Ritos de eterna posse

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razão desflorou séculos passados séculos que hão-de vir que a vossa virgindade seja uma dormir na lama e balançar entre berços e abóbada que a nossa bebedeira seja apocalíptica


pranto

a lua cheia ĂŠ uma vagina de deusa a explodir de abandono


tragĂŠdia

a bochecha do vento cor da aurora os trovĂľes e as mĂĄscaras


meu corpo de crepúsculo sussurro de lâmina cibernética és cor de laranja preguiça de monstro pirotecnia à flor de pele meu corpo cálido


carĂŞncia

escanchamos as pernas sem idade mais a palidez dum focinho desbotado teu sexo mais as ĂĄguias a vindima e os motores parados lĂĄgrimas


(imolação lúgubre do gume teu sexo mais a estridência do que está para vir) quinzena na catacumba de meu ventre amputação de minas minhas mãos de cera e água tu ribeiro de margens fartas sedimentando a tarde sombria


fuliginosas as noites nós a constelação


nĂŁo sou como a floresta hĂĄ sempre sendas entre o arvoredo


os teus olhos pantanosos Ă s vezes chicotes


não posso ferir a areia os meus pés só ferem neve


um poema de passeio

o corpo teve uma agitação de anémona e os olhos baixaram num assentimento de posse . . . . . . . . . . . . pedra? fauno? ... ... ... tenho a consciência como um canal estagnado minha alegria meia romã ... ... tarde cálida desfilam arlequins e o chão poroso continua em erupção ,,, ... ... ... minha pele é lava fria tu infeliz traidor das estrelas alcateia de uivos e suspiros ... ... ... ... ... mais uma vez trevas...


um poema de êxtase

crio raízes a água limosa fluida teu suor incenso teu corpo imensa nave tu mutável apenas na aparência e o nosso encontro será à partida na margem


um poema de paranoia

e o partir para uma viagem irreversível inadiável como a imagem no Espelho . . . . . . . tenho medo que Joan me espere na gare Joan e os cabelos esfiapados, cor de chá e os olhos de lata e os enormes dedos brancos de minhoca . . . . . . . . . . angústia esfria a tarde ainda bem que há húmus . . . . . . e o meu coração pesa como um lingote de ouro . . . . . . e os meus braços de cipreste caem . . e o entoar dum canto que me esmaga . . . . mais uma vez vem água


mulher

por favor não me peçam para assistir ao desabar das casas e ao violento orgasmo do sol na vidraça à neblina imunda que a terra fresca imana contaminando o ar o poente não dura mais que uma pirueta e se o céu num esgar vomita esperma rubra deito-me na lama e abro os braços lenhosos erguendo-os como troncos deixai que a seiva corra quente que o ritual se cumpra


continuamos a descer as dunas até que esbracejando ofuscamos o sol e a maresia . . . . . . . porque me esperas? porque me esperas de libélulas azuis nas mãos e punhais nos olhos? . . . . . . sentei-me na escadaria a ver a hera devorar o granito até que enfim ouvi ao longe as trompas e vi chegar os faisões e outros caçadores . . . . . . . . . . . e eu fugi bêbeda do murmúrio aturdido das águas mas deixei um último bilhete como um monstro amigo e fiel . . . . . . . . magoas-me Cândido com o teu riso fechado nas grutas


adormeci em cima da mesa da taberna num devaneio de vinho e nevoeiro . . . . . . . . . muito mais tarde levaras-me paro o meio duma ponte que maternalmente se debruçava sobre a água porca . . . . . . . . . . . . . no ar um cheiro à água mergulhada um hálito branco de marinheiro ou o esvoaçar dos cabelos duma donzela escondida atrás do mastro . . . . . . . . . . . . . . afogar-me contigo no destino dum cais . . . . . . . . . . tropeçar no suicídio dos dias de aguardente


alivio a minha cara de água fria . . . . . . . . . aterrorizam-me as luvas, a neblina, e as motorizadas da noite. . . . . . . . as pessoas são agora más e verdadeiras disseram-me as relvas são garças. . . . tenho vergonha dos lençóis brancos como páginas . . . . . . . . . . . . espraio o tempo a dizer-me mentiras porque o tampo de mesa não tem cócegas


gosto de lutar com a luz do sol na boca de teu tempo e a água na carne dos meus olhos. nas palmas das mãos o luar estiola de-fi-ni-ti-va-men-te os teus braços. apanhei a bebedeira das palavras que devoro... enquanto a terra húmida mete nojo e faz convites.


