The color red

Page 1

THE COLOR RED O filme de boxe constitui, nos Estados Unidos, um mini-género como seu inventário de bons e maus filmes, com as suas convenções fortemente enraizadas. Trata-se sempre de uma glorificação, não tanto da força física, mas das qualidades espirituais da coragem, da perseverança, da resistência que, apesar do handicap de uma origem social das mais desfavorecidas, permitirão conquistar a glória e a fortuna. O campeão de boxe é, no fim de contas, uma boa ilustração do sonho americano. A partir deste esquema inicial, o género foi-se complicando com a abordagem de temas como a grandeza e a decadência, o destino dos vencidos, etc., até que recentemente se verifica um retorno à simplificação mais grosseira com a série dos ROCKY. O filme de Scorsese, RAGING BULL, inscreve-se neste género — esquema transparente de grandeza e decadência, pontuado pelos combates reconstituídos — mas ataca frontalmente a sua problemática subjacente e, ao despi-la de enfeites, destrói a base ideológica do sonho americano, demolindo paralelamente cada uma das suas convenções. Mais: o filme é de chofre colocado sob a égide de Shakespeare — a primeira cena mostra De Niro / La Motta, já retirado do ringue, a ensaiar o seu número de animador de cabaret, durante o qual se interroga sobre o destino dos heróis shakespearianos deslocados da ilusão do palco para a realidade do ringue; ao retomar uma problemática shakespeariana, Scorsese propõe, a partir da figura de Jack La Motta, uma das interpretações mais subtis do mito. Acrescentemos que a opção estética que permite a Scorsese provocar uma distanciação ao nível da leitura faz deste RAGING BULL o seu melhor lime, a nosso ver, aquele que de uma cajadada renova não só um género e uma temática, mas a própria forma cinematográfica da fita de ficção realista. Ao interessar-se por uma comunidade precisa — a segunda geração de imigrantes italianos à qual está ligado pelas suas próprias raízes —, Scorsese acabou por pôr em causa o «sonho» americano, modelador dos esforços de integração dos recém-migrados (a focalização da problemática é sensível ao longo de toda a obra de M. S.; RAGING BULL situa-se após MEAN STREETS e TAXI DRIVER e antes das fitas em que se volta para o mundo do espectáculo). As marcas de reconhecimento desta comunidade projectam-se tanto ao nível social como ao nível cultural — das relações familiares aos hábitos alimentares. Para Scorsese, a origem social não é um simples conceito de ficção, mas uma realidade cujo peso se traduz tanto na atitude geral da personagem como nos mais pequenos pormenores do seu comportamento gestual e verbal. A história de La Motta é o percurso de um ser coagido por esses condicionalismos. A sua carreira de lutador e o seu relacionamento conjugal e familiar seguem uma trajectória inelutável na qual os desígnios do destino são substituídos pelos da origem. É esta que engendra o desejo de a si própria escapar, e a «raiva» de La Motta não passa da expressão da contradição entre a vontade de fuga ao meio e a profunda dependência desse meio. Ora, para formular esta verdade, Scorsese não recorre ao realismo — sempre convencional — mas ao mito, transportando-o para outro contexto. Todos os sentimentos, toda a «psicologia» do personagem são complexas manifestações dessa raiva, e raiva é a coragem que o leva à vitória, raiva é o ciúme com que cerca a própria mulher. A comparação com Otelo permite evidenciar a originalidade do trabalho de Scorsese. O sentimento motor é o mesmo: o ciúme; as vantagens e handicaps do herói também: a exclusão genealógica do meio a que acedeu graças à sua coragem e ao qual a mulher pertence. As diferenças são, fundamentalmente: a ausência de desenlace trágico — nem destino, nem morte, apenas degradação — e da figuração de lago. Este último, manipulador de Otelo, é na fita construído pelos condicionamentos sociais de La Motta, que os integrou a ponto de se agir simultaneamente como Otelo e lago, a vítima e o carrasco. Toda a psicologia ficcional estandardizada é revista: o amor passa obrigatoriamente pelas relações de classe, o ciúme é uma relação de classe. O mito funde-se com a sua profundidade na ficção realista, o realismo renova a verdade do mito. Este esquema deixaria de nos interessar se se quedasse na abstracção; o trabalho de Scorsese consiste em torná-lo perceptível para o espectador e toda a estética do filme obedece à vontade de ultrapassar o realismo sem apagar o peso que este confere à ficção. A escolha do Preto e Branco, logo à partida, não é indiferente. A imagem é notável não só pela sua beleza plástica como pela


sobriedade dos enquadramentos e outros factores de composição: M. S. aposta nas grandes zonas de branco ou de cinzento. Beleza assaz diversa do «postal ilustrado» e da imitação pictórica, cujo efeito é criar distanciação face aos elementos da imagem, em si perfeitamente realistas — este trabalho icónico já era visível nos filmes anteriores, mas a utilização do Preto e Branco provoca, neste caso, uma legibilidade imediata. Os combates oscilam constantemente entre a dança e o açougue, as cenas de família entre a cena do género e o retrato de grupo. A montagem é talvez ainda mais característica: cada sequência é um nadinha lenta demais, dura um tudo nada mais do que o que a ficção — que se mede em «acções» — exige. A insistência transborda a ficção e o tempo adquire um peso pouco habitual; a elocução lenta opõe-se à pobreza das palavras — estamos nos antípodas do diálogo «brilhante»; o alongamento da duração faz-nos passar do realismo à verdade, sem tomarmos consciência da viragem (no romance de Flaubert Bouvard et Pécuchet funciona um fenómeno da mesma ordem; apercebo-me disso no momento preciso em que verbalizo esta análise). A totalidade da narrativa prolonga-se através de uma sequência que vem por excesso, em relação à norma codificada: seguimos a carreira de Jack La Motta, grandeza e decadência, assistimos aos momentos em que ele fica só, mas mesmo nesses instantes a degradação não parece total, uma condenação subtrai-o à estável mediocridade que atingira; o sonho americano, mesmo decadente, é uma impossibilidade. Injusto seria não mencionar o desempenho de R. de Niro, cuja performance física suscitou muitos comentários — mas talvez o seu feito não tivesse sido tão notado se não aparecesse nesse lapso de tempo «excessivo» da ficção, já de si pesado, em que a silhueta inchada de De Niro se exibe transbordantemente doentia. Durante todo o filme, as laboriosas réplicas traduzem a impossibilidade de formular as suas aspirações, impossibilidade essa que o condena à raiva. O desempenho de De Niro é, em todos os seus papéis cinematográficos, muito subtil, apostando mais na espessura do que na expressividade facial, mas mudando de estratégia de filme para filme — ao contrário dos «monstros sagrados» imutáveis nas suas caretas como nos seus tiques; a espessura e a mobilidade mínima da mímica constroem de uma forma prodigiosa a impressão de uma raiva que não pode dar livre curso a si própria e que aos poucos se transforma numa teimosia obstinada, a do animal sacrificado que incansavelmente marra no pano vermelho. A harmonia parece total entre actor e realizador, a lentidão pesada de um correspondendo ao alongamento de duração com o qual o outro joga. O trabalho de De Niro efectua-se nos bastidores da máscara e impede que o seu personagem seja identificado como «herói» — podendo suscitar piedade mesmo que não inspire nem respeito nem admiração; o trabalho de Scorsese opera-se nos tempos «mortos» da acção e impede que o filme se reduza a uma ficção. RAGING BULL ou como designar — em Scorsese não há «discurso», apenas imagens — uma impossibilidade e uma carência. S.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.