar o fruto maduro regateado ao feirante com a ponta afiada de um faca e os dedos prontos a escorrer sumo pendurada às nuvens pelo tecto pendurada pelas patas das palavras ouço ainda os que falam da arte de viver e morrer longe mas de quê se não estamos senão perto e sem exemplo de som de sumo dos cimos sim soam ocos como paredes da casa esses que ouço os que se transportam a si e apenas os que assomam entre músicas e destroços os que desenham polígono a polígono a planta da insónia e uma cidade anónima fingindo que já nela se perderam
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LE TÉLÉPHONE DIT ARABE Recordo sonhos pesados, histórias circulares das quais não pude sair com uma perna às costas ou saltando a pé coxinho ou pulando a sebe que separa as imagens dos objectos. Em sonhos me vi aflita com a partilha das dores já não como territórios segregando línguas e segredos, fronteiras, famas e medo, mas como mãos amestradas abrindo e fechando os olhos cedo demasiado cedo. E o sexo ciclamen irregular ou por vezes flor de pompa respondeu já sem rodeios a mim mesma enquanto história e ao corpo enquanto objecto de memória aqui lutando contra a perda de memória. Mas sabes – não sabes? – que há um tempo em que demoras não passando nem passado conversa ao largo da carne encarnando inesgotável nos versos calamitosos e nos sentidos dispersos. 424
MOON WALKING terra de pudor essa a prometida desmedida da traição e na espera da promessa terra estendendo ao seu limite a vontade a que chamam vocação quando as mãos cheiram a massa levedando e as dobras do corpo a pó de certos livros ao pó de muitos caminhos pois os dedos que se estendem e o corpo que se dobra buscam o escuro em plena claridade e quem sabe apenas no escuro poderiam encontrar o que procuram
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OS SINOS DE LJUBLJANA quase brilha o sol mas caem velhos anjos a pique sobre a calçada e todos os sinos tocam tecendo um tecto de som até que haja quase céu e todos os sinos dobram porque os anjos lutadores rolam fora do tapete como chamar senão amor àquilo que convida a passear desenhando sombras onde os pés apagam rastos e pousando os olhos no lugar onde o pensamento a si mesmo escapa?
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UM TUFO DE MALMEQUERES E DE MIOSÓTIS A sonhadora de passados encontra dentro de si o antepassado de um sonho e a sua irreal descendência. Ora no curto lanço de escadas no breve lance de dados que separa o despertar do estar desperto ela consegue perder-se uma vez mais uma vez a mais. Enquanto a flor dá conta do recado a sonhadora folheia livros e vai-se desfolhando à custa de uma nudez indisfarçável. As mãos não lhe chegam. Os pés não a levam. Porém o contrário não é verdadeiro.
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GALA Vejo que olhas – assim sei de mim. Vejo que olhas o texto como se fora floresta invertida feita de esquinas onde a consoante se dobra e a vogal não soa nem sobra. Vejo que olhas e sabes o poder das rosas impressas, omissas de caule ébrias de outras pétalas, no incêndio branco e preguiçoso que consome o papel. Vejo que olhas me olhas mesmo se não me olhas mas talvez ignores a obra única e última da ternura – amar a quem vai morrer e a infinitude de o saber.
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O amor deixou ovos em todas as bocas porém raros beijos adejaram raros suspiros voaram sobre lições de cratera poucos bocejos souberam às mais antigas manhãs poucas palavras estranhas deslizaram devagar até ao céu das entranhas o amor deixou ninhos em todas as árvores e quando a floresta já não foi apenas o furor secreto de mil caminhos mas também um beco de corpo mas também a fervura da alma cantando em seu lagar eu pude cair nos teus braços raízes e ramos logo ali se entrançaram em cama de altas chamas onde trocámos sorrisos então eu pude dormir e ouvir todos os mundos despertando seus ruídos
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Desse teu lado da cama deste meu lado da carne na cama, mesmo a teu lado na carne, quase a meu lado quatro sílabas de abismo quatro rimas impensadas quatro caudais que se lançam na noite passada em claro quem me fala assim no escuro sangrando frases tão curtas como a trama dessas redes que a mão mil vezes remenda? amor, mergulha o ouvido no que digo no que dizes e que a voz nunca se prenda entre a nascente e a foz aos motivos de uma renda feita de elos e nós
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NÃO TENHO FADA MADRINHA 1 Lançadas do céu, que outrora parecia ao nosso alcance, as auroras foram explodindo como granadas. Do dia só recolhemos pedaços e estilhaços e se fitamos o chão, altivos e cabisbaixos, é porque cada um dos nossos passos se vai concentrando em vão na vã colheita. 2 Todos os modos menores que do amor fazem uso quando se dizem horrores e porém nada foi dito, todos os grandes rodeios e os pequenos desvios que partem como gavinhas do escuro até ao seu fruto, tudo isso que transporta o ilimite do espelho levado até ao limite, água subindo e sorrindo já acima do joelho, dilúvio em lugar de mundo, tudo isso que nos olha e acredita no que vê no que não vê também crê. 431
LETTERA AMOROSA montanha se isto que eu não sou suspira e sua se isto que não és caminha para onde minha a vida não te trava mas se caminhas na terra bendita dita firme onde tudo contudo mexe e nos comove se caminhas à cadência da fala e da flor cortada até ficares eternamente sem resposta montanha se recuas virando a cara à profecia e sorrindo como se mostrasses o sol de cada dia montanha se estremeces abalada do sopé até ao cume e te deitas ao comprido numa estrada 432
imensa barricada de ternura frente ao jardim que desponta frente ao jardim que o anjo sonolento não guarda se vacilas e retomas tua marcha quatro estações menos uma quarenta luas num só ventre e o sol dentro de uma caixa se vacilas montanha e te prolongas se és rastilho infinito se és incêndio dessa roupa leve e larga que ninguém vestiu ou despiria então tremendo no prato balança e já de amor tão pesada eu de bom grado te faria me faria companhia