o arauto

visionária de alegrias trôpegas porque o nosso amor cósmico e túmido como a terra das margens porque e as searas no ventre da planície nua porque o nosso amor fulvo e a languidez dos flamingos na gravura porque o arauto rouco... porque o júbilo de esquecer os velhos corvos e riscar a bruma


cantigas

I vou-me embora para a beira dos búzios caçoar da frieza das estrelas altas como aves aqui até que a terra que calcava me tiraram vou-me beijar a areia que é mais fria para ser a rainha das estátuas amordaçadas e brancas nos jardins vou-me. este céu canalha que me vence e grita! II pensei na tua voz que canta baixinho como os grilos III abafei teus lábios lutando com um mar de luzes lutando com um mar de vírus schiu! minha cabeça orvalhada e rente IV chuva de agulhas rutilante e fria sustentamos uma angústia fingida que é nosso orgulho e agasalho chuva abrasante e dolorosa meu crime V respirar por tua pele ebriamente devorar flámulas e não me substituir


receitaram-me dicloridato de dissulfureto de bis-3-hidromixetil -2-metilquiridol monohidratado eu não percebi vocês, jovens são frescos e enjoam como as peras maduras eu a alma sepultada das lezírias o calor das virilhas duma montanha do sul


anacreôntico

enchamos de prazer o nosso lagar num segundo de volúpia quando os pulmões sobem à boca e o vento rendilhado evapora a claridade e irrompe sibilante por janelas góticas num local quedo


um poema de romantismo

que é feito das sandálias? elas apertavam-me os dedos docemente como gavinhas... nesse tempo havia um sol engalanado um sol airoso um sol. e castelos sequestrados na neblina e o pinto calçudo e o olhar da Tuta sábio como um monge e os clowns cabriolando ao luar donde vieram os relâmpagos? será a derrota?


tarde suada as palavras aviltam os momentos procuro a eternidade e só encontro varandas absorve-me nevoeiro aliado da lama de repente estivemos tão perto mas não me assumo as palavras aviltam os momentos ............................... as senhoras cruzam os joelhos rosados como maçãs procuro a eternidade e só encontro escadas


tempo o tempo passa bichano... langoroso, sólido, lívido, alado o tempo fica que nos que me fica. não fica. não olhar para trás, senão o abismo passo-lhe a mão pelo dorso aveludado mel, como um sofá. a vertigem, a vertigem ficou antes da vertigem. eis a sociedade decadente, como eu a imolo... o tempo sobe pretensamente irrigado inundado. o sangue é a marca ou não haverá marca? nos céus das praias elevam-se balões vermelhos como nas histórias de Júlio Verne e todo o desafio que ele Contém. ou pelo menos disseram-me. manhã mãe porque me provocas? com a tua cor de carne impossivelmente branca impossivelmente proibida. teus seios expostos como uma puta como a fruta. manhã desacatada, vou ao teu quarto não vou. lá contemplam-se tempestades incontidas e ruidosas prefiro a multidão e o sol viril que te encorrilha prefiro a multidão sentada em cogumelos fumando o narguilé como na Alice. o tempo é a Alice o contrarrelógio é o Coelho branco o contrarrelógio és tu manhã impávida e sem suor fazes-me levantar e deixo-me possuir. EU SOU O HOLOCAUSTO a terra acolher-me-á sem fazer vénia levarei comigo as roas douradas de porcelana estou no sétimo degrau estou a 365 dias do Nada e 4 km da verdade e sou um caracol serei uma avestruz quando lá chegar a Verdade morreu e eu estarei bêbeda, talvez arrastando um rio-manto de lágrimas piegas porque nada há de verdade na moral da Persistência detesto-te La Fontaine.


os ritos de eterna posse

o mar é um monstro em constante orgasmo a esperma espuma branca a ebulição cósmica de um corpo adormecido transcendentalmente recomeça espera insatisfaz... . . . . em meu ventre só acalento vagas . . . . . hoje lutamos pela imunidade mas divinizamos nossos corpos determinamos a nossa pele-planície salina marginal apetecida... nossos corpos e as miragens. . . . . . . . . afundamos o nosso silêncio de franjas na orla resinosa desenhada em baba. o grande corpo arenoso suga a água em enormes espirais em volutas gordas como vermes e baixamos a cabeça em posse indecisa... verifico a inutilidade dos olhares sombrios em volúpia-abismo. eu quero ser como o cálice e a corola até a Branca-de-Neve não era assexuada. . . . . . . . . . . suspenso por águias Zaratustra fala seus dedos vão-se esfumando a rã coaxa com intuitos líricos contempla-se a vermelhidão dos olhos apocalípticos o resto rumina tudo está iminente e nada se complica Zaratustra anuncia eu sou o vendaval meus poros e a eterna posse.


