Sobre dina e django

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Significativamente, em DINA E DJANGO (1983), Solveig Nordlund retoma uma situação já encenada no seu anterior filme NEM PÁSSARO NEM PEIXE (1978): a personagem interpretada por Manuela de Freitas, burguesa algo azeda a despeito dos vários privilégios de que usufrui, sentada num sofá, repete, traduzindo-os num tom de enfado, os diálogos de um filme americano. A inconsolável frustração que pressentimos nesse seu passatempo poderia ser uma das chaves de leitura desta obra-balanço que revisita o 25 de Abril através de uma ficção comovedora, decididamente centrada na história de amor entre dois adolescentes, a qual se desenrola paralelamente aos acontecimentos exaltantes da revolução dos cravos. Tanto a atitude enfastiada da burguesa como o recorte dos dois protagonistas despertam em nós reminiscências da «maneira» abrupta, desfasada e vibrátil do primeiro Godard, mas não é sobre a filiação que a nossa breve abordagem incidirá. Dina é uma estudante liceal pouco zelosa, empanturrada que se encontra de fotonovelas e de devaneios cor-de-rosa que só ao seu diário confia. Neta de uma velha criada, cresceu sob a asa protectora dessa avó serviçal, doce e dócil, totalmente submissa à ordem estabelecida que dela faz um ser explorado até ao tutano. Estamos desde logo perante um quadro que, por não ser incomum no contexto do fascismo, representa com aguda subtileza um certo Portugal burguês, cujo descontentamento face à ditadura em nada alterava a ética praticada no quotidiano: uma criada para todo o serviço, sobrecarregada sem má consciência pelos patrões com os mais diversos trabalhos domésticos, e uma menina pobre que, aos olhos desses mesmos amos e senhores, não passa de uma intrusa, de uma sonsa, de uma indesejável, tolerada tão-só para assegurar a permanência da velha escrava dentro de portas. Django é um rapazola atraente, sombrio e violento, também ele sonhador impenitente de amores resgatadores, embora muito sabido de botequins e bas-fonds, que sobrevive à custa de expedientes ilicitos, e se apaixona por uma menina loura-e-linda um tanto destravada, cuja relativa ingenuidade se lhe afigura garante de uma felicidade de proprietário. Dina e Django constroem a sua meteórica história sobre um pedestal de pequenas e grandes mentiras que se confundem com os seus sonhos. E são essas mentiras que os levam às pequenas transgressões, e depois às maiores, numa vertigem suicidária que, por sua vez, se confunde com sede de viver. Ambos evoluem de costas viradas para a História. A mega embriaguês colectiva da Primavera de 74 não os toca, nem os envolve. Note-se que o namoro Dina/Django começa no preciso momento em que a rádio emite o sinal musical desencadeador do golpe militar. Repare-se também na magnífica cena em que Django pretende «assustar» Dina recém-chegada ao seu apartamento, saltando de um esconderijo de G3 em punho e gritando ironicamente: «O Povo está com o MFA!!!» A utilização desviante que D&D farão de uma arma supostamente destinada a «estar do lado do povo» fornece-nos outra importante chave de leitura... Ora, para além dos encantos romanescos e rocambolescos inerentes ao percurso do casal de delinquentes (que os transforma numa espécie de Bonnie and Clyde, versão teenagers, à escala portuguesa), o que confere ao filme de Solveig Nordlund uma força e uma justeza notáveis decorre do significado muito concreto desse divórcio explícito entre as ambições do par D&D e os desejos de mudança revolucionária que parecem exprimir-se ao rubro nas ruas. E, com o recuo do tempo, talvez não seja descabido aventar que há mais verdade e densidade, do ponto de vista das raizes socio-culturais, nas transgressões selváticas cometidas por Dina e Django do que nos desejos constituídos em massa informe que fervilham no olho da rua, esses mesmos que rapidamente serão espezinhados pelos mais ínvios caminhos da realpolitik. A cena em


que a patroa exultante anuncia a mudança inesperada de regime à velha criada, impávida e serena, e o episódio em que o casal burguês recebe um amigo bem falante regressado do exílio dizem-nos que a revolução portuguesa foi o sociodrama necessário à instauração do modelo de sociedade pelo qual a burguesia lusa ansiava. Claro que, cereja no topo do bolo, o filme não se coíbe de traçar um paralelo entre o imaginário fotonovelístico de Dina e a empatia cinéfila relativamente às ficções made in USA da senhora... O plano emblemático de Dina e Django deitados, rodado em interior e picado absoluto, dominado por um vermelho sanguíneo, mostra-nos os amantes trágicos como duas estátuas jacentes emolduradas por alguns objectos metafóricos do seu universo referencial, e coloca-nos perante uma antevisão do limbo para onde serão remetidos os anseios dos humilhados e ofendidos. A telenovela não tardará a fazer irrupção no pequeno ecrã... Enquanto obra-balanço, com o seu pezinho mergulhado nas águas agitadas do documental, DINA DJANGO é sem dúvida um filme altamente incómodo para quem se tiver furtado à tarefa de relectir sobre as contradições do processo revolucionário português e também para quem subestima a importância política da expressão reificada dos continentes, porventura antagónicos, sonhados pelos indivíduos e pelos grupos. Parente do desenlace lancinante do biopic THE HONEY MOONKILLERS, o final de DINA E DJANGO eleva a desafortunada aventura do jovem casal ao estatuto de amor louco, legando ao nosso entendimento a radical resposta de Django encarcerado aos queixumes da sua amada que lamenta o parco tempo que tiveram para se amar. A saber: «Para mim, chegou.» Regina Guimarães


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