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O SOM o coração bate descompassadamente todos os tempos da espera como se no seu buraco escuro rubro gritasse por mais e mais primavera sob o manto escandaloso do outono sob as velas enfunadas do verão com muito inverno no osso as uvas cingindo a testa as neves eternas derretendo no regaço e um colar de violetas cravado na fadiga do pescoço sei de um saber que caminha e tropeça o quanto a visão abrupta dos teus pés me fará chorar e correr mundo entre o barulho da loiça matutino e o ruído da rua sempre em vésperas estarei porém deitada demente sem causa e em casa alheia evitar-me-ás então ou talvez não pois eu serei apenas um mau pensamento que se enxota ou se derrota 434
Seremos assim o creias e queiras amantes e companheiros desvendando ilimitando novos retalhos de pele em pousio ultramarinho ao relento infraterrestre saltaremos assim o queiras e creias de ideias em movimento de vagões descarrilados de cavalos galopando em carrosséis de outro tempo sonharemos assim o vejas e sejas luz oculta luz abrupta declinando lado a lado o seu radical de sombra dormiremos a meias onde semeia quem não cobra nem encobre já o tempo se dissolve e a bordo de nós se inflama a água ardente da alma que busca em cada palavra como se vive sem borda
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Vou pelo cheiro do mijo que farejo e me persegue tão antigo e sigiloso no lado avesso da rua nem o sol lá chega e bate nem sombra cresce e arrefece entre mim e o que me guia até longe da agonia vou pelo faro de ausência suspeitando a poesia de afogar a sua cria nos rios turvos de tinta e sinto o mel dos miados escorregar entre os miolos colado aos meus pensamentos e ao fundo dos meus ouvidos algo que nasce se queixa algo que nasce endurece flutuando para sempre como rumor de uma prece
436
E sou neste silêncio omnipresenciada pequena ferrugem de agulha em palheiro falsa pista de algum corpo agora enrolado em planisfério entregue ao sono rebelde recordo de mais as prosas os cereais ondulando e as letras do abandono nos campos uivando ao vento onde a podridão demora e sigo se não consigo por fora da estrada fora apalavrada que fui aos gritos em feira franca marcada a ferros sabendo disfarçar-me ou fumegar tudo o que digo aparece breve voo de fagulhas entre a fossa e a muralha buscando frios de forja motivos de apagamento e hora de estar acesa pois se estragada a surpresa a seu tempo alguém dirá que foi uma má partida
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A menina prodígio não é pessoa de sair da casca porém um dia vem em que a menina se livra da concha onde já não cabe e diz para consigo com ar de quem está mais feliz do que lhe compete ou pelo menos mais bem despida do que lhe permitem: quem vê caras não vê quem vê corações não vê quem vê até onde a vista não alcança não se vê a menina prodígio usa colares de caroços e leva frutos escondidos de si nos bolsos cada mundo lhe serve de outro mundo: respira fundo e conta como se estivesse a aprender a que ponto os números lhe parecem belos e inúteis a menina prodígio não é pessoa de sair de casa a menina prodígio não é pessoa de ficar em casa por isso só pode confiar nos seus defeitos tão grandes que lhe fazem as vezes de passeio tão bem afiados que cortam ao meio a ilusão da alma 438
EVA ESFREGANDO A SOLEIRA era uma palavra em fuga no desalinho da frase apenas rota de ruga e sol colando ao caminho mas era tal que nem tanto era o pouco que por menos logo ali se desculpava de não ser culpa formada era uma pá enterrada junto a uma cova recente e a terra amontoada para apressar o poente era ali que ainda ausente o olhar se recolhia em líquida litania a reboque de uma imagem era o peso do lugar que a consciência reduzia à sua tara perdida a pretexto de viagem pobre jeito de embalar embalagens de embalagem e a carga de cada instante na estridência da partida era o que for em não sendo amante de perdurar modulando o seu crescendo como uma curva de estrada 439
incapaz de se rasgar à revelia da voz o texto busca um sujeito onde não pode morar porém se amor assomar ali se encontra janela aberta de par em par sobre ruído e ruína dirás da casa improviso facada na escuridão fachada atrás de tapume e grito em desconstrução dirás que no paraíso foi instalada uma porta
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SEXO e essa outra palavra que nada de si promete porém jamais se repete no pântano dos sinais ao qual se viu arrancada pois se me engano de tom fugindo a voz do queixume para charcos de alegria essa que ainda se ouvia engole todo o seu lume como flor incomparável pela força do costume a outra flor comparada essa se deixa murchar entre páginas de livro flor, não sabes caminhar? – grita quem escreve a gritar contra o governo do vivo
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Junho
O IMPASSÍVEL o pequeno fumo dos dedos a pequena brasa da boca a cama de trevo imensa o sexo dentro da toca a forja de antigos beijos a língua em ti se demora a espada a pena apenas aparo em escrínio de carne só as ficções de inquietude conseguem por paradoxo sossegar quem satisfazem que fazer dessa outra coisa possível logo irreal provada logo improvável?
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Desenha agora a espiral de suores frios e quentes que faz o corpo blindado acenar da sua torre e estampar o próprio mapa do lado de cá do espelho a criança molha os pés na primeira ocasião de chuva ou de água turva a criança é renitente a que lhe domem a crina por saber de um certo pente que se enterra nos cabelos até à curta raiz dos pensamentos mais fundos desenha agora a espiral que faz o corpo dos astros revelar em sua queda o caminho entre dois pontos distantes até então vibrantes ainda não desenha no ar da noite toda a ausência cantante de sermos estado de sítio
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CORPO DE DEUS por momentos o pensamento encanta-se consigo mesmo e pairando acima do repouso impossível aceita a penúria como sorriso em esboço e o fracasso como franca gargalhada o pensamento não serve a nenhuma figura porém joga com a poeira dourada dos altares com a poeira vermelha da estrada se os olhos velados de lágrimas descobrem sangue sobre sangue nos prazeres do pensamento é porque o dia declina e o poente faz corar intensamente quem se imagina só quem se imagina quem só se imagina