a chuva veio-me das veias sĂł hoje descobri que os sinos dobram e agora sei o tĂŠdio dos deuses e o palco interior que delimito. o ar e a pausa meu corpo a haste terra-mĂŁe enorme leito...


as bacantes escondem-se atrás do velho cedro espectral a luz coada trespassa a pele moça e dorida os demónios macaqueiam nos ilhéus basta levantar ao de leve o reposteiro em balética harmonia os ramos roçam são 9 horas e a natureza está despenteada


salmo I (no dia 25 de abril)

a solidão é a única coisa que continuamos a partilhar a solidão... tudo mais é procura inútil nós não procuramos nada nós somos o panfleto vivo contra a descoberta reivindico perante o deus uma culpa que é só minha... não — berrou Luciano, o jogral. depois disto vociferou uma série de monossílabos irrecuperáveis mas quem acredita na tua bochecha linda que está no transístor, na capa, na cassete e na enseada verde onde o sol lambe as águas Luciano, meu arroto cor-de-rosa, podes parar os teus guinchos de esquilo. podes parar. reivindico perante o deus uma culpa que é só minha a culpa que não cegou os meus múltiplos olhos azuis apesar dos eclipses onde está não ouves e o arfar e o vento

a tua consciência cósmica? pulsar o coração da terra? da erva? que mais uma vez te esculpe?

o teu espaço é limitado pela barriga de uma mãe ciosa que não ousa parir-te (II) bonjour, Monsieur Chloroforme elle a dit d’un air agacé


salmo II

eu sei que os bichos dormem entre as pedras que as ostras enfeitam a cabeleira das algas roxas que os lençóis de luar chupam as águas coroadas de estrelas-alfinetes que Justine me espera na poltrona verde e numa volúpia de raro encanto languidamente alonga os músculos leitosos eu sei. mas a aventura não se faz de medos percorre só a cal dos tetos do meu quarto e dá o bom-dia às aranhas de repente estou ingénua e lúcida e compreendo a relação entre os grãos e a terra vou tropeçar mesmo que tudo seja planície e que a carqueja seja então ao sol lareira vou tropeçar no vértice ambíguo da loucura todos os bichos cheiram a terra todas as aves vivem em poente eu vejo o Universo copular e perdi o sentido dos roteiros por isso tropeço não espero que eles berrem os fantoches dos homens eu sei que eles abafam por enquanto os gritos nas canetas e não descobrem a estreiteza dos soalhos venham olhar a morte não segundam o vazio e a solidão da espécie venham que a Apocalipse não será nos hotéis venham, finalmente, de pés alados e olhos húmidos tocar a morte pelos dedos como amiga ver em orgia as tempestades de calor e areia e o ofegar dos ventos glaciais que os patos bravos sobrevoam e algures os pés caminharão na lama e ergueremos a cabeça almofadada pelas nuvens


salmo III

foi um encontro feérico encastoado no vento cada objecto palpitava rumoroso à minha volta mas a poeira embaciava as retinas alongadas em precipício tudo me invade devora numa ondulação de avalanche esta é a aliança perpétua o descobrir dos catetos do tempo e o espaço-tempo que é já tromba marítima foi um contacto cutâneo eu queria dizer-te que estou a mais mas tu não ouvirás eu senti a vibração sonora das partículas que a brisa embala e o sol fecunda em pequenos orgasmos multicolores e invisíveis e como elas nos invadem a cabeleira e aguçam as madeixas vaporosas como chaminés de fábrica. cada palavra soletra primeiro o atrito e depois as vísceras em enormes pacotes tudo segue o rumo das goelas duma viela limítrofe nestas cidades intemporais e irrigadas: tudo converge o bafo é quente, é porco antitético o pássaro sobrevoa a muralha assistindo as metamorfoses plásticas dos insectos enquanto simpáticos dromedários adejam primaverilmente... desci do trono e o tapete de veludo é musgo, é lama e o carmim só veste bocas sensuais em cabarets e a máquina infernal que continua... felizmente estou a mais e o nosso encontro foi feérico


Leonardo e o gato

Gioconda confessou tudo ontem na penitenciรกria


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