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HOW despindo o velho refrão de uma canção de outra terra fazendo dela lençol fazendo dela colchão comendo e bebendo à sombra de uma árvore de outra terra fazendo dela a ementa fazendo dela as entranhas partindo e regressando todas as vezes que olho para onde estás e não estás para onde não me vês era uma vez o que fora visto por fora e de dentro se tempo mais-que-perfeito foi também mais que perdido nem verbo sou, nem sujeito, menos ainda adjectivo, pela língua não me esquivo apenas te sou defeito e onde vives eu vivo ignorando o paradeiro da frase em busca de texto remando contra o arquivo
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Mais uma vez e só mais uma vez e mais sentir a tua mão pousar no ombro como sol nascente na montanha ser de novo tão pequena mas tamanha mais uma vez só e mais uma vez mais ver o sorriso suspenso no sorriso os lábios que na sombra não ordenam e calam por dever e ver de amor onde estão os instantes que insistem em viver sem insistirem e se metem a caminho contra o tempo e contra a temperança? onde estão se aqui estou por vocação provocação
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A DELICADEZA esse sol que brilha mais baixo dentro das coisas ou apenas as roça e rega de luz esse sol tilinta agora moeda grande rolando pois foi generosa a esmola mas ao invés dos mendigos não temos lugar cativo frente ao templo nem caminho igual no tempo de cativeiro nem sequer a mão estendida para apanhar o fruto imprudente nem sequer a mão temente sob a ameaça velada do olhar que passa decepando o que passa isto é o que está por vir levamos os andrajos, o prato, o chapéu e até um cão já cego de tanto ver levamos e vamos de mão dada como se cada ponto de partida fosse menos um ponto de vista e mais uma tangência uma nota arrancada ao instrumento ausente
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AS ORDENS MENDICANTES agora agucem facas e sejam as minhas costas velha pedra de amolar pois na sílaba da estrela por entrelinhas de noite sou essa estranha surdina que despiu a criatura para não se ouvir chorar agora agucem facas orelhas atrás da porta íris atrás de ferrolho pois entre mim e eu mesma passa a persona non grata com seus corpos de criança incompletos incorrectos dançando dentro da pança agucem agora facas engulam gumes em seco engulam murros e punhos pois eu choco velhos ovos separando claras trevas das gemas de ouro escuro e se amante dissonante rasgo as costuras do sono agora agucem facas cravem no peito vazio caprichos de longa pausa e frases sem pontuação 450
agora agucem facas espetem suspiros e flores no canteiro dos cabelos onde jรก murcham madeixas agora agucem facas e que a fome de apetite vos faรงa grande proveito agora e nunca ou agora ternura de ser colher e pau para toda ela
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Onde vou estando sem estar e onde está o que me dizem tão belo e demasiado para já ser verdadeiro? suspensa ao fio grosseiro tecido por outra aranha numa teia que me é estranha ficarei presa e alheia mas fecho os olhos sentindo que os olhos nunca se calam e que uma ideia não muda quando se muda de ideias pó de ampulheta rachada ânfora fria e vazia pobre caixa de costura da velha pouco prendada tens mais medo que vergonha ou mais vergonha que medo? que importa...! darás tudo e tudo e nada como se foras ouvida como se foras segredo e apenas te restasse confessar o que nem vives nem pensas
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Se me dissesses os jardins ácidos e doces e os jardins olhando vítreos como janelas em nós embaciadas se me dissesses o orgulho ferido e a sua febre infinda se me dissesses o sub o sublime e ainda assim o dissimulasses fosses fluência fora de água dilúvio de não ser dono nem amo se me dissesses o prado crispado e varrido de calafrios ao sul do norte onde estivemos eu apertaria contra o peito a torrente de palavras foz e fonte monte e mar e apenas um longo abraço para desaguar
453
ACÇÃO DE GRAÇAS amantes face a face e face a faca face à fala face à fama de algum mundo em expansão fora de si como um sim amantes mais do que dantes descobrindo e quase rindo se vale e ferve se serve e a quem a que forma de ninguém pois é de súbito claro que o imenso cosmos precisa de um ser raro imensamente raro para ser pensado e a pergunta o percalço de ser parece colada à realidade íntima do nada imersa por assim dizer onde não se imaginava
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Alguém nos chega e vem feliz montado no cavalo da traição que não é cavalgadura traiçoeira alguém nos chega e vem perto de ser longe esfarrapado de música desfigurado e tão igual a sempre que podemos dar-lhe um nome desconheço e reconheço escavando o que não entendo e como terra se estéril me vou deixando cavar até já não haver fundo nem modo de regressar à tona alguém diz de uma cantiga que a ouvir ninguém obriga menos ainda a cantar por muito que ela persiga
455
CÓSMICO-ESCATOLOGIA em surdina intensa e uníssona as noites recitam as regras da aparição mas o que aparece ou não trará debaixo da asa a leveza do perdão dado e recebido então sob que luz contra que luz acontece o encontro se marcado desde há muito?
456
Qual o caminho mais longo entre a dor que já se alegra e a tímida alegria cavando todas as rugas? Qual o caminho sem fim entre o prazer que se esquece de chegar à consciência e a tristeza que se obriga a guardá-lo na memória como coisa que nasceu antiga? Se tresando, amor, a fera, repara bem que assim cheiro em momentos de ser jaula... Considera, se puderes que os olhos vêem melhor quando de si se desviam e rolam por ribanceiras agarrando em pleno voo a matéria do desastre. E lembra onde esqueceres a virtude bela e rara de não pesar os prazeres em balança de um só prato. Chamei-lhe tara perdida e ao sentimento da perda dei nomes de toda a sorte. A intuição intimida: do cheiro já não me livro, meu amor... Mas o faro nunca foi capaz de sexto sentido.
457
ANTI-PAISAGEM era um dia de céu desabitado aviões cruzando o invisível espadas de fumo fendendo o azul pássaro preparando o seu voo antinómico e picado eram riças de céu e cabelos do anjo maiúsculo beijando a terra e pesando como só anjo como anjo só era um dia repentino de súbditos escrevendo o que é ditado pela consciência extrema e externa e o ovo chocando nas axilas e o olho descabido em seu quadrado e o sangue sacudido levado em baldes por mulheres entre si desconhecidas e a imagem formada e deformada à custa da cor apenas era um dia de céu soluçante solavancos na vez dos beijos azedume de leite em vez de lume e todas as frases decompostas na fossa exposta do estrume
458
Se no fim nos restar o desconforto das coisas que se dão se deram a ler a quem amamos como a um desconhecido se nos restar alguma coisa do seu olhar cabisbaixo e do nosso se até nós rastejarem as palavras as pausas e tudo o que não se ousou formando frases fazendo bicha desordeira rebelde ou quase ou quase alegre poderemos tocar com o nosso corpo extremo o desafio de horizontes que ainda não que não mais se desenhavam na linha do olhar e com o corpo abismado aos quatro ventos da quietude poderemos pairar parar e seremos tão-só pausas e palavras sem lugar preciso no que nos foi texto lido e dado a ler dado e roubado inseparável
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Numa ida para a fonte quebra o cântaro mas quem tem quem tem unhas quem tem esse tempo de ninguém de colar o caco ao caco? e no entanto é mais explosivo o objecto reconstituído mais capaz de conter um cérebro ou um génio falante transbordante e no entanto é menos fútil o prazer de devolver ao objecto a sua forma inútil capaz de conter outro devir novos modos de sentir ah pensamento dançante puderas deixar marcas no soalho longos sulcos de arrastar ideias em teu cativeiro e nessa liberdade cujo preço pagas porque és tu o preço altíssimo escandaloso de cada recomeço
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A MULHER MACACA 1 Num sonho de gaiola dourada e rosa à luz inesgotável de uma aurora uma mulher solitária simiesca devora a sua mão fechada como se fora fruta fresca dura e madura Ajoelhada ela come a mulher macaca e cora e cala e chora e reza por entre dentes à deusa a quem bastou olhar de esguelha e a quebrou pela espinha franzindo apenas ao de leve a sua bem estudada sobrancelha 2 Varada pelos meus gritos os gritos já gritados agora mais antigos do que eu, vou descosendo lentamente a sutura da voz para pôr a carne viva à vista 3 Oferecer-te como se isso fosse impossível impossivelmente inadiável um ramo de sombras essas flores rasas e escuras que desabrocham tremendo no rosto ausente das ruas 461
Se nos movemos algo sabemos da imobilidade e muito escondemos nesse passo quase apressado que é o nosso caminhando espezinhamos o que havia de ser carinho e caminho levamos no fundo do ouvido o som do tecido rasgado a eito pela mão destra do velho balconista será escorreito o rasgão feito na peça ainda e sempre com a pressa da linha recta do rolo fugazmente entrevisto por um olhar que apenas poderia despir e vestir levamos uma curta amostra onde o motivo se repete e a cor já nem berra nem desbota se nos movemos tudo desnudamos espalhando caras coroas onde se supunham corpos pisamos o veludo das olheiras porventura não nos custa gracejar sobre os olhos que a terra há-de comer
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Dizia eu, comovente como um muro e suas pedras sempre prontas a saltar comovente, de quem se diria isso estando os corpos que se erguem sempre prestes a ruir estando as verdades no ponto de fervura em sua cozinha mítica estando a paisagem em sua novidade animal marcada a fogo? porém de nada servem as pontes entre visível e visível a não ser talvez quando os olhares se fixam o horizonte lhes foge e o doce pranto do regresso encobre os motivos da partida
463
Porque o barco se engana de cais e o cais se abisma num esquecimento de águas paradas porque os fantasmas mais velhos mais vermelhos se pintam com outras cores de mim porque contrária me contrario e já não me sei sucessiva nem me soube simultânea falo talvez mais devagar como um largo sorriso que se apaga em sua caverna de língua como um sorriso que ecoa sinais de amor e feridas os primeiros só confusos as segundas confundidas
464
No lugar onde as palavras certas se desacreditam e me fitam com seus olhos tão perdidos olhos de dar e saciar fome olhos de etapa de pegada no lugar entre lugares onde as palavras se emprestam e devolvem ainda por usar tão precisas tão abertas caravana mas também cães a ladrar palavras dinamite rasgando caminho no lugar onde as estrelas barafustam e babam noites arrancando ao calendário os dias que eram dia-a-dia os dias que eram após apenas os dias que eram injúrias todos eles sem intenção nem inferno no lugar de apetite e aparato quieto e ofertado aos deuses sob a forma de um apelo capaz de travar o grito e a sua imitação eloquente eu poderia mostrar uma parte sem que a suspeita do artifício recaísse sobre ela e sobre mim 465
Arrasto para uma ponta da mesa onde trabalho tudo o que te estorva e me destoa tudo o que perturba a lisura do tampo tudo o que rouba espaço ao segundo talher ao beber e ao comer e ao desejo de companhia bem antes que a solidão apanhada em seus delitos se torne escrita
466
Nesta cidade me amarias em casas da cor da carne em carne da cor das casas e por me sobrar toda a tinta da noite e por me ter perdido na leitura imaginåria de cartas tuas e por ter recebido mil recados de mãos estranhas tu quebrarias o velho lacre das portas de portas atrås de portas tu quebrarias o novo gelo onde me queimo tu quebrarias o feitiço do presente
467
Abracei todo o barro que me escapa e senti os pés pesados as mãos inúteis Só no meu peito cantava a frescura de uma água a secura de uma bilha e um desejo de forma a sufocar a matéria como se fora em má hora sua cria indesejada
468
DO PENSAMENTO E DA VONTADE Essa voz que reduz a pó o cristal suspenso essa luz que transforma todo o pó em transparência em resistência essa voz que seduz a luz da indolência e a faz dançar caminhos num campo aberto ou num deserto à hora do fecho essa voz que luta dentro da voz até que a voz da voz se quebre se febre se nós em nós essa voz de luz de voz sem outro relevo que não o do tempo a correr contra si mesmo polifonia dúctil de pequenas dunas um aperto no desenho da cintura e uma assimetria de pesos no relento da ampulheta essa luz onde a vista se perde de vista sem que a vastidão seja mais uma vez cosmética e horizontal
469
Juntam-se coisas pessoas e o tempo toma de assalto o muito que se acrescenta a cada ser que resiste ao sentir-se acrescentado A coisa não diz com coisa por isso me roubo ao texto num desleixo sem nudez sujeitando o que me fez às regras do abandono Se fico aquém do que penso e agora este meu jamais se cinge à vil demasia de viver em mim fechada não é que tenha nascido onde descolo retinas onde descrevo ravinas e morro por mim abaixo
470
MANHÃ SEM MANHA os bichos chamam a luz soltando escuros trinados harpejando falsas notas e verdadeiros achados ossos de som descarnados casco da noite aos pedaços é imenso o corpo estranho de que se abeira o desejo fechado no seu tamanho como cauda de outro mundo naco de sol moribundo à cabeça de si mesmo porque outrora foi cortejo os bichos emanam luz procurando a nota justa o gemido que não custa o riso que não seduz
471
Lavar-me sim na água libelinha dos teus olhos no rio inaparente em seu desuso na deusa que lá mora impertinente agitando a ilusão de superfície e ver-te já partir por onde voltas com espadas e profecias penduradas no segredo da cintura e nos versos que se esgotam no cilício da cesura
472
Neste frio de último sono antes do despertar as palavras queimam pés queimam pestanas por isso olham e correm mais velozes do que nós buscando avessos de rua em rua onde se fala a língua de seu dono de seu cão E as palavras de amor tão raras embora todas elas todas elas raras todavia estão entre os teus dedos e são a tua mão agindo na sombra
473
Julho
Entre as mãos de Eros essas que saram e consolam antes de ousarem amar, receberei os recados que o destino não entrega por serem alegres e contrários ao que já foi visto vestido. Ouvirei a fénix faladora que diz a cor do fogo sacudindo as cinzas.
476
Onde a noite cabe dentro de uma luva onde a noite se desmancha em velha meia onde a noite rente às costas se faz curva onde a noite baixa as calças de uma ideia onde a noite baga a baga, gota a gota onde a noite será roupa esfaqueada onde a noite em seus farrapos de floresta onde a noite peregrina e eu cansada o que a mata tem de verde e negro e azul e de cheiro a grande mesa levantada é o texto onde serei aparecida e onde me farás desencontrada
477
Trazia filhos de outras eras agarrados aos cabelos, às ourelas, rompendo em lágrimas a cada passo em falso trazia filhos de filhos crescendo à proporção da claridade porque a fábula do mundo a perseguia por entre tropeções e apalpadelas não era bela nem boa nem bastava na sua demasia para crer no que o escuro lhe mostrava se dormia no ardil da sombra antiga era sua a sinistra silhueta sombra imensa que o corpo lhe fazia e à sombra de si mesma ela passava como espólio de um combate sem desfecho cheirava ao que não se diz e amava esse perfume a ponto de ser apenas um rasto de ternura um rosto ingrato
478
Regressavas leve como a ave que enfia a farda de combate em seus poucos paradeiros mas sĂł entravas em casa para mudar de roupa para mudar de ideias e contando os anos pelas minhas luas cheias nas vĂŠrtebras doridas das ruelas, ficavas enlevado, talvez meigo, cativo do nĂşmero assim uma vez mais havia tudo a esperar
479
EM VÉSPERA DE ASSALTO À FORTALEZA nem tudo no caminho é caminhante se fuga para frente lhe fez frente e espelho por detrás do horizonte mostrou os pés de barro do presente além de cada dom a sua perda a frase de um passado mais urgente – que falta já senti de ser rapaz tão-só capaz de abuso alegremente de amor não comentavas a conduta apenas por defeito a face ausente e a boca que ora louva ora insulta pairava como oculta como força é tarde – o sangue pinta feitios corridas e labirintos sobre o ventre do altar e sobre o dorso da corça
480
As crianças de cabelo branco fogem do jardim para não serem expulsas pela lei do fruto que se excede mas onde se refugiam as crianças os cabelos os brancos inesperados que separam cada fio? na casa que era a sua só espectros esperam e espreitam como flores desmesuradas incapazes de murchar as crianças a cavalo em sua crina são embalo e são cantiga procuram poiso e não poisam falam torto e a direito se nos tocam nos transformam e do fundo do chapéu sacam facas lenços pombas é por não terem cabeça debaixo dos seus cabelos ainda não começaram mas também não têm pressa
481
NICOTINA tenho nas palmas das mãos um bulício de cidade uma terna insaciedade que me relembra a presença de todos os meus irmãos em noite de não deixar o sono vir e vencer e tenho dentro do peito o punho quase cerrado do poente mais veloz que se estende ao nosso lado para não ficarmos sós fujo de ler entrelinhas nas mãos que ambas me escapam por serem ainda minhas tapam olhos, tapam sexos, onde a cegueira me dói e onde a luz me fulmina são mãos não rosas senhor
482
Meu sol a sol meu sol de pouca fala e pouca dura meu sol de ouvido mais agudo e musical meu sol levante iluminando a cama estreita meu sol poente entre janelas entre celas meu sol bordando as nuvens da tormenta meu sol de quebrar mastros romper velas meu sol na cama e quem se deita já não dorme meu sol na mesa onde se come com os olhos meu sol que seca a roupa nova em velho corpo meu sol que brilha em cada um como se todos meu sol negro debicado pelos corvos meu sol de mão beijada meu sol beijando os pés meu sol de vez em quando meu sol de vez
483
Nasci de uma ciência impaciente marcada a ferros nas fontes entre pernas que tremiam como montes e luas sem sorriso aparente dizem-me os olhos surpresa mas quem se recompõe de vir à luz? se o desejo a ser olhos me reduz a toda a escuridão me sinto presa do muito que não pude receber guardei em minhas mãos longa memória roubando agulha e fio a outra história cosendo o que mandaram descoser por isso, meu amor, sou de esperanças de espera e de cabeça entalada no sexo... palavra imperfeita e dilatada da carne só me toca a parte fraca e a cifra boca a boca de uma praga que farei com os retalhos onde vejo passar eternidade e passar fome?
484
ROTEIRO DA PRESENÇA O antes e o após presença a presença como ouvido absoluto a presença como estado para sempre bruto a presença injuriando a ausência a presença das ausências mais terra a terra a presença como poética do insulto a presença também dos cabeças no ar e das avestruzes o presenciar do que só por engano está presente o presente como presente envenenado o presente lado a lado com o presente passando ao largo a presença ao serviço de quem chega a más horas ou tarde ou cedo a presença por vezes sucursal do medo a presença e não lhe peça além disso o presente ora a quente ora a frio o sangue a parcimónia do presente quando o sangue às golfadas mancha lençóis e almofadas e salpica quem está por perto o presente enquanto metáfora para atravessar o deserto o presente que se esconde atrás das costas o presente de mãos nuas porque só as mãos estão nuas a presença que me dá volta à cabeça a presença que dá voltas à cabeça a presença onde o presente não acaba o presente como dança única e macabra o presente sua doença sua indolência 485
o presente insolente que se come com as mãos que não pede licença a presença como antes do depois e todas as carroças antes dos bois e os bois desatrelados das carroças e o canto das ribanceiras e a terra lavrada por outras ideias
486
La phrase s’écrase sur la feuille ombre portée de papillon immense ou chiure de mouche minuscule elle se cherche des virgules des extases la phrase et afin qu’elle se poursuive dans son ailleurs autre que le désert autre que la pensée dont on se sert pour dénoncer des scrupules il faut bien qu’elle ait la peau dure la phrase car feuilles et phrases n’en finissent pas de s’aplatir
487
Sou dada a piratarias de dentro e para dentro a ternuras de antemão e à alegria que se precede a si mesma como uma grande dama de companhia se regresso a casa – e que bom seria despir o manto e o canto no sítio inexacto onde não sou esperada – é para ficar mais só do que a solidão permite, é para pensar uma vez mais que não é importante o que se recorda mas quem recorda e no meio de que multidão
488
A CARGA EXPLOSIVA aqui se aprofunda a noite enquanto o leitor adensa o texto onde não se pensa eternidade em voz alta por menos já houve quem ouvisse expansão de mundo embora nada e ninguém apenas detonação o vazio estende a mão abre orelhas e goelas rosa laranja escarlate toda a cor se precipita se no peito o sol não bate nem nas costas é poente eu me confesso ao que mata e caio estrondosamente dirá a língua prudente que são castelos de cartas silêncios desmoronados em tom de pobre conversa que são gralhas no rascunho desejos de incorrecção falivelmente gritantes como erros da criação
489
Sem garras sem guitarras sem dedos arrancando os sons que se confessam no lugar das palavras sem olhos rasgando ruas no lombo da paisagem como se fosse possível apagá-la assim o texto já mora onde é noite a toda a hora estás pois a lê-lo e a escrevê-lo no escuro lançando sobre ele a tua escassa luz esticando e afinando cordas para que soe para que sobeje tacteando com as unhas para que magoe e sim por fim apagando o rasto de teres sido seu sítio seu sujeito se és corpo ainda a ele estranhamente o deves embora apenas tu acredites estar presente quando ele te descobre te desmente
490
O LATEJAR DO SANGUE NAS FONTES como um corpo mudando de estação, há um vagar peculiar entre isso que te olha e o instante em que és olhado há um atraso uma quase suspensão entre isso que respira e todo o ar ainda não respirado há um bafo uma timidez de afago um prazer do invisível que nos faz ficar à porta sim, estava aberta a porta mas não fomos além da soleira uma criança brincava só no coração da casa e era grave a sua brincadeira ela mudava de corpo e de estação: eram sessenta outonos por minuto e outros tantos estios de rajada delicada em sua vénia, ela mudava embora não confessasse que crescia e se ouvia crescer até mais não poder ser 491
Eis a versão violenta do vestido eis a boca do pão quando faminto eis a mesa e a cama que já pairam sobre as ondas da seara suplicante eis que amarram cada corpo a seu carril eis que lavam cada alma em seu suor ardor do sono com vagares de iceberg ardil do banho vigiado por mirones eis o que faço quando dormes e não dormes e tenho por instantes mãos enormes
492
LIVRES IVRES esses teus livros que nos lêem que nos doem lançando fogo aos olhos água aos olhos esses teus livros que se salvam da tormenta chegando a praias mais desertas que eles mesmos esses teus livros que se acusam que se abusam e usam de razões que não acalmam esses teus livros que nos tapam e destapam com panos frios sobre a testa das palavras esses teus livros que se imprimem nos caminhos por onde chegam multidões de solitários e porque embora a sombra embora a luz sob os ramos desses livros haverá olhos olhos nos olhos olhos nus
493
As noites dormidas em cima de uma ideia de dia a clarear e também as de fumo sem fogo as do branco lunar levado ao rubro as do voo azul do verde sobre tudo as da lenta borboleta em seu luto as da intermitência da luz tomada a sério as que acabam como um gag as que ardem como a renda de uma queimadura as que levantam halteres e os deixam cair nos pés as da lição de pontaria dada aos pássaros as do calor do curral e das estrelas contadas as que se dissipam no desejo de serem bebidas até à última gota as que levam e trazem de volta as que de trás para a frente as de trevas na frente de combate as de refazer o mundo onde a tela se desfaz as de conhecer a ausência palmo a palmo as que resvalam por ladeiras que não foram trepadas as que cantam nas traseiras as que nos foram dadas
494
Consigo agora ouvir o que adormece nos braços do meu corpo despertando consigo ouvir o que não digo são versos de pé quebrado que me batem na cabeça surdas pancadas que buscam o rosto sem fundo da pequenina gaveta e o grande monstro marinho no conforto da orelha consigo ver mais que tudo o que mais ama no escuro e a voz que eu sempre escuto confundida inconfundível e clara
495
Não haver tempo não haver nunca conhecer os lugares do abandono calos, côdeas e migalhas, o passado pelos restos, o futuro em suas falhas. não haver não haver sempre esperar um vento de levantar pedras esperar que os pés pisem os frutos no lagar ácido aromático do coração. entregar o corpo dos haveres e todo o haver do corpo entre as mãos do pensamento. e ficar sendo tremendo como um beijo interrompido.
496
No meio da rua sob o céu encontro muitas pessoas que o passado enlouqueceu à custa de passar por entre lábios enquanto que outros passados apenas por cá passeiam parando e logo sorrindo prosseguindo com ar de serem perda irreparável e disso a que se chama sem receio felicidade como se houvesse uma idade para a pedra e para o ferro e para todas as formas de exprimir o desterro ou o erro involuntário da origem
497
O DIA MAIS QUENTE Calculando a altura de ser chama Chamando cada alma pelo nome Içando a voz até onde ela queima. Porém estes olhos dissolvem-se em água alheia. Uma ideia desprende-se do tronco comum e torna-se por paradoxo fixa. Eu dizia à medida que te conhecia e desconhecia: o corpo pensa com os pés e voa.
498
O rei s贸 vai nu. S贸 o rei vai nu. O rei vai s贸 nu. Mas tu, meu amor, apontas para a nudez pesada comprida que a rainha traz vestida.
499
O corpo que serve de abrigo ao corpo em lugar sobrenatural o corpo que serve de castigo sobrenatural ao corpo sem abrigo o corpo que não trago comigo para que se use e me use de outra maneira o corpo que não me leva e me gasta como reserva porque pensar não recompensa o corpo não por extenso não por inteiro mas ávido e viajado o corpo de pé e de frente tríptico de si fundo em destaque e não figura o corpo em corte estanque mas hemorrágico transbordante de órgãos o corpo último mágico talvez por excepção o corpo de meter medo o corpo de meter dó o corpo de meter nojo só
500
LER AO CONTRÁRIO mas se na última página sem aviso ou transição lhe foge a boca para várias verdades não sabendo como transportá-las o leitor assobia, renuncia e diz para consigo: há que saudar as formas recalcadas com a grosseria do que é explícito... ó ruas que correis para dentro dos bolsos mostrai-me a opulência de outras noites a nuca discreta descansando na almofada os pés apontando para o bulício do céu e o nó na garganta e o caudal das vértebras e cada coisa capaz de ser como não se pensa
501
ÍNDICE
Prefácio
2
Julho É certamente possível Trivial é a vitória como a derrota Está aberto o caderno do regresso Nasci sem porta TRADUÇÃO Tu que despertaste magoado
6 7 8 9 10 11 503
Agosto Trabalho hoje Com os olhos vendados A criança desenha um dia feliz Obriga-me a ficar CONTUSÃO Sentei-me à mesa RETRATOS Dentro do inconcebível INDIA SONG Imagino-te sondando a noite funda O RELÓGIO DA BARRIGA Há um ouvido que só escuta murmúrios Será que despertei Afagar-te KAMIKAZE Hoje o meu coração canta O QUE FAZEMOS? BAILE A INTOCÁVEL Na margem sombria Passo a noite em cativeiro Onde me levas, meu amor, quando me deixas Passeias dentro de mim CANTIGA DESENTERRADA O QUE A MÃE DIZ CORTA-MATO BASTIÃO O OUTRO LADO AS CONDOLÊNCIAS OS MONSTROS DA SENSATEZ O pequeno outono deita abaixo as primeiras folhas O FOGUETE NA MEIA DE VIDRO Das máscaras sobra o fio ESCALA E REDUÇÕES Rasguei a carne Os bosques dormem já de boca aberta Estão mudas as frases 504
14 16 17 18 19 21 22 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 43 44 46 47 48 49 50 52 53 54 55 56
Setembro Passar por ti onde amor Vapor de ti e cheiro de mim A ARTE DA CANTIGA TABU LA PORTE CONDAMNÉE DÉCROCHAGE Mon cœur s’ébroue Tu comprendras mieux que moi A BARBÁRIE Irás por entre sombras, entre espinhos Alguém arrancou uma fotografia De súbito, o espelho da pequena poça Mudar de casa Não saber por onde e como A INVERSÃO DE DADOS OBRIGAÇÃO DE RESERVA Les oiseaux sont lourds O PENSAMENTO POR TENTATIVAS Agora, lágrima, dorme L DIAGONAL ARITHMÉTIQUE Ao correr da pena não se esgota o sangue CARTA À MINHA VELHA AMA Quando baixam os teus olhos O que era de comer secou no galho A QUESTÃO DA UTILIDADE A LÍNGUA COLADA AO CÉU DA BOCA A NAU NÃO A parede onde bato com a cabeça PIANO PIANO CURA DE BRANCURA DU ELO Toda a poesia Tu sabes que eu sei que sabes Se não te aperto em meus braços Fuga de ideias A carne abandona os seus espíritos OS SINISTRADOS 505
58 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98
Outubro MELANCOLIA Entre os despojos das palavras No fundo deste meu poço O fruto que se despenha CORDA PERCUTIDA Acordo muitas vezes para olhar Eu sou sem luz e sem rede GRAIN DE BEAUTÉ OS SEMÁFOROS Não ouças o que já está O CICLO REPRODUTOR DAS PALAVRAS EOO bis BABA A outra vida não tem merecimento Velho tapume, o corpo encobre a obra L’AUTRE INVITATION AU VOYAGE Debaixo da cama Excita, o cheiro do sangue DIRT DIRT DIRT Se é de noite Tens a arte de dizer Tu me disais INIMPUTÁVEL ÉTÉ INDIEN A TEORIA DA CULPA Reaver sem olhar ao que não volta Aquele a quem falta um dedo PEDIDO DE RESGATE Virás com braço de brisa Se buscasses lugar onde pousar A quem falavas ao certo QUADROPEDIA Falavas do princípio burguês da separação de corpo Se embalar um menino AUTRES TRANCHÉES Si l’horizon n’offre plus A vaga de sono La bergère folie s’invente des moutons Pão de outono A MÃO E A PALMATÓRIA SLEEP NO MORE Le parfait état de manque NU PARA UM CONCERTO CONCERTO PARA UM NU O fantasma não se agarra CÉU E GINECEU Não contas como nem quando Será que vais madrugar, amor 506
100 101 102 103 104 105 106 107 108 109 110 111 112 113 114 115 116 117 118 119 120 121 122 123 125 126 127 130 131 132 133 135 136 139 140 141 142 144 145 147 148 150 151 153 155 156 157 158
Novembro A COMÉDIA DA LITERATURA Cheiro a chuva, cheiro a mofo Dizem-me que já recebi Este sítio onde as águas se separam OS SACERDOTES Os gigantes não reparam no que pisam ANDA LUZ O CÃO À QUELQUE CHOSE BONHEUR EST BON? A LAGARTA EXCURSIONÁRIA Porque era noite cerrada Não faltes, meu amor, se te sou carne Tempos houve em que eu sentia O que vês? A VERSÃO EXPURGADA A cabeça busca o seu lugar O LOBO DENTRO DO CURRAL A criança ri FALA REI E FALA RAINHA Cada estação se atreve à novidade PORQUE OS FILMES SE FAZEM DENTRO DE NÓS Aguardente da paixão A palavra Ouço no fundo do ouvido Atrás da minha vergonha Esta noite, o meu pai morreu mais uma vez Sim Partindo do princípio Il faut imaginer l’Eden FERVER L’instant Para que servem Nascer às vezes mulher CODA DITIRAMBO Pensar um livro nebulosa MENSAGEM COLADA NO PARABRISAS O SONO DA NÁUFRAGA As coisas convenientes MALES E MALABARISMOS MON ÂME BY HEART ACHAQUES A HISTÓRIA DEMASIADO NATURAL STREET FIGHTING Je suis amoureuse transie O RENDIMENTO PER CAPITA NÉON VACILANTE NA MONTRA RUBRA DO TALHO 507
160 162 164 165 166 168 169 170 171 172 173 174 175 176 177 178 179 180 181 182 183 184 185 186 187 188 189 190 191 192 193 194 195 196 197 198 199 200 201 202 203 204 206 207 209 210
Dezembro CORBEILLE ET ANESSETHÉSIE Corpo ermo, corpo irmão Sobras de obras e conversas CRÓNICA DO ESVAZIAMENTO DA AMPULHETA Amar como coisa feita à mão Nous aurons des lits O PAPEL DO PAPÃO Sei da morte o que a vida Un oiseau à court de bec LES HEURES D’ÉTUDE Isso que agora sossega Debruçada sobre o olho do bastidor Dizem-me que há olhos rasos DUMA SEREIA QUE EU SEI Mãe, Tu não dormes LADIES FIRST AND THIRD LADIES FIRST, LADIES NEXT POEMA FALSAMENTE BREVE Levo os olhos pelo chão MINÉRIO O fato do Inverno posto à prova Outro eu e outro um nunca se ligam Un mot autonome TARDE E TARKOVSKI CAN WE GO BACK TO THE FUTURE? GOVERNO SOMBRA DOIS LAST TAPE Há coisas muito baixas como o céu Nada que liberte do pavor Conversa rumo a jusante Espero por tudo o que espera 508
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Janeiro TOGETHER THROUGH LIFE NOITE INICIAL NOITE INICIADA Os mortais só sabem ler SEM AVISO Visões e divisões até à saciedade O QUE DESARRUMAÇÕES Se corro atrás da lição dos sonhos Se entraste dentro de mim Olho até onde houver céu Ó língua dos padecimentos POEMA DE INVERNO ZEROS Ser tão-só o rosto grave As palavras desfazem-se em promessas Com uma só mão Ser o bicho imitador A sombra deste corpo que foi teu Esse jogo de adivinhas Dizem que falta se sobra LEVANTES E POENTES Uma mulher quase não perdoa Não há erros Luzes baixando Sofro como dor Como se a noiva fosse POEMA PORQUE POESIA ALONE POR CONTRA EXEMPLO No papel talvez papoila As paredes fogem falam Lume e ciúme Como peça de roupa Silêncio de corredor Antes de já ser antigo Eu durmo de olho aberto Entre a floresta analfabeta REMOÇO Há memórias soterradas que afloram Um dia que por excepção O VASO DE JACINTOS 509
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Fevereiro LEGENDA Queres tu que eu queira e saiba Coisa que me causa Dizem que precisam de ar ROMANCE Na cama faço meu ninho Sim OVULAÇÃO AS SETE PARTIDAS Rumino a mesma luz que me rumina Para que algo fale O SOL OCULTO DO SOVACO FORCLUSÃO Há então que deter-se em parecenças Hoje mesmo a cidade era brinquedo O pássaro Meter as mãos na massa do amor DA FADIGA VISITA DE ESTUDO Nº Lembro-me de guerras de travesseiro OS DIAS CONFUNDIDOS CAMALEÃO XXX O PREDADOR PERDEDOR ENTRE FALSOS PASTORES O ESTADO SÓLIDO MAGIA Roubei flores nos jardins
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Março A INDÚSTRIA DE SER L’ARRIÈRE-COUR PETIT POÈME DANS TA LANGUE ÉTRANGE PEQUENO POEMA ILÓGICO E VERDADEIRO A terra natal Sonha-se então Não se dorme como dantes Respiro com meus dois braços Regressar já tarde ao terror da casa PEQUENO TRATADO DO INTRATÁVEL Eu sou aquela que tu não procuravas LANTERNA MÁGICA Meu velho amigo casaco Para onde ruma o amor Surpresa de uma frase inacabada O coração dispara pelos olhos PARTIR EST-CE DONC FAIRE LONG FEU? Bom fora que o coração me enganasse Em sonhos visitamos Frente às figuras Das parecenças I KNOW NOT WHAT THE FUTURE WILL SING MIND YOUR HEAD FOUR LETTER SWORD CITANDO O DESPOTISMO ARTE TRANSFIGURATIVA A teus pés deponho um sonho Há lugares Desperta-se a dor ALICE AU PAYS SANS SOMMEIL A SERPENTE DO DIA ASSOBIANDO Talvez contando em voz alta O PENSAMENTO DUPLO O PENSAMENTO DÚBIO L’IVRE L’ENFANT GIGOGNE EM TORNO DO SIM E DO NÃO RETAGUARDA Esse instante dilatado em que não sei ADVÉRBIO Adiando quanto pode 511
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Abril Há talvez Fala-me e falta-me Je prends tous les torts MEZZO Les lèvres A poesia era poder adormecer Toutes les lumières de la nuit AFEIÇÃO E FACE LA DÉCENCE O texto esconde bem o seu rastilho FÓSSIL O EFEITO Sim, amor O MANUAL DO APAZIGUAMENTO Certa noite chegará como comida Em tempos que já lá não vão A alma no paiol e o corpo em obras DE CHUMBO TRÊS CANÇÕES DE AMOR TO STAND AND TO UNDERSTAND, AND TERMINAL E PARTIDA O CALDEIRÃO DA GARGANTA Le poète Mallarmé a froid au dos Mas em nada me receies se sentires Falemos apenas DU BOUT DES LÈVRES? THE HAPPY FIOS 512
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Maio BARULHO LÍQUIDO OS PÉS NUS 7 DE MAIO 2010 CADÊNCIA MOVIMENTO PERPÉTUO A dor não é impossível Cega cega a sobrancelha Alguma coisa me escapa O AR EM 9 DE MAIO 2010 Se Não basta uma vida inteira 12 DE MAIO 2010 Vendes a alma ao demónio Conto meandros e margens Pendurada pelas pernas LE TÉLÉPHONE DIT ARABE MOON WALKING OS SINOS DE LJUBLJANA UM TUFO DE MALMEQUERES E DE MIOSÓTIS GALA O amor deixou ovos em todas as bocas Desse teu lado da cama NÃO TENHO FADA MADRINHA LETTERA AMOROSA O SOM Seremos Vou pelo cheiro do mijo E sou A menina prodígio EVA ESFREGANDO A SOLEIRA SEXO 513
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Junho O IMPASSÍVEL Desenha agora a espiral CORPO DE DEUS HOW Mais uma vez e só A DELICADEZA AS ORDENS MENDICANTES Onde vou estando sem estar Se me dissesses os jardins ácidos e doces ACÇÃO DE GRAÇAS Alguém nos chega CÓSMICO-ESCATOLOGIA Qual o caminho mais longo ANTI-PAISAGEM Se no fim nos restar o desconforto Numa ida para a fonte quebra o cântaro A MULHER MACACA Se nos movemos algo sabemos Dizia eu, comovente Porque o barco se engana de cais No lugar onde as palavras certas Arrasto para uma ponta Nesta cidade me amarias Abracei todo o barro que me escapa DO PENSAMENTO E DA VONTADE Juntam-se coisas MANHÃ SEM MANHA Lavar-me sim Neste frio de último sono 514
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Julho Entre as mãos de Eros Onde a noite cabe dentro de uma luva Trazia filhos de outras eras Regressavas leve EM VÉSPERA DE ASSALTO À FORTALEZA As crianças de cabelo branco NICOTINA Meu sol a sol Nasci de uma ciência impaciente ROTEIRO DA PRESENÇA La phrase s’écrase sur la feuille Sou dada a piratarias A CARGA EXPLOSIVA Sem garras O LATEJAR DO SANGUE NAS FONTES Eis a versão violenta do vestido LIVRES IVRES As noites dormidas em cima de uma ideia de dia a clarear Consigo agora ouvir o que adormece Não haver tempo No meio da rua sob o céu O DIA MAIS QUENTE O rei só vai nu O corpo que serve de abrigo LER AO CONTRÁRIO 515
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